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Processo n.º 175/14
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam em conferência na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., B., C. e D. intentaram ação declarativa, com processo ordinário, contra E., Limitada.
Contestou a Ré, deduzindo pedido reconvencional.
Foi proferida sentença que julgou improcedentes a ação e a reconvenção.
Desta decisão recorreram Autores e Ré para o Tribunal da Relação de Lisboa que julgou improcedente o recurso interposto pela Ré e parcialmente procedente o recurso interposto pelos Autores, tendo condenado a Ré a suspender o total funcionamento do aerogerador n.º 2, instalado no Parque Eólico de Joguinho II e a suspender o funcionamento dos geradores n.º 1, 3 e 4 do mesmo Parque, no período noturno e no entardecer, e a pagar aos Autores a quantia de € 20.000,00.
Os Autores e a Ré recorreram desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que julgou improcedente o recurso interposto pela Ré e parcialmente procedente o recurso interposto pelos Autores, tendo condenado a Ré a remover os aerogeradores n.º 1, 2, 3 e 4 e a pagar aos Autores a quantia de € 30.000.
A Ré arguiu a nulidade desta decisão, o que foi indeferido.
A Ré interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, nos seguintes termos:
O presente recurso fundamenta-se em duas questões distintas:
a) Na inconstitucionalidade material do art. 731º do Código de Processo Civil, por violação do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa, incluindo o recurso, vertido no art. 32º, n.º 2, bem como, o direito a um processo justo e equitativo, nos termos do art. 20º, n.º 5, conjugado com o preceituado no art. 32º, n.º 1 da Constituição da Republica, quando interpretado no sentido do Recorrente não poder, na Reclamação para a Conferência, pronunciar-se sobre o teor do Acórdão proferido, a final, do Recurso de Revista, apenas podendo sindicar os vícios próprios do regime da Sentença;
b) Na inconstitucionalidade material das normas vertidas no art. 335º, nºs 1 e 2 do Código Civil, quando interpretadas, conforme sucedeu no caso do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça nos presentes autos, no sentido de que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade (direitos de personalidade previstos no art. 26º, n.º 1 da Constituição da República) não pode ser objeto de quaisquer limitações, prevalecendo sobre o conteúdo essencial do direito de propriedade privada, vertido no art. 62º, n.º 1, sobre o conteúdo essencial da liberdade de iniciativa económica, plasmada no art. 61º, sobre o conteúdo essencial do direito ao ambiente e à qualidade de vida, vertido no art. 66º, e por violação drástica do princípios da proporcionalidade constante no art. 18º e da proteção da confiança, todos da Constituição da República, não admitindo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nos presentes autos, a concordância prática, entre os supra indicados direitos fundamentais colidentes.
As presentes questões de inconstitucionalidade foram já suscitadas em sede de requerimento de reclamação para a conferência do Supremo Tribunal de Justiça, apresentado a fls, ....
Esta circunstância foi justificada pelo facto de apenas o Acórdão proferido, nesta fase, pelo Supremo Tribunal de Justiça, ter conferido, quanto à segunda questão suscitada, uma interpretação às normas constantes no art. 335.º do Código Civil, que colide com os supra referidos direitos fundamentais e princípios constitucionais. Na realidade, pese embora a Recorrente tivesse sempre invocado a necessidade de coexistência e harmonização do exercício dos direitos fundamentais em causa (e não a mera supressão ou limitação radical de uns, para salvaguardar de forma plena, outros), apenas no Supremo foi conferida uma interpretação absolutamente redutora e restritiva da possibilidade de coexistência dos supra aludidos princípios constitucionais. Em todas as instâncias foi-lhe reconhecida razão em relação a este ponto, determinando-se formas de justa composição do exercício dos direitos fundamentais em causa e uma adequada proporcionalidade na decisão quanto ao problema da colisão dos mesmos.
A interpretação dada às normas no Acórdão proferido pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, foi, consequentemente, de todo imprevisível, não podendo razoavelmente o Recorrente contar com a sua aplicação.
Na verdade tendo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, interpretado de modo tão particular, e pela primeira vez, ao longo dos presentes Autos, não era, de todo, exigível ao recorrente prever que essa interpretação viria a ser possível e viesse a ser adotada no Acórdão.
O uso inesperado e insólito de tal interpretação das normas constantes no art. 335º do Código Civil, conjugado com a circunstância de se ter produzido em Acórdão do Supremo, do qual não é admissível recurso ordinário, levou a Reclamante e ora Recorrente ficasse coartada da possibilidade de arguir, em momento anterior à da prolação Acórdão, não logrando representar a possibilidade de aplicação da norma em causa, com a interpretação dada por este Venerando Tribunal.
O Conselheiro Relator proferiu despacho de não admissão do recurso com a seguinte fundamentação:
“A ré E. L.ca vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento nos artigos 70º, n.º 1, alínea b) e n.º 2; 72º, n.º 1, alínea b) e n.º 2; 75º, n.º 1 e 78º, n.ºs 1 e 3 da Lei 28/82 de 15 de novembro e ainda ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b) e n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de fls. 1798 a 1855.
O recurso apresenta duas distintas fundamentações:
1 - A inconstitucionalidade do artigo 731º do Código de Processo Civil, “por violação do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa, incluindo o recurso, vertido no artigo 32º, n.º 2 bem como o direito a um processo justo e equitativo, nos termos do artigo 20º, n.º 5, conjugado com o preceituado no artigo 32º, n.º 1 da Constituição da República, quando interpretado no sentido do Recorrente não poder, na reclamação para a Conferência, pronunciar-se sobre o teor do acórdão proferido, a final, do Recurso de Revista, apenas podendo sindicar os vícios próprios da sentença”.
2ª – A inconstitucionalidade material das normas vertidas no artigo 335º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, quando interpretadas, conforme sucedeu no caso do acórdão proferido pelo STJ nos presentes autos, no sentido de que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade (direitos de personalidade previstos no artigo 26º, n.º 1 da Constituição da República) não pode ser objeto de quaisquer limitações, prevalecendo sobre o conteúdo essencial do direito de propriedade privada, vertida no artigo 62º, n.º 1, sobre o conteúdo essencial da liberdade de iniciativa económica, plasmada no artigo 61º, sobre o conteúdo essencial do direito ao ambiente e à qualidade de vida, vertido no artigo 66º e por violação drástica do princípio da proporcionalidade constante no artigo 18 e da proteção de confiança, todos da Constituição da República, não admitindo p Acórdão do STJ, proferido nos presentes autos, a concordância prática, entre os supra indicados direitos fundamentais colidentes.
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que este recurso não é admissível, pelas seguintes razões:
O recurso é interposto com base no facto de ter sido aplicada norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei 28/82 de 15 de novembro e alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição). Diz o n.º 2 do artigo 72º da Lei 28/82 de 15 de novembro que os recursos previstos na alínea b) do artigo 70º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de estar obrigado a dela conhecer.
Acontece que a Ré nunca suscitou tal questão, senão agora no requerimento de reclamação para a conferência sobre o acórdão mencionado.
E a jurisprudência e a doutrina têm sido unânimes em afirmar que a inconstitucionalidade de uma norma suscitada em requerimento de reclamação não deverá ser admissível.
