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Processo n.º 105/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho do Juiz do 4º Juízo Cível da comarca do Porto, de 9 de Novembro de 1998. Nesse despacho, o Juiz recorrido, com fundamento na falta de título executivo, indeferiu liminarmente o requerimento, apresentado pelo HOSPITAL..., para instaurar execução contra a C..., SA, com vista à cobrança da quantia de
2.560.293$00, relativa a despesas feitas com a assistência prestada e a tratamentos feitos a um sinistrado em acidente de viação, em que interveio um veículo automóvel cujo proprietário transferira a sua responsabilidade para aquela companhia de seguros, e a juros de mora vencidos.
O Juiz concluiu pela falta de título executivo, porque recusou aplicar, com fundamento na sua inconstitucionalidade (violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental), a norma constante do artigo 4º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro. E concluiu desse modo, depois de ter afirmado que aderia integralmente à jurisprudência que considera constitucionalmente irrepreensível 'a possibilidade legal de criação de um título executivo constituído por via administrativa'.
É a norma do artigo 4º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, que o recorrente pretende ver apreciada ratione constitutionis.
Neste Tribunal, o PROCURADOR-GERAL ADJUNTO aqui em funções concluiu as suas alegações do modo que segue:
1º. A norma constante dos nºs 1 e 2 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, ao estabelecer quem tem legitimidade para figurar como executado no procedimento especial ali regulado, não traduz a inovatória imposição de certas
'classes de sujeitos' de uma responsabilidade civil, estruturada à revelia do disposto no Código Civil, limitando-se a traduzir a concretização de critérios gerais plasmados no Código Civil sobre tal matéria à especificidade do procedimento em causa.
2º. Tal legitimidade processual funda-se, aliás, na alegada existência de um contrato de seguro de responsabilidade civil e na responsabilidade civil por factos ilícitos do proprietário do veículo emergente de uma presumida direcção efectiva e utilização interessada da viatura que interveio no acidente de viação, enquadrável no artigo 503º do Código Civil.
3º. Termos em que deverá proceder o presente recurso, por tal definição de legitimidade processual do executado não ofender manifestamente nenhuma norma ou princípio constitucional.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. O artigo 4º do Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, reza assim: Artigo 4º (Dívidas resultantes de tratamentos a sinistrados por acidentes de viação)
1. Em caso de dívidas resultantes de assistência ou de tratamentos prestados a sinistrados em acidentes de viação, a execução corre solidariamente contra o transportador e a respectiva seguradora, se seguro houver.
2. Se o sinistrado não circular em qualquer veículo, a execução corre contra a entidade seguradora do veículo ou dos veículos que tenham intervindo no sinistro, salvo se ocorrer qualquer das causa de exclusão da responsabilidade a que se refere o artigo 505º do Código Civil.
Este normativo foi, por diversas vezes, questionado sub specie constitutionis, conjuntamente com os artigos 2º, n.º 2, alínea a), e 6º do mesmo diploma legal, porque deles resulta que as certidões de dívida hospitalar têm força executiva, apesar de emitidas pelos hospitais, sem uma prévia definição da responsabilidade feita pelo juiz. Este Tribunal, colocado perante tal questão, sempre concluiu que tais preceitos legais não violam qualquer norma ou princípio constitucional: designadamente, não violam a reserva do juiz (artigo 202º da Constituição), nem o princípio da igualdade (consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental), nem os princípios da proporcionalidade, da justiça ou da segurança jurídica [ cf., entre muitos outros, os acórdãos nºs 760/95, 761/95 (publicados no Diário da República, II série, de 2 de Fevereiro de 1996) e nºs 11/96, 411/96, 742/96 e 411/96 (todos por publicar)] .
No tocante ao princípio da igualdade, alegaram então as seguradoras que os normativos referidos as desfavoreciam, pois que só lhes permitiam que se defendessem por embargos. A essa objecção, deu o Tribunal a seguinte resposta: de um lado, as seguradoras encontram-se na situação de qualquer outro devedor contra o qual o credor, munido de título executivo, instaura execução; de outro, a diferença de tratamento entre os devedores que são logo demandados em acção executiva e aqueles contra quem o credor tem que instaurar acção de condenação, 'tem justificação bastante pela incorporação do crédito no próprio título, razão pela qual tal diversidade não constitui arbitrária desigualdade' (cf. o citado acórdão n.º 761/95). Ao que acresce que a desigualdade também não pode fazer-se decorrer do facto de as seguradoras, que, na execução, se defendam por embargos, precisarem de prestar caução para conseguir a suspensão da execução: é que, se a execução embargada prosseguir, também o credor (exequente) só poderá ser pago, se prestar caução (cf. o citado acórdão n.º 761/95 e também o acórdão n.º 11/96, atrás referido).
