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Proc. 315/97 ACÓRDÃO N.º 285/99
1ª Secção Rel: Consº. Vítor Nunes de Almeida
(Consª Maria Helena Brito)
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I – RELATÓRIO:
1.- M., casado, industrial, residente em Poutena, Vilarinho do Bairro, Anadia, e outro arguido, P., profissional de seguros, residente em Coimbra, foram acusados pelo Ministério Público da prática, em co-autoria, de um crime de burla simples na forma tentada, tendo sido submetidos a julgamento no Tribunal de Coimbra, em processo comum perante tribunal singular.
No decurso da audiência de julgamento realizada em 4 de Novembro de 1996, o arguido M. suscitou, através de requerimento ditado para a acta pelo seu advogado, a questão da prescrição do procedimento criminal, alegando que, de harmonia com a acusação, tendo sido elaborada a invocada participação de acidente de viação (assinada por aquele com o nome de terceira pessoa, e como se tivesse sido assinada pelo punho desta) em 1 de Agosto de 1988, na data do julgamento estava extinto por prescrição aquele procedimento, visto a jurisprudência largamente maioritária e a doutrina pacífica entenderem 'que a mera tomada de declarações ao arguido, ainda que nessa qualidade, no âmbito do inquérito' não tinha virtualidade interruptiva da prescrição do procedimento criminal.
Nesse requerimento chamou-se a atenção para o artigo 120º do Código Penal de
1982, na versão primitiva, preceito que previa que se interrompesse a prescrição do procedimento criminal 'com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução preparatória', pondo-se em relevo que, sendo já aplicável ao presente o Código de Processo Penal de 1987, deixara de existir instrução preparatória, ao invés do que se previa no revogado Código de Processo Penal de 1929.
Seria, por outro lado, impossível fazer equivaler a tomada de declarações em inquérito ao despacho de pronúncia ou equivalente – mesmo admitindo uma interpretação actualista daquele artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal, aliás de duvidosa legitimidade constitucional – dada a completa diferença de regimes, como se comprovava pela nova redacção dada ao artigo 121º do Código Penal na revisão de 1995 (Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março). Em qualquer caso, não se poderia aplicar ao arguido a nova redacção deste artigo 121º, visto que a anterior redacção, em vigor à data da prática do acto e da instauração do processo crime, era mais favorável para o arguido. Tendo o despacho de pronúncia sido proferido apenas em 20 de Abril de 1994, não poderia ocorrer a interrupção da prescrição, por já se ter completado o prazo prescricional. Requereu, por isso, a extinção do procedimento criminal por prescrição, com o consequente arquivamento dos autos (fls. 392 a 394).
2 - O Ministério Público opôs-se a este entendimento, considerando que ocorrera a interrupção da prescrição no momento do primeiro interrogatório de cada um dos arguidos, citando jurisprudência que sustenta essa interpretação actualista do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982.
Relegado o conhecimento desta questão para a sentença, veio a mesma a ser desatendida, louvando-se o Juiz da causa no entendimento da jurisprudência maioritária que 'tem vindo a entender que deve fazer-se uma interpretação actualista do artigo 120º, nº 1, alínea a) do Código Penal” (a fls. 412). Na sequência desta decisão, veio a ser absolvido o arguido P. e condenado o arguido M. na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 1.500$00. Em seguida e por força da lei amnistiadora de 1994 (Lei nº 15/94, de 11 de Maio), foi declarada perdoada a pena de multa aplicada.
Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o arguido M. para o Tribunal da Relação de Coimbra. Na respectiva motivação, o recorrente sustentou que devia aplicar-se sempre o regime que, em concreto, se mostrasse mais favorável ao arguido, nos termos do artigo 29º, nº 4, da Constituição, e do artigo 2º, nº 4, do Código Penal, sendo indubitável que a prescrição era um instituto de natureza mista, tanto substantiva como processualmente relevante e fundado. Nessa motivação sustentou que uma interpretação 'actualista' do artigo 120º da versão originária do Código Penal de 1982, que defendesse que as primeiras declarações do arguido no inquérito, perante o Ministério Público, equivaliam ao interrogatório perante o juiz na velha instrução preparatória, além de violar o artigo 2º, nº 4, do Código Penal, violaria o disposto no artigo 29º, nº 4, da Constituição.
3 - Por acórdão da Relação de Coimbra, proferido em 2 de Maio de 1997, foi negado provimento ao recurso. Depois de se historiar a sucessão de versões do Código Penal e a publicação em 1987 do Código de Processo Penal e de se referir com aplauso um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Abril de
1994, escreveu-se no acórdão da Relação de Coimbra:
' Aliás, não se descortina razão plausível, quanto a nós, para que [se] empole a afirmação de que só os actos judiciais, no sentido de actos praticados apenas por juízes, possuam a virtualidade de interromper o prazo de prescrição do procedimento criminal, já que o próprio legislador esclareceu no art. 1º, nº 1, alínea b), que o Mº Pº é uma autoridade judiciária relativamente aos actos que cabem na sua competência [...]
Sendo assim haverá, pois, que proceder a uma «interpretação extensiva» do art.
120º, nº 1, alínea a), do Cód. Penal de 1982, a qual não é repudiada pelo art.
4º do Cód. Proc. Penal, com fundamento na identidade de razão «no sentido de que a notificação ao arguido do despacho do Mº Pº para interrogatório e a realização deste têm o efeito interruptivo do prazo de prescrição do procedimento criminal»
(citado Acórdão do S. T. Justiça).
Tal interpretação afigura-se-nos legítima já que nos termos do art. 58º, nº 1, alínea a), do Cód. Proc. Penal é obrigatória a constituição «de arguido» logo que correndo inquérito contra pessoa determinada esta preste declarações perante qualquer autoridade judiciária sendo certo que se trata de acto solene e através do qual se adquire o «estatuto de arguido».
Esta interpretação extensiva que ficou referida é, quanto a nós, a mais consentânea com a lei e não pode ser entendida, salvo melhor opinião, como
«interpretação inovadora» e como tal violadora do art. 4º, nº 2, do Código Penal e nº 4 do art. 29º da Constituição da República.' (a fls. 474 e vº).