Como salientam Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, na obra citada, chamando à colação diversos acórdãos que mencionam, arguir a questão da inconstitucionalidade durante o processo significa que ela tenha que ser levantada enquanto a causa se encontrar «pendente», ou seja, antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final.
Dado que a noção de decisão final se prende com a de trânsito em julgado (artigo 677º CPC) poderia ser-se levado a pensar que a questão da inconstitucionalidade ainda é suscetível de ser levantada no momento em que, proferida a decisão, ainda dela cabe reclamação nos termos dos artigos 665º e 669º do Código de Processo Civil. Porém esta não é a regra (...).
(...) Não pode, no decurso do trânsito em julgado, suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, dado que a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, nem é causa de nulidade da decisão judicial nem torna esta obscura ou ambígua.
Poder-se-á porém argumentar que à Ré não era exigível que antevisse a possibilidade das normas constitucionais ou do artigo 335º do Código Civil serem aplicadas ao caso concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão. Tal argumento não colhe, porquanto a questão que sempre foi tratada nos presentes autos era a do direito ao repouso por parte dos Autores, direito que é do conhecimento público ser um direito constitucional, pelo que a Ré saberia que seria aplicável aos presentes autos tal norma constitucional e, uma vez que tal norma colidia com outros direitos fundamentais, seria aplicável o artigo 335º do Código Civil. Assim, a Ré teve, há muito, a oportunidade de invocar a questão da inconstitucionalidade, preferindo fazê-lo só agora, após a prolação do dito acórdão.
Por último, a Ré vem alegar a inconstitucionalidade do artigo 731º do Código de Processo Civil com fundamento na violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2 da Constituição. Ora o n.º 1 do artigo 32º da Constituição dispõe:
“O processo criminal assegura todas as garantias de defesa incluindo o recurso”.
Porque tal norma se reporta às garantias de defesa no processo criminal, não se aplica aos processos de natureza civil, como o dos presentes autos, pelo que, também por esta via e por falta de fundamento, se não torna admissível a interposição do recurso.”
A Ré reclamou desta decisão, invocando o seguinte:
Em 03 de junho de 2013, a Recorrente/Recorrida, e ora Reclamante, foi notificada do Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, constante a fls. 1798 a 1855, que ordenou (i) a suspensão total do funcionamento de quatro aerogeradores pertencentes ao Parque Eólico do Joguinho II, e, em consequência, (ii) que procedesse à respetiva remoção desses equipamentos.
Contudo, conforme infra se procurará demonstrar, esta Decisão assentou numa interpretação jurídica das normas vertidas nos ns. 1 e 2 do art. 335.º do Código Civil que, no plano substantivo, será de qualificar como absolutamente inusitada e excessiva, mas igualmente, no plano processual, surpreendente e absolutamente contrária àquela que as instâncias inferiores vinham a conferir ao dito preceito legal.
Do ponto de vista da Reclamante - e salvo melhor opinião em contrário -, o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, constante a fls. 1798 a 1855, ao interpretar o disposto no art. 335.º do Código Civil no sentido em que o fez, acabou por incorrer na violação dos direitos constitucionais que lhe assistiam, e, por essa razão, merece ser sindicado pelo Tribunal Constitucional.
Em concreto, a interpretação do disposto no art. 335.º do Código Civil, no sentido que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade, não podem ser objeto de quaisquer limitações e que, por essa razão, prevalecem em termos absolutos (abandonando-se, em definitivo, a ponderação e dispensando a concordância prática) sobre os direitos fundamentais e valores constitucionais que assistiam à Ré e ora Reclamante - pela simples razão de que a mesma, alegadamente, não procedeu às alterações necessárias para minimizar os ruídos -, mostra-se desconforme com a Constituição, designadamente porque compreende a total supressão e anulação do exercício dos direitos consagrados nos artigos 61.º, 62.º, nº 1 e 66.º da Constituição da República Portuguesa.
Para melhor se compreender o itinerário jurídico-processual que desenlaça na presente Reclamação, cumpre referir que em sede da sentença proferida em Primeira Instância, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Torres Vedras, todos os pedidos formulados dos autores foram julgados totalmente improcedentes.
Irresignados com essa decisão, os autores interpuseram Recurso de Apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Nesta instância, o Acórdão proferido atendeu parcialmente aos seus pedidos, ordenando a suspensão do funcionamento dos 4 aerogeradores em questão, no decurso do período do entardecer e noturno, ou seja, entre as 20h00 e as 07h00.
Conforme referiu o mui Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa em questão, a implementação de um parque eólico tem como limite a ofensa aos direitos de personalidade dos habitantes vizinhos e como tal estava-se perante uma situação de colisão de direitos.
E nas palavras dos Juízes Desembargadores que subscreveram esse Acórdão, 'quase sempre e o caso sub iudice á paradigmático, por haver direitos conflituantes, há que fazer uma ponderação judicial à luz do artº 335º (colisão e direitos) do CC.
Sim, porque estamos cientes de que, por um lado estão os AA. a pugnar pelos seus direitos de personalidade e do outro a R. que representa uma industria geradora de energia 'limpa' e nessa medida defensora do meio ambiente.'
Refere, nesse seguimento, o Acórdão da Relação de Lisboa, que 'importa averiguar, caso a caso, se a prevalência dos direitos relativos à personalidade não resulta em desproporção intolerável face aos interesses em jogo, certo que o sacrifício e compressão do direito inferior apenas deverá ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante - veja-se, por exemplo, o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça/STJ de 129-04-2012 (pº 3920/07.8TBVIS.C1.S1) publicitado, in, www.dgsi.pt.
Há, igualmente, a nível doutrinal, o entendimento de que, em caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo, a respetiva avaliação abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a deteção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico, da subjectivização de tais direitos, máxime, a acumulação, a intensidade e a radicação de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos que com ele são conflituantes direitos de outro tipo (...) 'A solução do conflito passa pelo sacrifício no mínimo necessário de qualquer dos direitos conflituantes e pelo não privilegiar qualquer um dos desses direitos, suportando cada um dos titulares dos seus direitos, em igual medida, os custos da resolução da colisão, de modo a que os direitos conflituantes, nos seus concretos modos de exercício, possam coexistir um ao lado do outro e produzam os seus efeitos próprios em condições de igualdade' - neste sentido, Radindranath V. A. Capelo de Sousa, in, 'O Direito Geral de Personalidade'; Coimbra Editora, pags 547 e 548.' (sublinhado nosso)
Deste Acórdão, interpuseram recurso, uma vez mais, os Autores, mas também a Ré.
Ora, a despeito quer da linha orientadora que vinha sendo delineada por parte do próprio Supremo Tribunal de Justiça (conforme o Acórdão do Tribunal da Relação reconhece), quer da posição defendida pela maioria dos autores que se debruçam sobre esta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão proferido em 3 de junho de 2013, decidiu que 'não tendo a ré procedido às alterações que se impunham para minimizar os ruídos, é inaceitável a decisão de só determinar a suspensão dos aerogeradores desde o entardecer ao amanhecer (...) não estando provado que o ruído seja menor de dia do que durante a noite, se os aerogeradores não estiverem desligados, é evidente que a violação dos direitos de personalidade também se verifica no período diurno, causando ansiedade e desgaste físico e psíquico em toda a família.
Por esta razão, em clara prevalência dos direitos de personalidade, deve ser ordenada a suspensão/remoção de todos os aerogeradores, ora em questão.' (sublinhado nosso)
Do ponto de vista da Ré, ora Reclamante, tratou-se esta de uma interpretação que estribou uma Decisão manifestamente surpreendente e totalmente inesperada e que assenta sobre uma interpretação jurídica, não menos inaudita, no que se refere à solução conferida à situação de colisão dos direitos fundamentais e bens jurídicos em análise.
Nessa medida, à Recorrente/Recorrida, e ora Reclamante, apenas restava uma alternativa:
Reclamar para a Conferência, nos termos do disposto nos artigos 732.º, 716.º, nºs 1 e 668.º, nº 1, al. d), todos do Código de Processo Civil.
E assim o fez!
Para o efeito, não só invocou várias nulidades que, do seu ponto de vista, afetavam a Decisão em crise, mas, sobretudo, expressamente invocou a desconformidade da interpretação conferida ao art. 335º do Código Civil, face à Constituição da República Portuguesa.
Em concreto, alegou a Ré que essa Decisão assentava numa interpretação, de tal forma radical e extrema, do disposto no preceito acima invocado, que acabou por esmagar e comprimir por completo os direitos que lhe assistiam (designadamente o direito de propriedade, sobretudo, o próprio direito ao ambiente e à qualidade de vida, na medida em que a mesma desenvolve uma atividade altamente benéfica do ponto de vista ambiental, uma vez que os aerogeradores constituem 'fonte geradora de uma energia limpa e nessa medida defensora do ambiente'), determinando a supressão e total cerceamento do exercício desses direitos fundamentais.
Mais alegou que a interpretação conferida ao artigo 335.º do Código Civil violava o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, bem como o princípio da concordância prática dos direitos colidentes, e ainda o princípio da proteção da confiança.
Em resposta, a Conferência decidiu, por um lado, indeferir a totalidade das Reclamações apresentadas, e, por outro, julgar inadmissível o recurso apresentado para o Tribunal Constitucional.
Sendo, consequentemente, esta última Decisão que constitui o objeto da presente Reclamação.
No entender dos Venerandos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional não poderia ser admitido por duas ordens de razões, embora se reconduzam a único pressuposto (tempestividade da arguição da inconstitucionalidade), cumpre expor da seguinte forma:
a) Por um lado, porque a questão da inconstitucionalidade apenas foi suscitada em sede do articulado da Reclamação para a Conferência e “a jurisprudência e a doutrina têm sido unânimes em afirmar que a inconstitucionalidade de uma norma suscitada em requerimento de reclamação não deverá ser admissível”;
b) Por outro, porque à Recorrente/Recorrida, e ora Reclamante se imponha invocar essa questão antes da Decisão final, sem estar esgotado o poder de conhecimento judicial, dado que e segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: 'a Ré teve, há muito, a oportunidade de invocar a questão da inconstitucionalidade, preferindo fazê-lo só agora, após a prolação do dito acórdão'.
Ou seja, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça sustentou a sua Decisão quanto à inadmissibilidade do recurso, numa dupla razão: falta de oportunidade processual e ausência de oportunidade temporal para ser suscitada a questão da inconstitucionalidade.
Assim, a presente Reclamação destinar-se-á, essencialmente a procurar demonstrar que qualquer uma das duas razões invocadas, não têm qualquer fundamento, de facto, ou de Direito, no caso sub iudice.
Senão vejamos:
a) Da questão do recurso de constitucionalidade ser interposto em sede do articulado da Reclamação para a Conferência
Prima facie, importa desde logo referir que, contrariamente ao que vem invocado na Douta
Decisão ora em crise, a ora Reclamante nunca invocou qualquer inconstitucionalidade da norma legal constante do art. 335.º do Código Civil.
O que a Reclamante suscitou foi, ao invés, a inconstitucionalidade da interpretação do disposto em sede do art. 335º do Código Civil, conferida em sede do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que decidiu sobre o processo.
Aliás, cumpre recordar que é o próprio Coletivo responsável pela Decisão que, ao apreciar a questão do eventual excesso de pronúncia, reconhece que, e passamos a citar: 'não existe qualquer nulidade por excesso de pronúncia mas sim uma diferente interpretação na aplicação do Direito que é feita por parte do Supremo Tribunal de Justiça'.
E foi precisamente essa interpretação jurídica, absolutamente oposta àquela fora dada a tais normas pelas instâncias inferiores, que a ora Reclamante entende que consubstancia uma inconstitucionalidade material, com fundamento na violação do direito de propriedade privada, previsto no art. 62º, n.º 1, assim como dos conteúdos essenciais da liberdade de iniciativa económica, plasmada no art. 61º, e do direito ao ambiente e à qualidade de vida, vertido no art. 66º, além do princípio da proporcional idade constante no art. 18º, todos da Constituição da República.
Em concreto, entende a Ré, e ora Reclamante, que o disposto no art. 335.º do Código Civil, quando interpretado (conforme sucede no Aresto em questão) no sentido que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade, não podem ser objeto de quaisquer limitações e que, por essa razão, prevalecem em termos absolutos (abandonando-se, em definitivo, a ponderação e dispensando a concordância prática) sobre os direitos fundamentais e valores constitucionais que lhe assistiam - pela simples razão de que a Ré e ora Reclamante, alegadamente, não procedeu às alterações necessárias para minimizar os ruídos -, mostra-se desconforme com a Constituição.
Ora, do ponto de vista processual, o único mecanismo ou ato processual que a ora Reclamante dispunha para suscitar a sua discordância quanto a essa interpretação (e que pela primeira vez foi adotada em todo o processo), foi apenas e tão-somente, o articulado de Reclamação para a Conferência.
Não existia qualquer outro meio ou ato, processuais, a ora Reclamante pudesse ter lançado mão; pelo que, a Recorrente/Recorrida, e ora Reclamante, só podia ter reagido contra o Douto Acórdão no ato processual em causa, e no seio deste, suscitar a arguição da sobredita questão de inconstitucionalidade.
Neste contexto, e salvo uma vez mais o devido respeito pela opinião contrária, parece-nos inegável que a arguição da questão de inconstitucionalidade, no caso sub judice, não ocorreu antes da prolação da Decisão final.
Como exemplo paradigmático, na jurisprudência, de uma decisão que sustenta a posição da ora Ré, pode invocar-se o Aresto proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 18/12/2008, no qual precisamente se assinala que 'constituem pressupostos específicos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, a suscitação, durante o processo, de uma questão de inconstitucionalidade normativa; a aplicação dessa norma, com o sentido alegadamente inconstitucional, como critério de decisão do caso; e o esgotamento prévio dos recursos ordinários à disposição do recorrente.'
E prossegue, concluindo que, 'de acordo com o n.º 3 do mesmo preceito, são equiparadas a recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores, nos casos de não admissão ou de retenção do recurso, bem como as reclamações dos despachos dos juízes relatores para a conferência' (sublinhado nosso)
Na verdade, a Ré, e ora Reclamante reage contra a interpretação conferida, em sede do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, das normas constantes nos ns. 1 e 2 do art. 335.º do Código Civil, e fê-lo, tempestivamente, como se infere do Douto Acórdão acima transcrito.
Mas mesmo que assim não se entenda - o que não se concede, mas, por mera cautela de patrocínio, se equaciona -, cumpre referir que já antes a Ré e ora Reclamante, havia suscitado a sobredita questão de inconstitucionalidade.
Pelo que neste ponto concreto, a Decisão ora reclamada também não se mostra correta.
Com efeito, o próprio Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça expressamente reconhece que, em sede de alegações do Recurso de Revista interposto do Acórdão da Relação de Lisboa, para o Supremo Tribunal de Justiça, a Ré, Recorrente/Recorrida e ora Reclamante já havia suscitado a questão, da concreta forma pela qual, deveria, no seu entender, ser resolvido o problema da colisão dos direitos fundamentais supra enunciados.
'COLISÃO DE DIREITOS:
Insurge-se, depois, a ré/recorrente contra o acórdão recorrido, salientando que ficou plenamente demonstrado que a atividade por si desenvolvida prossegue objetivos de interesse público relevantes, sendo certo que, no caso em apreço 'os direitos em colisão são desiguais ou de espécie diferente: um respeita a um direito de personalidade, enquanto outro respeita ao bom ambiente que serve uma comunidade.
E no confronto entre estes dois direitos, resultou claro que os benefícios ambientais do Parque Eólico são concretos e reais, nomeadamente, que a utilização de fonte renovável impediu a emissão de 54.000 toneladas de CO2' e que a energia produzida por quele parque em concreto permitiu abastecer o concelho de Torres Vedras durante vários meses, 'pelo que este tem de ser considerado o direito superior e logo prevalecer sobre o direito invocado pelos autores'. (sublinhado nosso)
Continua o Douto Acórdão em análise que 'ou seja, contrapõe a ré/recorrente que, independentemente da mencionada violação, a ilicitude deve ter-se por excluída em razão dos valores da prossecução e da concretização do bem-comum ou do interesse público, valores que devem prevalecer sobre os direitos ao repouso e a um ambiente de vida humano, sadio e equilibrado, tudo por via da concordância prática consagrada no artigo 335.º do Código Civil”. (sublinhado nosso)
Atento o teor do supra transcrito do Acórdão em causa nos autos, fica evidente que, a Ré e ora Reclamante já antes de ser proferido o Acórdão acima citado, havia suscitado a questão da forma como deveria ser interpretado o art. 335.º do Código Civil, no que se refere à colisão de direitos, v.g. dos direitos fundamentais colidentes.
A tudo isto acresce que a reclamante formulou o requerimento de interposição do Recurso de Constitucionalidade, expressamente invocando a inconstitucionalidade material da interpretação das normas vertidas no art. 335º, nºs 1 e 2 do Código Civil, por violação do direito de propriedade privada, previsto no art. 62º, n.º 1, assim como dos conteúdos essenciais da liberdade de iniciativa económica, plasmada no art. 61º, e do direito ao ambiente e à qualidade de vida, vertido no art. 66º, além do princípio da proteção da confiança, mas sobretudo o princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso, constante no art. 18º, todos da Constituição da República, no sentido de que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade, não podem ser objeto de quaisquer limitações.
Pelo que, apenas se pode concluir que, à luz da conduta processual exercitada pela ora Reclamante, conjugando com a letra dos arts. 280º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. d), da Constituição da República, e no art. 70º, n.º 1, al. b) da Lei do Tribunal Constitucional, bem assim, com o entendimento jurisprudencial supra transcrito, que o Recurso de Constitucionalidade é tempestivo.
Porém, caso assim não se considere e por mera cautela de patrocínio sempre se dirá:
b) Da configuração do presente caso sub judice como uma exceção ao princípio da tempestividade referente ao Recurso de Constitucionalidade (dispensada do ónus da prévia suscitação da inconstitucionalidade)
O regime do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade encontra-se densificado, quanto ao pressuposto/requisito da tempestividade, nos arts. 280º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. d), da Constituição da República, e 70º, n.º 1, al. b) da Lei do Tribunal Constitucional, como antes vimos.
O preceito legal supra referido, contempla, segundo GOMES CANOTILHO, In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 996, o princípio da tempestividade processual que postula, por seu turno, que 'a exigência do levantamento da questão da inconstitucionalidade (dever de suscitar o incidente de inconstitucionalidade) durante o processo. Compreende-se a razão deste princípio: se o juiz a quo (o juiz da causa) já aplicou a norma proferindo a decisão, não se pode depois pretender que venha a desaplicar a norma, arguindo a sua inconstitucionalidade já depois de proferida a decisão recorrida. Isto justifica também a inadmissibilidade de arguição da inconstitucionalidade feita no requerimento de recurso se a parte não tiver invocado durante o processo no tribunal a quo”.
Ora, no Douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça deixou-se escrito que, e passamos a citar: 'Não existe qualquer nulidade por excesso de pronúncia mas sim uma diferente interpretação na aplicação do Direito que é feita por parte do Supremo Tribunal de Justiça'.
E prossegue nos seguintes termos: 'Poder-se-á porém argumentar que à Ré não era exigível que antevisse a possibilidade das normas constitucionais ou do artigo 335º do Código Civil serem aplicadas ao caso concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão.
Tal argumento não colhe, porquanto a questão que sempre foi tratada nos presentes autos era a do direito ao repouso por parte dos Autores, direito que é do conhecimento público ser um direito constitucional, pelo que a Ré saberia que seria aplicável aos presentes autos tal norma constitucional e, uma vez que tal norma colidia com outros direitos fundamentais, seria aplicável o artigo 335º do Código Civil.'
Este pressuposto específico de recorribilidade - a questão de inconstitucionalidade ser suscitada durante o processo - deve ser interpretada, louvando-nos em GOMES CANOTILHO, In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 996, no sentido que 'a questão de inconstitucionalidade poderá ser levantada após a decisão final e até ao trânsito em julgado nos casos de incompetência absoluta'.
Nestes termos, resulta claro que, mesmo após a prolação da Decisão Final, é possível suscitar, arguindo, a questão da inconstitucionalidade.
E isto porque, a interpretação a conferir aos incisos legais, 'durante o processo', utilizado em ambos os normativos, quer na Lei Fundamental, quer na Lei do Tribunal Constitucional, deve ser apreendido não num sentido puramente literal, mas sim, num prisma funcional, na medida em que, a questão de inconstitucionalidade deverá ser arguida, de modo a que o Tribunal 'a quo', pudesse conhecer da suscitação da inconstitucionalidade, gozando para tanto, de poder jurisdicional, para que sobre o teor do mesmo se pronunciasse.
A regra da tempestividade não é, consequentemente, intangível, comportando exceções.
Designadamente, conforme sucede nos presentes autos, quando essa inconstitucionalidade tem por objeto uma interpretação conferida por parte do Tribunal de última instância a uma norma de direito cujo sentido de aplicação foi, por diversas vezes, invocado nos autos.
Senão vejamos,
Segundo GUILHERME DA FONSECA, e INÊS DOMINGOS, in Breviário de Direito Processual Constitucional, p. 46, 'para além das situações referidas, existem casos excecionais ou anómalos em que o interessado, por não ter disposto de oportunidade processual para levantar a questão antes de proferida a decisão, a levantou após a sua prolação e o TC a considerou atempadamente suscitada.
Trata-se de casos em que não se toma possível aplicar a regra da arguição da inconstitucionalidade até à decisão; casos em que tal exigência é dispensada por se ter verificado uma situação excecional ou anómala que justifica essa dispensa.
A jurisprudência do TC permite-nos constatar a existência de três tipos de situações:
a) o interessado não teve a possibilidade de suscitar a questão em virtude de não lhe ter sido dada qualquer oportunidade para intervir no processo antes da decisão;
b) tendo intervindo, a questão da inconstitucionalidade só pôde colocar-se perante um circunstancialismo ocorrido já após a sua última intervenção processual e antes da decisão;
c) ao interessado não foi exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma ao caso concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão.'
E prosseguem os mesmos autores, in Breviário de Direito Processual Constitucional, p. 52, no sentido de 'ao interessado não foi exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma ao caso concreto, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da decisão'.
Ora, em nosso modesto entendimento e salvo melhor opinião, parece-nos que o caso sub judice se enquadra na terceira hipótese, dado que, não era exigível à Recorrente/Recorrida e ora Reclamante que antevisse a possibilidade de aplicação do art. 335º do Código Civil, com a interpretação que lhe foi dada, não valorizando o princípio da ponderação ou da concordância prática, pelo contrário, postergando-o.
Desse modo, a imprevisão de tal interpretação que supra alegámos, configura a nosso ver, um caso excecional ou anómalo, nas palavras daqueles eminentes juristas, e que corresponde a um desvio à regra vertida no art. 70º, n.º 1, al. b) da Lei do Tribunal Constitucional, que contempla o princípio da tempestividade processual.
Importa, aliás, nesse sentido, invocar a própria jurisprudência do Colendo Tribunal Constitucional - destacando-se o Douto Acórdão n.º 334/2005, cuja relatara foi a Juíza Conselheira Maria João Antunes - em que se defende que '(...) uma das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional é precisamente a daqueles casos em que é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão', (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) - sublinhado nosso
Pode ainda invocar-se o Douto Acórdão n.o 188/93, cujo relatar foi o Juiz Conselheiro Ribeiro Mendes, onde se assinala que 'esta jurisprudência uniforme admite situações excecionais em que a impugnação da constitucionalidade pode ser feita depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo: serão os casos contados de situações anómalas em que o interessado não disponha de oportunidade processual para levantar a questão antes de proferida a decisão e, por conseguinte, de esgotado aquele poder.
Entende-se que foi tempestivamente suscitada a questão da constitucionalidade pela recorrente, por não ter tido esta a oportunidade de fazê-lo antes, nomeadamente nas alegações de recurso de agravo que interpusera, dada a imprevisibilidade da aplicação da norma nova sobre prazos ao caso sub judicio'. (disponível em www.tribunalconstitucional.pt)
Em resumo, entende a Ré que é manifestamente claro que se admite a possibilidade, ainda que por via excecional, da suscitação das questões de inconstitucionalidade já após a prolação da Decisão final, e consequentemente, com o evidente esgotamento do poder judicial para curar do mérito da relação litigiosa em apreço, dispensando o ónus da suscitação prévia da questão de constitucionalidade.
No caso, a interpretação conferida ao art. 335º do Código Civil, foi, de todo em todo, imprevisível e inesperada, sendo que a Recorrente/Recorrida e ora Reclamante não podia, com o mínimo de razoabilidade, contar com tal aplicação daquele preceito, na interpretação que lhe fora conferida.
Reitera a Ré e ora Reclamante, que não se trata aqui de escrutinar uma decisão surpreendente, mas sim, a interpretação dada às normas plasmadas nos ns. 1 e 2 do art. 335º do Código Civil, a qual foi totalmente imprevisível e inesperada!
A alteração na interpretação do disposto no art. 335.º do CC, vertida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que, por sinal, não admitia qualquer possibilidade de Recurso para outra instância, integrou um sentido totalmente restritivo e desproporcional que conteve, por completo, o exercício dos direitos constitucionais de uma das partes.
De acordo com o critério do homem médio, ou do bom pai de família, colocado na posição hipotética da Ré e ora Reclamante - em abstrato e à luz de um juízo de prognose póstumo - infere-se que não era de todo possível antecipar-se ao proferimento da Decisão, designadamente arguindo logo as questões de inconstitucionalidade em relação a uma situação que ainda não havia ocorrido !!!
E fê-lo, reitera-se, no imediato e subsequente momento processual da presente instância recursória, isto é, no Requerimento de Reclamação para a Conferência.
A Recorrente/Recorrida e ora Reclamante não nega, nem refuta que, no campo do Direito, e de acordo com os factos que preencheram a relação jurídica material controvertida, sempre esteve em análise, a colisão dos direitos fundamentais ou/e de bens jurídicos constitucionais, mormente no caso da questão de inconstitucionalidade, o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade VS o direito de propriedade privada, a liberdade de iniciativa económica, e o direito ao ambiente e à qualidade de vida.
Foi, aliás, essa situação que precisamente assinalou nas respetivas alegações de Recurso de Revista, que apresentou na sequência da notificação do Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
E nessa sede invocou que a colisão dos direitos fundamentais acima enunciados deveria ser superada ao abrigo do princípio da concordância prática, o qual mais não visa do que, compatibilizar os bens jurídicos colidentes, de modo a poder permitir a viabilização, em simultâneo, do exercício dos direitos fundamentais, ou dos respetivos bens jurídicos.
Acontece que a operatividade de tal princípio, que implicava a harmonização dos direitos fundamentais em apreço, ditaria uma solução diametralmente oposta à vertida no Douto Acórdão proferido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de modo a conformar a redução na medida do proporcionalmente possível, dos bens jurídicos colidentes, de modo a permitir o exercício, simultâneo de tais direitos fundamentais.
Jamais a Ré e ora Reclamante contaria com a interpretação dada às normas vertidas nos ns. 1 e 2 do art. 335º do Código Civil, adotado no Douto Acórdão, por forma a concluir que poderia vir a ser determinada uma ordem de suspensão total dos aerogeradores designados pelos ns. 1, 2, 3 e 4 e ainda a sua completa remoção!
A imprevisibilidade da interpretação plasmada na Decisão é patente, determinando qualquer impossibilidade de conjetura ou antecipação da possibilidade da interpretação das normas cuja inconstitucionalidade se arguiu, de modo a extrair a aplicação de tais comandos normativos.
Por outro, no plano jurídico-processual, não tinha ocorrido nenhuma Decisão proferida ao abrigo dos presentes autos, em que fosse conferida tal interpretação às normas plasmadas nos ns. 1 e 2 do art. 335º do Código Civil.
Inclusivamente, a própria orientação que vinha sendo adotada por parte do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria era num sentido perfeitamente diferente daquele que veio a ser vertido do Acórdão em análise.
Atendendo aos argumentos de facto e aos fundamentos de Direito supra expostos, e que se encontram respaldados na letra do art. 280º, n.º 1, al. b) da Constituição da República e do art. 70º, n.º 1, al. b) da Lei do Tribunal Constitucional, bem como na doutrina e na jurisprudência supra transcritas, entre outros, deverá ser apreciada a presente Reclamação, e, em consequência, ser julgada procedente, a admissibilidade da suscitação do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, em ordem ao conhecimento do mérito do Recurso de Constitucionalidade.
Os Autores responderam à reclamação apresentada, pronunciando-se pelo seu indeferimento.
No mesmo sentido se pronunciou o Ministério Público.
Notificada a Recorrente para se pronunciar sobre a possibilidade do recurso interposto para o Tribunal Constitucional não poder ser conhecido, quanto à questão por ela suscitada na alínea b) do requerimento de interposição de recurso, devido à interpretação normativa impugnada não integrar a ratio decidendi, aquela apresentou requerimento, expondo o seguinte:
Um dos pressupostos processuais recursórios específicos do Recurso de Constitucionalidade, vertidos no art. 70º, ns. 1 e 2, al. b) da Lei do Tribunal Constitucional, é que, quanto ao objeto da questão de inconstitucionalidade suscitada, a norma tenha sido efetivamente aplicada.
Apelando, para o efeito, aos ensinamentos da doutrina constitucionalista, importa pois aquilatar sobre o requisito de admissibilidade do Recurso de Constitucionalidade, que tem por base o disposto no art. 70º, ns. 1 e 2, al. b) da Lei do Tribunal Constitucional.
De acordo com GOMES CANOTILHO, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pp. 986 e 987, 'exige-se que a questão de inconstitucionalidade seja relevante para a decisão da causa. A 'causa' ('o feito submetido a decisão judicial, 'o caso apresentado no Tribunal”) diz respeito a um outro assunto (questão de fundo, questão de mérito), mas depende também da validade ou invalidade de uma norma a aplicar ao caso. A questão de inconstitucionalidade não representa a questão principal; é antes uma questão incidental relevante para a solução da questão principal. Além de ser muito discutido este caráter incidental da questão da inconstitucionalidade, também a própria noção questão relevante oscila entre duas posições principais: i) questão relevante é aquela que é decisiva para a decisão do tribunal, não podendo esta ser proferida sem a resolução do problema prévio da constitucionalidade; ii) questão relevante existe quando a aplicação da norma cuja constitucionalidade é posta em causa parece necessária ao juiz a quo, ou quando este admite como possível vir essa norma ser aplicável ao feito submetido a julgamento, mas afasta a sua aplicação por motivo de inconstitucionalidade (cf. Ac. TC 169/92).
De qualquer modo, não é suficiente afirmar, na decisão do tribunal a quo, que determinada norma é inconstitucional; ela deve ser efetivamente desaplicada por motivo de inconstitucionalidade (ou aplicada não obstante a invocação da inconstitucionalidade) no feito submetido a apreciação judicial. Por isso se diz que no juízo sobre a aplicação ou desaplicação de uma norma esta foi aplicada como ratio decidendi e não como um simples obter dictum da decisão recorrida.'
Por sua vez, GUILHERME DA FONSECA e INÊS DOMINGOS, in Breviário de Direito Processual Constitucional, p. 38, entendem que, '(…) a efetiva desaplicação de norma por inconstitucionalidade é pressuposto do recurso interposto ao abrigo da al. a), a apreciação da questão de inconstitucionalidade suscitada ao abrigo da al. b) está condicionada por uma efetiva aplicação da norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (acs. 162/88, 284/94, 364/96).
Só pode dizer-se, de igual modo, que se aplica uma norma quando ela constitui a 'ratio decidendi' da decisão, o fundamento normativo do seu próprio conteúdo, ou do julgamento da causa, e não quando é mencionada como simples obiter dictum (acs. 82/92, 116/93, 367/94)'.
Assinalam ainda os mesmos autores que, 'a aplicação da norma tanto pode ser expressa como implícita (acs 88/86, 47/90, 235/93) e a questão de inconstitucionalidade tanto pode reportar-se apenas a uma certa dimensão ou trecho da norma, como a uma certa interpretação da mesma (acs. 114/89, 612/94, 126/95, 178/95,243/95, 305/90, 238/94, 176/88, 764/93, 51/96)'.
Aqui chegados (e referida que fica, a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum, para efeitos de determinação da relevância da questão de inconstitucionalidade) passemos de seguida à subsunção destes conceitos ao caso sub judice.
Em concreto, e com relevo para os presentes Autos, impõe-se averiguar se a questão de inconstitucionalidade suscitada sob a al. b) do Requerimento de interposição de Recurso, apresentado pela Recorrente e ora Reclamante, devido à interpretação e aplicação dos ns.º 1 e n.º 2 do art. 335º do Código Civil corporiza a ratio decidendi do douto Acórdão recorrido, ou se, ao invés, se trata apenas de um simples obiter dictum.
Afigurando-se-nos ainda pertinente saber se a questão de constitucionalidade podia e devia ter sido suscitada aquando da interposição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o tribunal a quo.
Para tanto, cumpre relembrar que a questão de constitucionalidade em causa prende-se com a inconstitucionalidade material da interpretação conferida às normas ínsitas no artigo 335.º, ns.º 1 e n.º 2 do Código Civil, segundo a qual o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade não pode ser objeto de quaisquer limitações, prevalecendo sobre o conteúdo essencial do direito de propriedade privada, da livre iniciativa económica e do direito ao ambiente e à qualidade de vida, todos com assento constitucional (art. 62.º, n.º 1, 61.º e 66.º da CRP).
Nesta esteira, impõe-se relembrar os seguintes segmentos do douto Acórdão recorrido:
- 'A ilicitude, na perspetiva da violação intolerável dos direitos fundamentais, dispensa a aferição do nível de ruído pelos padrões legais estabelecidos, verificando-se se, após o início de funcionamento de determinados instrumentos, como o sejam os aerogeradores, terceiros vêm a sofrer queixas de alteração de humor, fadiga, enxaquecas e hipersensibilidade.' (p. 47 da decisão recorrida).
E mais adiante:
- 'O efeito prático do acórdão recorrido (o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que ordenou a remoção de um aerogerador e a suspensão dos restantes aerogeradores), tal como está, não é cessar a atuação violadora dos direitos que reconhece às Recorrentes. Apenas lhes confere um período de paragem de funcionamento dos aerogeradores durante a noite. Ou seja, reconhece a impossibilidade de coexistência dos direitos mas ignora as consequências, não obstante a violação dos direitos de personalidade dos réus ser total sempre que se verifica o funcionamento dos aerogeradores (...) seja diurno, ao entardecer ou noturno, quer estejam os quatro a funcionar, como refere o acórdão recorrido, quer estejam apenas três aerogeradores a funcionar.
Na verdade, não estando provado que o ruído seja menor de dia do que durante a noite, se os aerogeradores não estiverem desligados, é evidente que a violação dos direitos de personalidade também se verifica no período diurno, causando ansiedade e desgaste físico e psíquico em toda a família.
Por esta razão, em clara prevalência dos direitos de personalidade, deve ser ordenada a suspensão/remoção de todos os aerogeradores, ora em questão.' (p. 54 da decisão recorrida, parêntesis nossos).
Seguindo esta ordem de ideias, o douto Acórdão recorrido condenou a Recorrente e ora Reclamante, não só a desligar de forma permanente (e não apenas por um período limitado do dia correspondente ao período noturno), como também, a remover, por completo, os equipamentos de produção de energia limpa e natural, designados por aerogeradores.
E fê-lo no respaldo da aplicação da norma contida no artigo 335.º do Código Civil conforme se depreende da seguinte afirmação, a p. 49 da decisão sob recurso: 'havendo, inequivocamente, no caso sub judice, direitos conflituantes, há que fazer uma ponderação judicial à luz do artigo 335.º do Código Civil (colisão de direitos)'. (sublinhado nosso).
Nesse sentido e conforme consta do ponto VII das conclusões plasmada na Decisão recorrida 'embora o direito à integridade pessoal não seja em absoluto um direito imune a quaisquer limitações, em caso de conflito de direitos, designadamente com o de desenvolvimento de uma atividade que atua na realização de um interesse público - como é o da indústria geradora de energia limpa, a prevalência a que alude o art. 335.º do CC poderá impor ao seu titular limitações (sacrifícios que terá de suportar em nome do bem comum) apenas compensáveis monetariamente'
Neste contexto, afigura-se claro que a interpretação (ou ponderação judicial) normativa dos n.ºs 1 e 2 do art. 335º do Código Civil posta em crise constituiu o único e concreto fundamento jurídico, ao qual foram subsumidos os factos dados como provados, nas diversas instâncias que antecederam o Recurso de Constitucionalidade interposto pela Recorrente, e ora Reclamante.
Por outras palavras, face à factualidade dada como provada e não provada, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, no douto Acórdão recorrido valeu-se, exclusivamente, do disposto na interpretação conjugada das normas do art. 335º do Código Civil que ora se discute para decidir a causa.
Todavia, e ao contrário do que refere na pág. 50 da sua Decisão (quando se cita doutrina no sentido de que, mesmo direitos subjetivos hierarquicamente inferiores aos direitos de personalidade, devem ser respeitados até onde for possível e apenas devem ser limitados na exata proporção e necessidade em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses) o Tribunal a quo interpretou e aplicou as normas em questão sem proceder a uma efetiva ponderação de direitos.
Porquanto se limitou a constatar uma prevalência absoluta, não graduada, dos direitos de personalidade dos Autores (ora Recorridos) sobre todos e quaisquer direitos (que não de personalidade) de que a Recorrente e ora Reclamante é titular, abandonando a ponderação e dispensando a concordância prática.
Sendo certo que, os direitos subjetivos em conflito de que a Reclamante é titular, por um lado, e os Reclamados, por outro, não podem, sequer, ser considerados uns inferiores aos outros, na medida em que se trata, em qualquer dos casos, de direitos fundamentais.
A interpretação conjugada das normas contidas nos nºs 1 e 2 do artigo 335.º do Código Civil que foi feita pelo Tribunal a quo foi, portanto, no sentido que, causando o funcionamento dos aerogeradores, ruido, (qualquer que ele seja, independentemente de não estarem violados os limites legais para a produção de ruido e independentemente desse ruido resultar (i) do exercício do direito de propriedade e (ii) de uma atividade devidamente licenciada, destinada a garantir o ambiente enquanto bem constitucionalmente protegido) e sofrendo os Reclamados a ansiedade, o desgaste físico e psíquico (independentemente do nível de ansiedade e de desgaste físico e seja ele causado durante o dia ou a noite) prevalecem, sempre, os direitos de personalidade dos Recorridos e ora Reclamados e, como tal, o ruído deve cessar, em qualquer situação.
Por outras palavras, os direitos de personalidade dos Recorridos, no juízo do Tribunal a quo, apenas por se tratar de direitos de personalidade (e só mesmo por isso), prevalecem - dispensando qualquer juízo quanto à sua possível limitação em sede de ponderação e compatibilização de direitos subjetivos - em abstrato sobre os direitos fundamentais de que a ora Reclamante seja titular (onde se incluem, para além dos demais, o direito de propriedade e o direito à livre iniciativa económica expressamente referidos no requerimento de interposição do Recurso de Constitucionalidade).
Esta é a interpretação das normas sub judice que foi decisiva para justificar a decisão de condenação de paralisação total - remoção (ao invés, por exemplo, de uma suspensão parcial) dos aerogeradores tomada pelo Tribunal a quo, abandonando, portanto, a ponderação e dispensando a concordância prática, dos bens jurídicos colidentes.
Sendo igualmente seguro que, nenhuma outra norma é suscitada pelo tribunal a quo como ratio decidendi e nenhuma outra interpretação normativa (além da que resulta da aplicação conjugada dos nºs 1 e 2 do artigo 335.º do Código Civil) poderia ter conduzido aos resultados alcançados pela Decisão recorrida.
A interpretação e aplicação da norma que resulta da aplicação conjugada dos nºs 1 e 2 do art. 335º do Código Civil e que veio a prevalecer no contexto do Aresto em crise, não constitui portanto, uma parte dispensável, ou de somenos relevância daquela Decisão, dado que não se relaciona com a mera retórica empregue no douto Acórdão recorrido, ou com os argumentos expendidos com o desiderato de completar ou desenvolver o raciocínio técnico-jurídico, no sentido acessório ou instrumental da formação daquele Acórdão, e do seu sentido decisório.
E isto porque, foi a interpretação e aplicação, efetiva, dos nºs 1 e 2 do art. 335º do Código Civil ora posta em crise, que, sustentou a formação do douto Acórdão recorrido e o seu sentido decisório, em razão de constituir o único preceito legal infraconstitucional que se debruça sobre a problemática da colisão de direitos subjetivos e bens jurídicos, e daí que seja inevitável e inexorável que integre a ratio decidendi do douto Acórdão recorrido.
Por isso mesmo, a interpretação normativa arguida de inconstitucional, de natureza material, pela ora Reclamante, coincide cabalmente com a interpretação normativa sustentada no Acórdão recorrido.
Aliás, independentemente da análise da factualidade dada como provada e não provada pelas instâncias inferiores, e no campo estritamente jurídico, a Decisão de mérito a vingar nos presentes Autos, tem sempre, mas sempre, o seu escopo jurídico na interpretação e aplicação, efetiva, dos nºs 1 e 2 do art. 335º do Código Civil.
Importa ainda referir que a interpretação normativa posta em crise consubstanciou, como já se disse na Reclamação sub judice, uma total surpresa para a ora Reclamante.
Com efeito, a aplicação feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa das normas contidas nos ns.º 1 e no n.º 2 do artigo 335.º do CC, foi no sentido - sustentado, sem polémicas, pela doutrina e pela jurisprudência - que teria de ser feita uma verdadeira ponderação dos direitos em presença (não podendo um direito subjetivo eliminar completamente os outros), em prol da concordância prática.
Ao não proceder a uma verdadeira ponderação dos direitos em conflito - conforme reclama inclusivamente a doutrina citada na Decisão recorrida - e ao considerar que, em qualquer caso, prevalecendo o direito ao repouso e ao sossego, o Tribunal a quo afastou aquele que é um pressuposto unânime na doutrina (nacional e internacional) e na justiça constitucional e que é, no caso da colisão de direitos subjetivos jus-fundamentais, não existe qualquer norma jurídico-substantiva que determine uma hierarquia de prevalência destes direitos subjetivos.
Nesse sentido e conforme constam dos pontos VII e VIII (in fine) das conclusões plasmada na decisão recorrida 'embora o direito à integridade pessoal não seja em absoluto um direito imune a quaisquer limitações, em caso de conflito de direitos, designadamente com o de desenvolvimento de uma atividade que atua na realização de um interesse público - como é o da indústria geradora de energia limpa, a prevalência a que alude o art. 335.º do CC poderá impor ao seu titular limitações (sacrifícios que terá de suportar em nome do bem comum) apenas compensáveis monetariamente' e '... resulta clara a prevalência dos direitos de personalidade, sendo de ordenar a cessação da atividade referida em VII'
Estas duas passagens evidenciam de sobre maneira que a ratio decidendi foi justamente a interpretação da norma do artigo 335.º, nº 2, do CC e que a mesma foi no sentido de que essa prevalência pode ser absoluta (abandonando a ponderação e dispensando a concordância prática, que foi feita nas sentenças recorridas de 1.ª e 2.ª instância) no caso do direito ao repouso sobre os outros direitos fundamentais e valores constitucionais em presença, designadamente quando a Reclamante não tenha (alegadamente) procedido às alterações necessárias para minimizar os ruídos
Ora, não há direitos fundamentais de primeira categoria e direitos fundamentais de segunda categoria.
Sendo entendimento unânime, também na doutrina e na jurisprudência nacional e internacional, que o direito à propriedade privada ou a liberdade de livre iniciativa económica ou mesmo o direito ao ambiente não podem ser sacrificados, sempre e apenas, porque sim, aos denominados direitos de personalidade.
Por outras palavras, a existência de um conflito entre direitos fundamentais não pode ser resolvida - como foi, pelo tribunal a quo - de uma forma automática e abstrata, porquanto a ordem dos valores constitucionais não é hierárquica, abandonando a ponderação e dispensando a concordância prática entre os direitos fundamentais colidentes.
Por isso mesmo, e conforme já se referiu na Reclamação apresentada, só quando foi notificada do Acórdão do Tribunal a quo, é que a ora Reclamante foi confrontada com a aplicação conjugada dos ns.º 1 e 2 do artigo 335.º do Código Civil, segundo um critério normativo inovador, do qual não se conheciam precedentes generalizados.
Tanto na justiça nacional, civil e constitucional, como também na própria jurisprudência europeia.
Com efeito, em função daquele que é o sentido da doutrina e da jurisprudência a propósito da aplicação dos ns.º 1 e 2 do artigo 335.º do Código Civil - e que foi de alguma forma seguido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - nada permitiria à ora Reclamante adivinhar ou antever que o Tribunal a quo viesse prescindir em absoluto da ponderação de um verdadeiro conflito de direitos, adotando um critério de pura prevalência automática de um direito fundamental sobre outros direitos fundamentais.
Por isso mesmo, apenas se pode inferir que, a ora Reclamante suscitou a questão de constitucionalidade naquele que foi a oportunidade processual mais próxima (a Reclamação para a conferência do Supremo Tribunal de Justiça) daquele Aresto, em que a questão efetivamente emergiu.
Em resumo, a questão de inconstitucionalidade constante na al. b) do Recurso interposto - a interpretação e aplicação conferida aos ns.º 1 e 2 do art. 335º do Código Civil- foi, como é, decisiva para Decisão do Tribunal a quo, perfilando-se como a ratio decidendi,
Tendo a questão de constitucionalidade sido suscitada no momento em que, pela primeira vez, a ora Reclamante se viu confrontada com a aplicação das sobreditas normas na interpretação ora posta em crise, interpretação normativa esta, com a qual a Reclamante não poderia razoavelmente contar.
Por conseguinte, dever-se-á considerar integralmente preenchido o pressuposto processual objetivo, da relevância da questão de inconstitucionalidade suscitada sob a alínea b) do Requerimento de interposição de Recurso, devido ao facto de a interpretação normativa impugnada integrar a ratio decidendi do douto Acórdão recorrido, por um lado, e ter sido tempestivamente suscitada, por outro.
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Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida, abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitada previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.
Contudo, este requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) considera-se dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excecionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional a Recorrente pediu a fiscalização da constitucionalidade de duas interpretações normativas:
- a do artigo 731.º do Código de Processo Civil, quando interpretado no sentido do Recorrente não poder, na Reclamação para a Conferência, pronunciar-se sobre o teor do Acórdão proferido, a final, do Recurso de Revista, apenas podendo sindicar os vícios próprios do regime da Sentença;
e
- a do artigo 335.º, nºs 1 e 2 do Código Civil, quando interpretado no sentido de que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade não pode ser objeto de quaisquer limitações, prevalecendo sobre o conteúdo essencial do direito de propriedade privada, vertido no artigo 62.º, n.º 1, sobre o conteúdo essencial da liberdade e de iniciativa económica, plasmada no artigo 61.º, sobre o conteúdo essencial do direito ao ambiente e à qualidade de vida, vertido no artigo 66.º, e por violação drástica dos princípios da proporcionalidade constante do artigo 18.º e da proteção da confiança, todos da Constituição da República, não sendo admissível a concordância prática, entre os supra indicados direitos fundamentais colidentes.
O tribunal recorrido não admitiu este recurso, com fundamento em que a primeira questão era manifestamente improcedente e a segunda questão não lhe havia sido colocada previamente.
A Recorrente apenas reclama da não admissão do recurso quanto à segunda questão acima enunciada, pelo que apenas dela cumpre aqui tratar.
Apesar da decisão reclamada não ter admitido o recurso, nesta parte, por falta do cumprimento do requisito da suscitação prévia, há primeiro que verificar se a norma cuja fiscalização de constitucionalidade se pretende integra sequer a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Da leitura deste constata-se que nele, após se ter admitido que havia no caso sub iudice direitos conflituantes que reclamavam uma ponderação judicial à luz do artigo 335.º, do Código Civil, foi efetuada essa ponderação, face aos dados do caso concreto, tendo-se concluído que deveriam prevalecer os direitos de personalidade dos Autores sobre os direitos invocados pela Ré, não se justificando, neste caso, qualquer limitação ou compressão, em ordem a obter uma compatibilização dos direitos.
A decisão recorrida não admitiu como critério normativo geral e abstrato que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade não pudesse ser objeto de quaisquer limitações, prevalecendo sobre o conteúdo essencial do direito de propriedade privada, vertido no artigo 62.º, n.º 1, sobre o conteúdo essencial da liberdade e de iniciativa económica, plasmada no artigo 61.º, sobre o conteúdo essencial do direito ao ambiente e à qualidade de vida, vertido no artigo 66.º, e por violação drástica dos princípios da proporcionalidade constante do artigo 18.º e da proteção da confiança, todos da Constituição da República, não sendo admissível a concordância prática, entre os supra indicados direitos fundamentais colidentes. Antes, pelo contrário, afirmou que os direitos reconhecidos aos Autores não eram em absoluto imunes a quaisquer limitações, em caso de conflitos de direito, designadamente com os que presidiam ao desenvolvimento de uma atividade que atua na realização de um interesse público.
A decisão recorrida limitou-se a, no caso concreto, ponderando a factualidade apurada, entender que não se justificava a limitação do direito considerado prevalecente, em ordem à compatibilização dos direitos em colisão, não traduzindo esta conclusão a assunção de um qualquer critério normativo, mas apenas o resultado da ponderação judicial efetuada à luz do artigo 335.º, do Código Civil, o qual não é sindicável pelo Tribunal Constitucional, face ao cariz normativo dos recursos de constitucionalidade.
Verifica-se, pois, que a interpretação normativa cuja constitucionalidade se pretende que este Tribunal aprecie não integra a ratio decidendi do acórdão recorrido, pelo que não se mostra preenchido este pressuposto, o qual é essencial ao conhecimento do recurso constitucional.
Assim sendo, deve ser indeferida a reclamação, mantendo-se a decisão reclamada, por fundamento diverso.
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Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por E., Limitada.
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Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de maio de 2014. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.