Alegaram também as seguradoras - e nisso viam outra violação do princípio da igualdade - que os mencionados normativos criavam 'uma situação de inversão do
ónus da prova'.
A esta objecção respondeu o Tribunal, no referido acórdão n.º 761/95, que, se a seguradora executada opuser embargos à execução, nos quais alegue, verbi gratia,
'a inexistência de factualidade de onde decorra a responsabilidade civil extracontratual do segurado', não se vê que 'as regras sobre o ónus da prova que impendem sobre os lesados e lesante (in casu, a instituição ou serviço de saúde e o condutor e ou proprietário do veículo interveniente no acidente) se vão postar de jeito diferente relativamente a uma acção declarativa'. E, no também citado acórdão n.º 742/96, sublinhou-se que, na acção executiva, a seguradora que, na execução, seja demandada dispõe 'de amplas garantias de defesa, podendo ilidir o valor probatório reforçado atribuído ao título executivo'. Também as seguradoras argumentaram, para sustentar a existência de violação do princípio da igualdade, que 'o legislador, ao atribuir força de título executivo
às certidões hospitalares perante alguns particulares (maxime perante as seguradoras), ao defini-los, antes de qualquer juízo jurisdicional, como terceiros responsáveis, criou um verdadeiro regime de excepção violador do princípio da igualdade do cidadão perante a lei, consagrado no artigo 13º da Constituição'. A este argumento, respondeu o Tribunal, no referido acórdão n.º 742/96, nos termos seguintes: 'também a alegada violação do artigo 13º da Constituição não se verifica, na medida em que a selecção de ‘alguns particulares (maxime das seguradoras)’, identificados como terceiros responsáveis, não é arbitrária, fundando-se, antes, em critérios racionais. Tais critérios resultam da existência de contratos de seguro celebrados entre uma entidade seguradora e o transportador (artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 194/92)'.
4. Pois bem: a argumentação do despacho recorrido, para concluir pela existência de violação do princípio da igualdade, pode, ao cabo e ao resto, reconduzir-se ao argumento das seguradoras, que se referiu por último. Nele, ponderou, com efeito, o Juiz recorrido: Questão distinta [ ...] é saber se o legislador, à revelia das regras gerais de responsabilidade civil, pode definir (mesmo sem prejuízo dos meios de oposição consagrados no artigo 815º do Código de Processo Civil) quem é responsável pelas dívidas resultantes da assistência ou tratamentos prestados a sinistrados. A resposta será necessariamente negativa. A lei civil, com carácter geral e abstracto, consagra os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (leia-se por factos ilícitos ou pelo risco) nos artigos 483º e seguintes do Código Civil. O sujeito do dever de indemnizar há-de resultar da aplicação de tais critérios (incluindo aqueles respeitantes às presunções legais de culpa), repito, gerais e abstractos. Ora, o sujeito do dever de indemnizar as instituições hospitalares pelas despesas relativas à assistência ou tratamentos prestados a sinistrados será determinado de acordo com tais critérios, não sendo lícito ao legislador, por violação clara do princípio constitucional da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, designar como sujeito de tal dever, em relação às dívidas resultantes de assistência ou de tratamentos a sinistrados em acidentes de viação, certa classe de sujeitos (o transportador e a respectiva entidade seguradora, se seguro houver), nos casos em que o assistido circule num veículo (cf. artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro), e a entidade seguradora do veículo ou dos veículos que tenham intervindo no sinistro, no caso em que não circule em veículo algum (cf. n.º 2 do preceito citado).
Como a argumentação desenvolvida no despacho recorrido é idêntica - se não mesmo igual - àquela a que o Tribunal deu resposta no mencionado acórdão n.º 742/96, a resposta, também agora, tem que ser semelhante.
Vejamos, então: o que o artigo 4º, nºs 1 e 2, aqui sub iudicio, define é contra quem devem ser instauradas as execuções para cobrança de dívidas resultantes de assistência ou de tratamentos prestados a sinistrados em acidentes de viação. Concretamente, prescreve que, se o sinistrado circulava num veículo, a execução deve correr, solidariamente, contra o transportador e a respectiva seguradora
(no caso de haver seguro, obviamente); se o sinistrado não circulava em qualquer veículo, então a execução deve correr contra a seguradora (ou seguradoras) do veículo (ou dos veículos) que tenham intervindo no acidente, a menos, claro é, que ocorra no caso qualquer das causas de exclusão da responsabilidade civil a que se refere o artigo 505º do Código Civil.