4 - Ainda inconformado, veio o arguido M. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 70º, n.º 1, alínea b), da Lei Orgânica deste último, indicando-se como objecto do recurso a questão da
'constitucionalidade da «interpretação actualista» ou «actualizada» do disposto no artigo 120º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 (versão primitiva)', considerando-se violado o n.º 4 do artigo 29º da Constituição, e o n.º 4 do artigo 2º do próprio Código Penal ('norma constitucional ao nível do direito legislado ou directa concretização daquela supra-legal adiante referida', isto
é, o n.º 4 do artigo 29º da Lei Fundamental).
Este recurso foi admitido por despacho de fls. 480.
5.- Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
O recorrente apresentou alegações onde formulou as seguintes conclusões:
'B.1. Em sede de trabalhos preparatórios do que veio a ser o Código Penal de
1982, o que se tinha em vista como fundamento da interrupção da prescrição do procedimento criminal era a mera «instrução do processo penal». B.2. Expressão de conteúdo descomprometido e, em todo o caso, muito menos impressivo do que aquela que acabou por vingar de «instrução preparatória». Por outro lado, B.3. Do facto de o Ministério Público ser uma autoridade judiciária não pode retirar-se qualquer argumento decisivo, pois a outorga desse estatuto à referida entidade teve por única finalidade aparelhar o Ministério Público com os poderes indispensáveis à cabal prossecução do seu munus de «dono» do inquérito. B.4. Sendo certo que aos actos decisórios do Ministério Público falha uma característica fundamental para que pudessem ser considerados jurisdicionais: a da respectiva recorribilidade. Acresce que, B.5. A prescrição do procedimento criminal é um instituto ao qual deve ser adscrito, de uma correcta e moderna perspectiva dogmática, natureza processual- -material. Por outro lado, B.6. O Tribunal da Relação de Coimbra, volens, nolens, no acórdão sob recurso, considerou ter procedido a uma operação que, material e logicamente, deve ser considerada como «analogia» ou integração analógica. B.7. Só tal operação lhe permitindo aplicar o disposto no Código Penal revisto ao mesmo diploma na respectiva versão originária, e aí artigo 120º, nº 1, alínea a). Ora, B.8. As concretas normas jurídicas que integram os institutos de natureza processual-material têm relação directa com o garantismo próprio não só do direito penal substantivo como do direito processual penal, em ambos os casos constitucionalmente consagrado. Como assim, B.9. A operação a que procedeu o Tribunal da Relação de Coimbra para considerar que a arguição no inquérito já tinha virtualidades interruptivas da prescrição do procedimento criminal face ao disposto no nº 1 do artigo 120º do Código Penal, na respectiva versão primitiva, tornou a referida extensão analógica materialmente inconstitucional. B.10. Por violadora não só do disposto no nº 4 do artigo 29º da Constituição da República, como do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, norma de direito legislado tida como de conteúdo materialmente constitucional. Na verdade, B.11. É materialmente inconstitucional a aplicação retroactiva do disposto no artigo 121º, nº 1, alínea a), do Código Penal revisto de forma a integrar uma tal ou qual lacuna (in)existente no artigo 120º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma, redacção primitiva.' (a fls. 501 a 505).
O representante do Ministério Público, nas contra-alegações, concluiu do seguinte modo, pedindo o provimento do recurso:
'A interpretação acolhida no acórdão recorrido de que o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal (versão primitiva), admite, face às lacunas de regulamentação decorrentes da entrada em vigor do Código de Processo Penal de
1987, que o interrogatório do arguido no inquérito tem virtualidades interruptivas da prescrição do procedimento criminal, mostra-se violadora do artigo 29º, nº 4 da Constituição, quando, como acontece in casu, dela resultar um regime desfavorável para o agente.' (a fls. 526).
6. - Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS:
7 - Convirá desde já transcrever as normas das duas versões, a primitiva e a actual, do Código Penal que foram levadas em consideração nas decisões das instâncias e nos requerimentos e alegações do recorrente e do Ministério Público:
Art.120º, nº1, do Código Penal de 1982 (versão primitiva)
'1. A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução preparatória; b) Com a prisão; c) Com notificação do despacho de pronúncia ou equivalente; d) Com a marcação do dia para julgamento no processo de ausentes.'
Art. 121º, nº 1, do Código Penal de 1982 - (versão resultante do decreto-Lei nº
48/95, de 15 de Março)
'1. A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com constituição de arguido; b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação para a audiência em processo sumaríssimo; ou c) Com a declaração de contumácia.'
Por outro lado é também útil recordar brevemente a matéria de facto e de direito apurada nos autos, com relevância para a apreciação da questão da eventual interrupção da prescrição do procedimento criminal:
- o crime por que veio a ser condenado o recorrente consumara-se no dia 1 de Agosto de 1988 e era punido com pena de prisão até três anos;
- a prescrição do procedimento criminal quanto a esse crime ocorria no fim de cinco anos (artigo 117º, nº 1, alínea c), do Código Penal de 1982);
- o Recorrente foi interrogado como arguido em 25 de Outubro de 1989, no
âmbito do inquérito efectuado pelo Ministério Público, pelo próprio magistrado do Ministério Público;
- o Recorrente foi notificado do despacho de pronúncia em 3 de Outubro de
1994.
Na motivação do recurso para a Relação, tal como no decurso da audiência de julgamento perante o tribunal singular de Coimbra, o ora recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade de uma interpretação “actualista da alínea a) do n.º 1 do artigo 120º do Código Penal de 1982, na sua versão primitiva”, interpretação essa que seria de natureza extensiva ou analógica.
Com efeito, na medida em que nela se tomava como ponto de referência a instrução preparatória, foi esta norma editada com referência à tramitação do processo penal regulada pelo Código de Processo Penal de 1929 (com as modificações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945, e pelos Decretos-lei n.ºs. 605/75, de 3 de Novembro, e 377/77, de 6 de Setembro), então vigente. De acordo com o que nela se estabelecia e ficou transcrito, a prescrição do procedimento era interrompida com a notificação “para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução preparatória” (sublinhado agora).
Entretanto, o novo Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
78/87, de 17 de Fevereiro, veio eliminar a figura da instrução preparatória. Todavia, a citada alínea a) do n.º 1 do artigo 120º do Código Penal permaneceu inalterada, de forma que a jurisprudência se dividiu quanto à questão de saber se algum momento processual anterior à prisão preventiva, ou à notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, teria a virtualidade de interromper a prescrição. Designadamente, perguntava-se se esse momento poderia consistir na constituição de arguido nos termos do artigo 58º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal de 1987, ou seja, logo que pessoa determinada, contra quem corresse inquérito, prestasse declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal.
Porque o momento da constituição de arguido passou a interromper a prescrição de forma inilidível a partir da revisão do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, conforme resulta do actual artigo 121º, n.º 1, alínea a) desse Código, é neste último ponto que se funda a asserção de que, ao dar uma resposta afirmativa à questão apontada, se estaria a proceder a uma interpretação “actualista”, de algum modo interpretando a lei revogada à luz do direito entrado posteriormente em vigor e, depois, aplicando-a, ainda que de modo implícito, de forma retroactiva, a factos ocorridos antes da sua vigência.
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Vem assim questionado um certo sentido interpretativo da norma do artigo 120º, n.º1, alínea a) do Código Penal não determinado apenas pelo caso concreto, mas contendo em si, com suficiente autonomia, os critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos ao texto legal, de tal modo que permitem a sua utilização em casos semelhantes, que o Tribunal Constitucional não pode deixar de poder controlar apertadamente, uma vez que, nesta matéria, a Constituição não reconhece qualquer amplitude criativa ao julgador.
Sobre a questão normativa objecto do recurso de constitucionalidade, escreveu-se no Acórdão n.º 205/99, de 7 de Abril de 1999, tirado no processo n.º222/98, ainda inédito:
' É objecto do presente recurso de constitucionalidade o confronto de uma interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 com os artigos 29º, nºs 1 e 2 e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição. Consubstancia um tal confronto uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional tem competência ou estar-se-á, apenas, perante o pedido de apreciação de uma eventual contradição da decisão recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição? Impõe-se o entendimento segundo o qual o Tribunal Constitucional se confronta, neste caso, com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal. Com efeito, várias razões intercedem a favor de que a questão colocada não pretende suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida. Assim, desde logo, o recorrente não submete à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 120º, nº 1, alínea a), o qual é identificado. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, na interrupção da prescrição “a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e a realização deste” é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29º, nºs 1 e 3 e 32º, nºs 1 e
4. É, assim, o conteúdo final da interpretação, ou dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, norma que eventualmente não tem competência constitucional para o decidir, que é submetido ao controlo de constitucionalidade. A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos. Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada. Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.
Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos termos do artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se, porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese (a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo
29º, nºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade material). Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo
120º, nº 1, alínea a) do Código Penal. E, independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita.'
Estas considerações são transponíveis para os presentes autos e mostram que o caso em apreço difere dos casos a que se reportam os Acórdãos n.ºs 221/95 e 682/95 (o primeiro publicado no Diário da República', IIª Série, de 27 de Junho de 1995, e o segundo, ainda inédito), pelo que se entende que não pode deixar de se tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
8 - Nos autos dá-se conta das divergências jurisprudênciais na matéria, tendo o acórdão recorrido aderido à tese da 'interpretação actualista' perfilhada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Abril de 1994 (publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II,
1994, tomo II, págs. 185 a 187). Segundo este último acórdão - na linha do acórdão anterior de 18 de Novembro de 1992 - entendeu-se:
'Este preceito [o art. 120º, nº1, alínea a), da versão primitiva do Código Penal] e com ele todo o repositório legal de que faz parte são anteriores ao Cód. Proc. Penal hoje em vigor, o qual veio pôr termo ao inquérito preliminar e
à denominada instrução preparatória e veio atribuir ao Ministério Público a titularidade do exercício da acção penal, devendo por isso ser objecto de uma interpretação actualizada.
Assim, o interrogatório do arguido ordenado pelo Ministério [Público] e àquele notificado, tal como foi estruturado pela lei processual em vigor, interrompe, efectivamente, o prazo de prescrição do procedimento criminal. Aliás, dos trabalhos preparatórios do Cód. Penal de 1982 ressalta bem a ideia de que os actos consignados como interruptivos da prescrição não obedeciam à escolha de uma origem orgânica para excluir para tal efeito os actos praticados pelo Ministério Público nem os actos significativos reveladores da pretensão punitiva do Estado [...].
O art. 120º tem, pois, que ser objecto de uma interpretação extensiva - o que a lei processual penal não proíbe, como se alcança do seu art. 4º - com fundamento na identidade de razão, no sentido de que a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório e a realização deste têm o efeito interruptivo do prazo de prescrição do procedimento criminal.
E esta interpretação impõe-se tanto mais quanto é certo que, nos termos do art.
58º, nº1, al. a), do Cód. Proc. Penal á obrigatória a constituição do arguido logo que, correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal, sendo certo que se trata de um acto solene, através do qual se alcança o estatuto de arguido, passando então a ser sujeito dos direitos e obrigações enunciados no art. 61º do mesmo Código'
Quando foi tirado este acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a jurisprudência não era uniforme e hesitava entre a opção por dois momentos possíveis a partir de um dos quais se contaria a interrupção da prescrição: o momento da notificação para o interrogatório ordenado pelo Ministério Público – no que algum apoio se poderia encontrar na redacção do Código Penal de 1982 que elegia o momento da notificação para a interrupção da prescrição, ou o momento da realização desse interrogatório que implicava, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 58º do Código de Processo Penal, na nova versão de 1987, a necessária constituição como arguido do interrogado. No acórdão sob recurso optou-se por este segundo momento, conforme se retira dos passos que agora se transcrevem:
'Pois bem, como faz realçar o ilustre recorrente com mestria e erudição, a
«questão» que é objecto do presente recurso é delicada e obteve posições díspares por parte da Jurisprudência no domínio do Código Penal de 1982 ou seja antes da redacção que lhe foi introduzida ou melhor antes das alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março [...].'
E, mais à frente, depois de se negar que a interpretação extensiva a que aludia o acórdão do Supremo atrás citado fosse 'inovadora' e proibida pelo art. 29º, nº4, da Constituição, concluía-se:
'O recorrente foi interrogado como arguido em 25 de Outubro de 1989 (fls. 31) no âmbito do inquérito efectuado pelo Ministério Público e por este Magistrado. Sendo assim nesta data interrompeu-se o prazo de prescrição do procedimento criminal contra o recorrente tendo em conta o estatuído no art. 120º, nº 1 alínea a), do Cód. Penal de 1982 na interpretação por nós sufragada desta norma penal.' (a fls. 475 dos autos)
Das considerações que antecedem não parece que o tribunal recorrido tenha procedido a uma interpretação que possa apodar-se de actualista no sentido de se lhe poder associar uma aplicação retroactiva de lei posterior, no caso, o Código Penal com as alterações de 1995. É que as duas correntes jurisprudenciais indicadas se formaram a partir de 1987, antes da entrada em vigor das alterações ao Código Penal que foram introduzidas em 1995. Por uma delas, como se viu, optou a decisão sindicada, não podendo dizer-se que terá procedido à aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 121º do Código Penal revisto, interpretada como aplicável a um caso passado e, consequentemente, que terá aplicado retroactivamente esta norma, com alegada violação do disposto no n.º 4 do artigo
29º da Constituição.
9. - Certo é porém que o recorrente impugnou a norma de formação jurisprudencial, ainda que aplicada já depois da entrada em vigor da revisão do Código Penal de 1995, e tanto basta para que se deva e possa entender que o objecto do recurso nem por isso sofreu alteração, identificada que foi por ele essa norma da forma precisa como foi.
Foi assim aplicado o artigo 120º, n.º1, alínea a) do Código Penal de 1982, no entendimento de que a prestação de declarações como arguido no âmbito de inquérito efectuado pelo Ministério Público e por este Magistrado, interrompe a prescrição do procedimento criminal. E foi aplicada, sublinhe-se, em um contexto normativo em que aquela norma, na sua formulação literal, determinava o efeito jurídico em referência apenas como consequência da notificação de alguém, para comparência ou interrogatório como arguido, no âmbito da instrução preparatória, dirigida por um juiz, que, pelo menos, procedia ao interrogatório do arguido
(cfr. artigo 159º, § 2º, do Código de Processo Penal de 1929).
Por outras palavras, a formulação literal da norma não cobre a distância ideal, em termos de estatuto processual, que vai da prestação de declarações perante qualquer autoridade judiciária (maxime Ministério Público) ou órgão de polícia criminal (maxime Polícia Judiciária), no decurso de um inquérito, até à notificação para prestação de declarações como arguido perante um juiz. O certo é que, por força das alterações legais entretanto sobrevindas, a primitiva formulação literal perdera objecto de aplicação, já que fora suprimida a instrução preparatória e com ela a realização de interrogatório por juiz. Foi essa distância preenchida por uma interpretação que o acórdão recorrido qualificou como extensiva, como resulta das transcrições a que se procedeu, e como interpretação actualista, censurada pelo recorrente atendendo ao que, segundo ele, nela coube de aplicação retroactiva de regime superveniente ou de integração de uma lacuna, que até então não existia.
Não procede pois a arguição de inconstitucionalidade material da norma em questão formulada pelo recorrente com fundamento em alegada aplicação retroactiva do disposto no artigo 121º, n.º 1, alínea a), do Código Penal revisto “de forma a integrar uma tal ou qual lacuna (in)existente no artigo
120º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma, redacção primitiva” (conclusão B.11.das suas alegações.
10 - Mas, identificada a norma e colocada a questão suscitada pelo recorrente no respectivo contexto sistemático, não está o Tribunal impedido de apreciar a conformidade à Constituição da norma sindicada à luz de normas e princípios constitucionais diferentes daqueles cuja violação foi invocada (artigo 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional). Aliás o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão n.º 205/99, alcançou um juízo de inconstitucionalidade por outros fundamentos em termos que não se vê razão para alterar e, por isso, vão ser retomados, em seguida, nas suas linhas gerais.
Não carece o Tribunal de tomar posição sobre a qualificação como interpretação ou integração de lacuna do discurso fundamentador da decisão em análise. Determinante é algo de prévio a essa problemática porque se situa no plano das disposições legais sobre as quais incidiu a qualificação aludida, sendo que os complexos problemas que lhe são associados só a posteriori se tornaram patentes. E não poderá omitir-se que na matéria a certeza do direito vai conjugada com valores de primeira ordem, como são aqueles que são tutelados pelo instituto da prescrição do procedimento criminal.
Esse plano, como se disse, é o do direito constituído, o do direito que vigorou entre 1987, desde a eliminação da instrução preparatória, e 1995, com a adopção de uma solução legislativa que passou a harmonizar o Código Penal com o Código de Processo Penal vigente desde 1987.
Na decisão recorrida foi aplicada uma orientação jurisprudencial que operou essa harmonização, reconduzindo a notificação para a comparência ou interrogatório como arguido na instrução preparatória à prestação de declarações em inquérito contra pessoa determinada. Desta forma foi preenchida a “distância ideal” acima aludida. Mas importa assinalar duas coisas. Em primeiro lugar, não se tratou, aí, de uma mera transposição directa como aquela que seria possível entre situações equivalentes – inquérito e instrução preparatória, interrogatório por autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal e interrogatório por juiz, não são momentos da tramitação processual penal com a mesma carga de sentido garantístico. Por outro lado, a recondução de uma figura à outra deixou de lado outras opções que prima facie seriam também possíveis. Designadamente, entre
1987 e 1995, poderia admitir-se que na fase de inquérito só operassem a interrupção actos em que interviesse um juiz.
A argumentação que neste plano se desenvolve não tem que descer ao plano da conformidade do conteúdo da orientação jurisprudencial com as normas constitucionais, e por isso não tem de levar em conta a qualificação da harmonização a que procedeu o acórdão recorrido como integração de lacunas ou como interpretação extensiva . Por outro lado, não é de constitucionalidade por violação directa de princípios materiais substantivos que aqui se discorre, sem prejuízo da projecção que nestes princípios terão as deficiências que serão assinaladas. É sim acerca de um patente défice de normação legal que abriu lugar
à génese de orientações jurisprudencais não uniformes, com manifesto prejuízo da segurança jurídica. E cabe então perguntar se é compatível com a Constituição, não em primeira linha a orientação jurisprudencial acolhida na decisão em apreciação, mas sobretudo a opção do legislador por deixar ao cuidado do julgador a determinação dos contornos precisos da regulação legal em matéria tão delicada e com atinências directas com direitos liberdades e garantias de extrema relevância. É prática corrente, por ocasião da introdução de reformas de fundo em instrumentos legislativos extensos, como são os códigos, esperar do labor jurisprudencial, mais próximo das situações da vida, soluções obtidas dentro do espírito do sistema reformado; mas em matérias que contendem com a liberdade dos cidadãos, há riscos que podem ir além do que a Constituição consente.
Na verdade, quer se entenda que a prescrição do procedimento criminal é matéria de direito criminal substantivo quer se entenda que é de natureza criminal adjectiva (v. sobre matéria da prescrição, Eduardo Correia, “Actos processuais que interrompem a prescrição”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano
94, pág. 353 e Ano 108, pág. 361 e ss.; Figueiredo Dias, “Consequências jurídicas do crime”, 1993, pág. 698 e ss.; Fernanda Palma, “Princípio da aplicação retroactiva da lei (penal) mais favorável e alteração dos prazos prescricionais no direito de mera ordenação social”, in Revista Fisco, n.º34,
1991), resulta da Constituição que se trata de matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 168º (agora artigo 165º) da Lei Fundamental e matéria coberta por reserva absoluta de lei, ou seja, matéria em que está excluído um labor de criação normativa por parte de órgãos titulares de outras funções do Estado. Não se infira do que vem dito que a Constituição veda a actividade interpretativa em sentido lato a que necessariamente procedem todos aqueles que são chamados a aplicar o direito. Sobre o ponto não há que entrar em aprofundados desenvolvimentos que relevam dos domínios mais profundos da teoria do direito. O que interessa sublinhar para os efeitos do presente acórdão é que a “interpretação” consentida, pelo menos nos domínios da reserva absoluta de norma legislativa, não pode situar-se no mesmo nível em que se situam as normas já dotadas de valor formal de lei, que é um nível de plena criação do direito que a Constituição atribui em exclusividade ao legislador, ainda que essa actividade surja algo condicionada e não extravasando abertamente do sentido do sistema, o que tem de se reconhecer no presente caso.
Em matéria da prescrição do procedimento criminal, é sem dúvida questionável a existência de um verdadeiro direito do agente a que a inércia do Estado na perseguição penal o beneficie; mas é inquestionável que a lei reconhece que a perseguição criminal tem um “tempo” próprio e certo para ser desencadeada e promovida. Ou seja, a não prescrição do procedimento criminal é condição jurídica do exercício da acção penal - «orientada pelo princípio da legalidade», conforme exige a Constituição no artigo 219º, n.º 1.
Mas acresce que a introdução de um grau relevante de incerteza neste campo repercute-se por sua vez na consistência do princípio de legalidade que preside
à aplicação da lei criminal, conforme exigência dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º da Constituição. A punição criminal pressupõe lei anterior, mas lei que tem de ser certa. Por isso neste domínio é incompatível com a Constituição uma interpretação “criadora”, que no caso foi tornada indispensável pela falta de adequada previsão legal inequívoca.
No citado Acórdão n.º 205/99, na linha do que se vem expondo, chegou-se ao entendimento de que “os raciocínios analógicos que permitiram ao intérprete, no acórdão recorrido, manter a aplicação do artigo 120º, n.º 1, alínea a), através de uma interpretação actualista partem de opções sobre a compatibilização do Código Penal com o Código de Processo Penal que não são livremente disponíveis pelo intérprete, mas que pela sua repercussão em direitos fundamentais são objecto necessário de reserva de lei [artigo 165º, alíneas b) e c), da Constituição]”
E continuou-se, concluindo:
“Deste modo, conclui-se que o artigo 120º, nº1, alínea a), do Código Penal , na dimensão normativa que realiza a conversão da notificação para a instrução preparatória na notificação para o primeiro interrogatório do arguido no inquérito, embora não tenha que ser necessariamente qualificado como uma norma criada por analogia, no sentido clássico da distinção entre analogia e interpretação, é pelo menos o resultado de uma interpretação actualista da lei baseada em raciocínios analógicos, que implicam opções constitutivas de um regime, as quais pertencem à reserva de lei da Assembleia da República prevista nos artigos 165º, alíneas b) e c) da Constituição.
Poder-se-á, assim, concluir para quem perfilhe a concepção dogmática mais clássica sobre a interpretação e analogia que estaremos necessariamente perante um resultado interpretativo que ultrapassa o sentido possível das palavras e que, por isso, já não tem fundamento no pensamento legislativo.
Mesmo que assim não se entenda, admitindo-se que seja discutível que se tenha procedido a uma integração de lacunas por analogia, na medida em que há um critério jurídico que o intérprete retirou ainda do texto legal através da sua conversão na linguagem do novo sistema processual penal, pelo menos sempre concluirá que há uma colisão entre as possibilidades interpretativas utilizadas no caso e as autorizadas ao intérprete pela reserva de lei, violando-se o artigo
29º, nºs 1 e 3 [entre nós com a concretização qualificada do artigo 165º, alíneas b) e c), da Constituição]. Em suma, para esta última linha de pensamento, a interpretação realizada do artigo 120º, nº 1, alínea a), independentemente da sua qualificação enquanto espécie de interpretação, confere ao referido artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 uma dimensão normativa que pressupõe uma ponderação constitutiva de soluções jurídicas, pelo intérprete, com implicação na configuração das consequências do crime, tarefa da competência da Assembleia da República [artigo 165º, nº1, alíneas b) e c)] e que, por isso, também não está contida na intenção legislativa.'.
Alcançada esta conclusão, torna-se desnecessário afrontar a qualificação da interpretação feita nos autos (extensiva ou analógica) e da respectiva validade em Direito Penal bem como da compatibilidade constitucional
(v., sobre a matéria os autores citados no Acórdão n.º 205/99 e que aqui se deixam também referidos: Castanheira Neves, O princípio da legalidade criminal, in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, I, 1984, pág. 308 e ss.; Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, I, 1992, pág. 64; Sousa e Brito, Lei Penal na Constituição, em Estudos sobre a Constituição, 2º Vol.,
1978, pág. 253; Teresa Beleza, Direito Penal, 2ª ed., 1985, pág. 491 e ss.; Fernanda Palma, Direito Penal - Parte Geral, 1994, pág. 94 e ss.).
Por outro lado, conforme já se deixou referido atrás (ponto 8.), não pode falar-se no caso de uma aplicação retroactiva da lei nova – da norma do artigo 121º, n.º1, alínea a) do Código Penal revisto em 1995 -, uma vez que “o critério jurídico da decisão não foi, assim, reportado ao novo texto da lei penal, introduzido somente após a prática dos factos, mas sim à norma já vigente, interpretada actualisticamente. Desta sorte, não só a interpretação actualista não era em si mesma uma aplicação retroactiva do Direito Penal porque pressupunha, pelo apoio literal em que se ancorava, que o sentido objectivo da lei já era determinável antes da prática dos factos, como também é indiscutível que a dimensão normativa sub judicio resultava de vários arestos proferidos antes da prática dos factos (...)”.
Nestes termos, não pode deixar de proceder o presente recurso de constitucionalidade.
III – DECISÃO:
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional o artigo 120º, nº1, alínea a), do Código Penal, interpretado no sentido de que a interrupção do prazo prescricional se verifica a partir da notificação para as primeiras declarações do arguido na fase do inquérito, por violação do artigo
29º, nºs 1 e 3, da Constituição e, em consequência, conceder provimento ao recurso devendo a decisão recorrida ser reformulada de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 11 de Maio de 1999 Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Maria Helena Brito (vencida, nos termos da declaraçãode voto junta)
Artur Maurício (Sem prejuízo de reponderação da solução da questão, aflorada, sobre o conhecimento do objecto do recurso, que me suscita algumas dúvidas voto vencido quanto à decisão de mérito nos termos da declaração de voto da Exmª Consª Maria Helena Brito) Luís Nunes de Almeida (vencido quanto à questão prévia do conhecimento do recurso, nos termos da declaração de voto junta).
Declaração de voto
O projecto de acórdão que apresentei como relatora não obteve vencimento. Nesse projecto sustentei a não inconstitucionalidade da interpretação dada na decisão recorrida à norma do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal (versão de 1982), pelos fundamentos que seguidamente, em síntese, se enunciam.
1. À data da prática dos factos, e até 1995, não existia uma interpretação unívoca da norma do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
Com efeito, após a aprovação do Código de Processo Penal de 1987, cedo se pôs o problema da articulação entre o seu regime e a disciplina penal do instituto da prescrição. Tendo o novo Código de Processo Penal substituído a fase da instrução preliminar pela do inquérito, conferiu também ao Ministério Público a função de condução deste último. Ora, quando o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal (versão primitiva) considerava facto interruptivo da prescrição a tomada de declarações do agente, como arguido, na instrução preparatória, referia-se naturalmente – de acordo com o regime do Código de Processo Penal de
1929 – às declarações produzidas perante um juiz.
A jurisprudência seguiu rumos diferenciados quanto à interpretação do preceito do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal, tendo surgido fundamentalmente duas correntes.
A primeira, fazendo apelo à necessidade de compatibilizar os regimes penal e processual penal, entendia que a fase da instrução preparatória a que se referia o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal devia ser assimilada à do inquérito, introduzida pelo Código de Processo Penal de 1987. Realizava assim uma interpretação actualista do artigo 120º, nº 1, alínea a). Esta orientação jurisprudencial encontrava eco, na doutrina, em J. Figueiredo Dias, Direito penal português. As consequências jurídicas do crime, Lisboa, 1993, p. 710.
Uma segunda corrente jurisprudencial, no entanto, defendia solução diversa. O artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal pretenderia reservar apenas para a tomada de declarações perante órgão jurisdicional a faculdade de interromper o prazo prescricional do procedimento criminal, pelo que não seria admissível proceder a uma interpretação extensiva do mesmo.
A existência destas duas orientações – de que dá conta o texto do acórdão –demonstra que a interpretação realizada pelo juiz a quo não implica necessariamente uma aplicação retroactiva do artigo 121º, nº 1, alínea a), do Código Penal, norma que, na revisão efectuada em 1995, veio de modo expresso actualizar a disciplina jurídico-penal da prescrição, articulando-a com o regime processual penal actualmente vigente.
O artigo 121º, nº 1, alínea a), do Código Penal (versão de 1995) não consagrou portanto uma solução verdadeiramente inovatória, que leve a crer na sua aplicação retroactiva; limitou-se a acolher uma solução que se situava, à data da prática dos factos típicos, dentro dos “quadros da controvérsia” admissíveis em função da desarticulação entre o regime do Código Penal (ainda recortado em função do Código de Processo Penal de 1929) e o do Código de Processo Penal (que revogou o Código de Processo Penal de 1929, substituindo a fase da instrução preparatória, conduzida por um juiz, pela fase do inquérito preliminar, cujo dominus é o Ministério Público).
Quer na primeira instância, quer na Relação, o julgador limitou-se a optar por uma das leituras possíveis das normas em vigor no momento da prática dos factos, leitura essa que merecia apoio de uma parte significativa da jurisprudência e da doutrina.
Não tendo existido aplicação retroactiva da norma do artigo 121º, nº
1, alínea a), do Código Penal (versão de 1995), não se colocando sequer no caso um problema de sucessão de leis penais no tempo, não há que invocar, neste contexto, o artigo 29º, nº 4, da Constituição.
2. Importa todavia determinar se, à luz dos princípios interpretativos rigorosos que vigoram em Direito Penal, nomeadamente o princípio da legalidade do qual deriva claramente a proibição de integração analógica, é constitucionalmente admissível a interpretação actualista, rectius, extensiva, do regime penal da prescrição.
Para tanto, cabe em primeiro lugar averiguar da natureza do instituto da prescrição e, em segundo lugar, da conformidade da operação de interpretação extensiva com o artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
2.1. Na lição de Figueiredo Dias, a prescrição tem desde logo uma vertente substantiva, que se traduz, quer em razões de prevenção especial, quer em razões de prevenção geral. O decurso do tempo faz com que a comunidade atenue o juízo de culpa que recai sobre o agente, levando a que a sua punição perca progressivamente sentido:
“[...] quem fosse sentenciado por um facto há muito tempo cometido e mesmo porventura esquecido, ou quem sofresse a execução de uma reacção criminal há muito tempo já ditada, correria o sério risco de ser sujeito a uma sanção que não cumpriria já quaisquer finalidades de socialização ou de segurança. Finalmente, e sobretudo, o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, já apaziguadas ou definitivamente frustradas” (J. Figueiredo Dias, Direito penal português. As consequências ..., cit., p. 699).
De uma perspectiva processual, o instituto encontra também razão de ser na circunstância de a prova se tornar consideravelmente mais difícil à medida que o tempo vai passando sobre a data da prática dos factos criminalmente puníveis.
O decurso do tempo sobre a prática do facto coloca-o a salvo de qualquer medida punitiva. Por isso, a prescrição não se configura como uma causa de exclusão, nem da ilicitude, nem da punibilidade, mas sim como uma causa de exclusão da punição. Nessa medida, conclui Figueiredo Dias, adquire uma natureza indubitavelmente substantiva, que a localiza na doutrina das consequências jurídicas do crime (em sentido semelhante, já antes, Eduardo Correia, Anotação ao assento de 19 de Novembro de 1975, “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, Ano 108º, nº 3560, p. 361 ss).
A natureza predominantemente substantiva da prescrição – ou mista, se se preferir – faz com que a interpretação das normas disciplinadoras do seu regime se rejam pelo princípio constitucional da legalidade.
A aplicação de tais normas, por seu turno, está subordinada ao princípio de não retroactividade incriminadora (corolário do princípio da legalidade), ficando, portanto, ao abrigo da regra de aplicação imediata das normas de conteúdo estritamente processual. Vale neste domínio a regra da aplicação do regime legal que concretamente for mais favorável ao arguido, quando se colocarem problemas de sucessão de leis penais no tempo (cfr. Germano Marques da Silva, Direito penal português. Parte geral, I – Introdução e teoria da lei penal, Lisboa, 1997, p. 272; Maria Fernanda Palma, Princípio da aplicação retroactiva da lei (penal) mais favorável e alteração de prazos prescricionais no direito de mera ordenação social: comentário ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24 de Abril de 1991, “Fisco”, Setembro de 1991, nº 34, p. 25 ss). A conclusão impõe-se porque o instituto da prescrição condiciona o exercício da acção penal, e, em consequência, a efectivação da responsabilidade penal.
Mas essa questão só se coloca nos casos de autêntica sucessão de leis penais no tempo, o que, como se viu, não acontece no caso dos autos.
2.2. A segunda questão reside em saber se, no domínio jurídico-penal, a interpretação extensiva é admissível.
Importa, no entanto, antes de entrar na análise do problema, começar por distinguir interpretação actualista de interpretação extensiva, termos que são utilizados de forma sinónima, quer nos autos, quer pelo recorrente.
O actualismo contrapõe-se ao historicismo e traduz-se, para o intérprete, na imposição de leitura da norma de acordo com “as condições específicas do tempo em que é aplicada” (cfr. artigo 9º, nº 1, in fine, do Código Civil). Constitui uma técnica de interpretação, acolhida pelo nosso Código Civil, que representa uma exigência de racionalidade e operatividade das normas jurídicas.
Já a interpretação extensiva é um resultado da operação interpretativa, consequência da necessidade de conferir à lei a sua plenitude de significação, perante uma insuficiente expressão do texto da lei. Constitui um dos resultados possíveis da interpretação de uma norma, devendo a sua admissibilidade ser compaginada com os critérios hermenêuticos próprios do ramo do Direito em que actua, nomeadamente, no caso sub judice, do Direito Penal.
O artigo 1º do Código Penal é um reflexo do artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa – é direito constitucional concretizado. Elegendo o princípio da legalidade como trave-mestra de um ordenamento essencialmente restritivo, estes dispositivos são uma garantia do indivíduo em face do poder punitivo do Estado, alicerçando-se, em última análise, no princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição).
O respeito pelo princípio da culpa e as preocupações de segurança jurídica subjacentes a estes normativos exigem do legislador ordinário um cuidado especial na elaboração das leis penais, que devem ser claras. Nesta perspectiva, quer o artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, quer o artigo 1º do Código Penal, em homenagem ao princípio da legalidade das condutas penalmente puníveis, e das penas e medidas de segurança aplicáveis, traçam uma fronteira inultrapassável para o intérprete/aplicador da lei penal: o apoio literal da norma incriminadora.
A exigência de um apoio literal mínimo na operação de interpretação decorre, desde logo, do artigo 29º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, que obriga à cominação expressa na lei das penas e medidas de segurança. O artigo 1º, nº 1, do Código Penal reforça este entendimento, empregando as expressões “descrito” e “declarado” relativamente ao facto punível. Daqui resulta a proibição do recurso à analogia, aliás expressamente vedada pelo artigo 1º, nº 3, do Código Penal.
A proibição legal do recurso à integração analógica, no domínio jurídico--penal relaciona-se, evidentemente, com o respeito pelo princípio da culpa, e com a circunstância de as penas e medidas de segurança só poderem cumprir a sua função de prevenção geral se forem do conhecimento do agente à data da prática dos factos típicos criminalmente puníveis. Ninguém pode ser sujeito a um juízo de culpabilidade com base numa norma inexistente à data da prática do ilícito criminal, assim como ninguém se há-de sentir ameaçado por uma norma que, literalmente, não prevê a conduta como punível.
A interpretação, é, porém, distinta da integração analógica (cfr. Oliveira Ascensão, O direito. Introdução e teoria geral, 9ª edição, Coimbra,
1995, p. 430). Assim o demonstra a consagração da disciplina destas operações em disposições autónomas do Código Civil. Os artigos 9º e 10º do Código Civil – de onde derivam regras de interpretação de aplicação genérica a todos os ramos do Direito – são expoentes da distinção entre os casos em que do preceito ainda se pode extrair um sentido, embora por recurso a técnicas de interpretação extensiva e restritiva e as situações em que o intérprete/aplicador se vê forçado a procurar lugares paralelos em outros preceitos ou a criar a norma a partir do “espírito do sistema”, a fim de encontrar a regulamentação do caso omisso.
As características específicas do Direito Penal conduzem a uma maior exigência na utilização dos critérios emergentes do artigo 9º do Código Civil. Mas não afastam a sua aplicação, na medida em que o que se pretende é fazer interpretação da norma, ou seja, extrair dela um sentido, dentro do seu limite literal (cfr. Teresa Beleza, Direito penal, 2ª edição, Lisboa, 1985, p. 491 ss). O artigo 9º, nº 2, do Código Civil a isso obriga, circunscrevendo o intérprete ao sentido que tenha “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.
No entanto, o sentido da norma encontra-se fazendo apelo aos vários elementos de interpretação. É que, “uma vez escritas, e inseridas num dado contexto, as palavras adquirem um conteúdo objectivo, referenciável ao seu espaço e ao seu tempo, isto é, determinável «tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9º, nº 1 do Código Civil)”
(Teresa Beleza, Direito penal, cit., p. 493).
A interpretação extensiva é um resultado da operação de interpretação a que se chega através da extensão da letra à ratio da norma. Quando o intérprete conclui que a lei, por imperfeição, ficou aquém, na expressão literal, da sua intenção normativa, deve apoiar-se nos elementos extra-literais para fundamentar a solução extensiva. Mas isso, note-se, com respeito pelos limites literais da norma. A letra da lei deve ser o ponto de partida e de chegada do intérprete, ainda que a sua expressão não seja a mais conseguida.
Do que se conclui que a proibição, dirigida ao intérprete/aplicador, de exceder o limite máximo possível da letra, imposta pelo artigo 9º do Código Civil, coincide com a preocupação reflectida no artigo 29º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que o segmento constitucional “expressamente cominadas” tem a sua equivalência na expressão “mínimo de correspondência verbal” constante do artigo 9º, nº 2, do Código Civil (Teresa Beleza, Direito penal, cit., p. 502, 509).
2.3. Estabelecida a natureza (mista) do instituto da prescrição – e a submissão da interpretação do seu regime a critérios materiais, maxime, ao princípio da legalidade vigente no Direito Penal – e provada a admissibilidade de se obter um resultado interpretativo da norma penal correspondente a uma interpretação extensiva, cabe resolver a questão emergente do presente recurso: pode considerar-se (tal como considerou o tribunal a quo), que a prestação de declarações, na qualidade de arguido, perante órgão de polícia criminal, ordenada pelo Ministério Público, ou perante o próprio Ministério Público, equivale, nos termos do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal (versão de
1982), à prestação de declarações “em audiência preparatória”, perante órgão jurisdicional – de acordo com o regime do Código de Processo Penal de 1929, revogado pelo Código Penal de 1987, que veio substituir a audiência preparatória pela fase de inquérito preliminar, conduzida pelo Ministério Público –, para efeitos de interrupção da prescrição do procedimento criminal ?
À questão paralela a esta, que se colocou no domínio do direito anterior, foi dada resposta afirmativa por Eduardo Correia, no estudo intitulado Actos processuais que interrompem a prescrição do procedimento criminal (a propósito do assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Maio de 1961),
“Revista de Legislação e de Jurisprudência”, Ano 94º, nºs 3212 s, p. 353 ss.
A assimilação da fase do inquérito à fase da audiência preliminar existente na vigência do Código de Processo Penal de 1929 decorre de uma exigência de articulação entre a lei penal e a lei processual penal. Dir-se-ia que, neste domínio, o legislador deveria ter sido especialmente cauteloso na regulamentação das situações procedendo a uma actualização da lei penal de acordo com as necessidades impostas pela reforma da lei processual penal. No entanto, não tendo sido feita tal compatibilização, cabe ao intérprete/aplicador colmatar esta desarticulação, dentro do sentido admissível pela norma.
Ora, apesar da imperfeição de expressão – é evidente a diferença entre
“audiência preparatória” e “inquérito” –, resulta clara a intenção do legislador de substituir uma fase por outra (aceitando a correspondência entre o
“inquérito” e a “instrução preparatória”, Germano Marques da Silva, Curso de processo penal, III, Lisboa, 1994, p. 65). E nem se diga que os direitos de defesa do agente não ficaram suficientemente acautelados com a substituição do juiz pela figura do magistrado do Ministério Público, com possibilidade de delegação nos órgãos de polícia criminal: na verdade, não só o artigo 58º do Código de Processo Penal consagra a figura do arguido e disciplina o modo da sua constituição, aliando-lhe todo um conjunto de direitos, como obriga, nos casos mais graves, à pronta intervenção de um órgão jurisdicional para audição do agente, sempre que houver lugar a detenção.
Alhear o instituto da prescrição deste entendimento seria criar um vazio injustificado no contexto global do sistema jurídico-penal, pois só para efeitos de interrupção da prescrição do procedimento criminal é que a constituição de arguido não operaria. Ou seja: movimentando-se dentro do Código de Processo Penal de 1987, o julgador considera constituído como arguido o agente ouvido por
órgão de polícia criminal, sob convocação do Ministério Público, ou pelo próprio Ministério Público; já no âmbito do Código Penal, para efeitos de prescrição, o agente só se consideraria legalmente constituído na figura de arguido quando ouvido por um juiz – num reduzido número de situações, a saber: quando se encontra detido ou quando, já depois de decorrida a fase de inquérito e uma vez deduzida acusação pelo Ministério Público, requer a abertura da instrução, sendo que até este último momento, dentro desta lógica, não seria arguido, não gozando, nessa sequência, dos direitos inerentes a esta figura.
Transpondo a ideia de Larenz, o sentido possível é “tudo aquilo que nos termos do uso linguístico que seja de considerar como determinante em concreto – mesmo que, porventura, em circunstâncias especiais – pode ainda ser entendido como o que com esse termo se quer dizer” (K. Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa por José Lamego, 2ª edição, Lisboa, 1989, p. 388). A necessidade de articulação entre os regimes do Código Penal (versão de 1982) e do Código de Processo Penal (de 1987) obriga a que, de “entre várias interpretações possíveis [deva] ter prevalência aquela que possibilita a garantia de concordância material com outra disposição” (K. Larenz, Metodologia..., cit., p. 391), desde que isso não viole os cânones interpretativos superiormente impostos. Só uma visão estritamente formalista e desligada da realidade contestaria a possibilidade de realizar uma operação de interpretação extensiva a fim de fazer a articulação necessária entre o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal
(versão de 1982) e o regime estabelecido no Código de Processo Penal de 1987. A invocação do princípio da legalidade que envolve a operação de interpretação da norma – apesar da particular relevância que tal princípio assume no domínio jurídico-penal – não pode conduzir a um resultado absurdo, como seria a diferenciação do regime da constituição de arguido entre a lei penal e a lei processual penal.
Em conclusão: a interpretação feita pelo tribunal a quo do artigo
120º, nº 1, alínea a), do Código Penal (versão de 1982) também não contraria o artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
Maria Helena Brito
Declaração de voto
Votei vencido, apenas por entender que se não devia tomar conhecimento do recurso.
Com efeito, tal como se afirma na declaração de voto junta pelo Ex.mo Conselheiro-Presidente ao Acórdão nº 205/99, «já não está em causa, na situação, uma questão de inconstitucionalidade normativa», mas antes uma situação estruturalmente idêntica às tratadas nos Acórdãos nº 221/95 e nº 682/95, bem como – acrescento – nos Acórdãos nº 756/95 e nº 154/98.
Neste último aresto, aliás, não se tomou conhecimento do recurso – a meu ver, bem – com o expresso fundamento de a invocada violação do artigo 29º, nº 1, da Constituição por uma interpretação analógica de uma norma penal ordinária não se poder integrar no «controlo normativo» atribuído ao Tribunal Constitucional, apenas «abrindo via, quando muito, a um recurso de amparo que não está entre nós previsto». Luís Nunes de Almeida