O mencionado preceito legal define, pois, a legitimidade passiva para as execuções de que trata. E, para dizer quais os sujeitos que, aí, devem figurar como executados, lança mão, justamente, dos critérios da lei civil: a seguradora surge como executada, porque assumiu, por força do respectivo contrato de seguro, a obrigação de garantir a responsabilidade civil do dono do veículo em que o sinistrado se transportava; ou, quando este não era transportado em nenhum veículo, porque - e também por força do contrato de seguro - assumiu a obrigação de garantir a responsabilidade civil dos proprietários dos veículos que intervieram no acidente (é dizer: dos veículos 'causadores' do acidente).
Como os proprietários dos veículos que intervêm num acidente - e este é o caso dos autos, em que a execução foi proposta contra a seguradora do outro veículo interveniente - detêm, em princípio, a direcção efectiva dos mesmos e deles fazem, também em princípio, uma utilização interessada, não há nada de irrazoável ou arbitrário no facto de a norma aqui em apreciação mandar propor as execuções, para cobrança judicial das dívidas provenientes de assistência ou dos tratamentos a sinistrados em acidentes de viação em que esses veículos intervierem, contra as entidades que, por força de um contrato de seguro, assumiram a obrigação de garantir a respectiva responsabilidade civil. Tal norma mais não faz do que concretizar, no plano processual, a regra sobre responsabilidade civil por danos causados por veículos, constante do artigo 503º do Código Civil.
Assim sendo, tendo em conta, de um lado, que - como já atrás se fez notar - a norma sub iudicio não impede a seguradora de opor embargos à execução contra si instaurada e de, aí, fazer prova de que não é sobre ela que, no caso, impende o dever de indemnizar; e, de outro lado, que a mesma seguradora pode, inclusive, fazer prova de que se está perante um caso de exclusão de responsabilidade, por se verificar alguma das hipóteses previstas no artigo 505º do Código Civil; em direitas contas, nem sequer pode dizer-se que a norma que aqui se aprecia inova
(ao menos, inteiramente) em relação aos critérios sobre responsabilidade civil extracontratual, constantes daquele Código.
Aliás, se o fizesse (isto é, se inovasse inteiramente, fixando pressupostos em tudo diferentes dos fixados no Código Civil), isso não constituía, de per si, motivo de inconstitucionalidade.
É que, o Código Civil não é padrão de validade das normas que, no ordenamento jurídico, versam sobre responsabilidade civil extracontratual. O padrão de validade de todas as normas jurídicas (das do Código Civil incluído) é unicamente a Constituição, em cujo artigo 3º, n.º 3, se dispõe que 'a validade das leis [ ...] depende da sua conformidade com a Constituição'.
5. Conclusão: A norma sub iudicio não viola, pois, o princípio da igualdade, já que - repete-se - a solução jurídica que nela se contém, apresentando, embora, algumas especificidades, não é irrazoável ou arbitrária, como se mostrou.
Como este Tribunal tem dito repetidamente, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, impõe que se dê o mesmo tratamento ao que for essencialmente igual e se trate de maneira diferente o que for essencialmente desigual. Tal princípio não proíbe, porém, soluções jurídicas diferenciadas; apenas veda o arbítrio legislativo, as soluções legais que, por carecerem de fundamento material ou racional, sejam irrazoáveis ou injustificadas. Se houver motivo capaz de fundar materialmente determinado regime jurídico, não é o facto de ele ser um regime especial ou, mesmo, excepcional que o torna ilegítimo ratione constitutionis, que o mesmo é dizer no confronto com a exigência de igualdade que a ideia de justiça, própria de um Estado de Direito, faz ao legislador. [ Cf. sobre este princípio, designadamente, o acórdão n.º 241/97
(publicado no Diário da República, II série, de 15 de Maio de 1997), que concluiu que o artigo 9º do citado Decreto-Lei n.º 194/92, não viola o princípio da igualdade] . Ora, como já se viu, existe motivo ou fundamento capaz de justificar a solução jurídica constante da norma sub iudicio, à luz da exigência de igualdade que vai implicada nessa ideia de justiça. Conclui-se, assim, que a norma aqui em apreciação não é inconstitucional. Há, por isso, que conceder provimento ao recurso.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). conceder provimento ao recurso;
(b). consequentemente, revogar o despacho recorrido quanto ao julgamento de inconstitucionalidade nele feito, a fim de ser reformado em conformidade com o aqui decidido sobre a questão.
Lisboa, 5 de Abril de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida