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Processo n.º 161/2014
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 204/2014:
«I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (de ora em diante, LTC), foi interposto recurso, em 20 de janeiro de 2014 (fls. 150 e 151), de acórdão proferido, em conferência, pela Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em 06 de janeiro de 2014 (fls. 138 a 144), para que seja apreciada a constitucionalidade das “normas estatuídas nos artºs 27º-A, nº 1, al. c) e 28º, ambas do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (…)” (fls. 150), por alegada inconstitucionalidade orgânica, em função da violação dos artigos 2º, 165º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, e artigo 198º, n.º 1, alínea b), ambos da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 03 de fevereiro de 2014 (fls. 155), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Cabe aos recorrentes fixar o objeto dos recursos de constitucionalidade que entendam interpor, conforme resulta do n.º 1 do artigo 75º-A da LTC. Nos presentes autos, a recorrente elegeu como objeto do presente recurso as normas extraídas dos artigos 27º-A, n.º 1, alínea c), e 28º, ambos do Regime Geral das Contraordenações (RGC). Tendo recorrido ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, forçoso seria que tivesse suscitado a inconstitucionalidade das mesmas, de modo processualmente adequado, perante o tribunal recorrido, tal como imposto pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC.
Sucede, todavia, que, consultadas as suas alegações de recurso perante o tribunal recorrido, apenas se vislumbra a seguinte invocação de inconstitucionalidade:
«34. Acresce que entendimento diverso das normas previstas no artº 188º e 132º do CE, aprovado pelo Dec.Lei nº 44/2005, de 23.02, determina a sua inconstitucionalidade material e orgânica, o que impede a sua aplicação pelos Tribunais.
35. Com efeito, se se entendesse que aos procedimentos por contraordenações rodoviárias se aplicam as causas de suspensão e interrupção da prescrição, previstas nos artºs 27ºA e 28º do RGCO, aquelas normas do CE teriam violado o prescrito nos artº 1º, 3º als. g) e dd), da Lei nº 53/2002, de 04.11 Lei de Autorização Legislativa, e, também desta forma, o Governo havia legislado sobre matéria relativamente reservada à Assembleia da República (artº 165º, nº 1, al. d), da CRP vigente – inconstitucionalidade orgânica) e em clara violação da lei de autorização legislativa (…), inconstitucionalidade estas que, por mera cautela e dever de patrocínio, se invocam para todos os efeitos legais.» (fls. 81, com sublinhado nosso)
Ora, daqui resulta que a recorrente apenas suscitou, perante o tribunal recorrido, a questão da inconstitucionalidade das normas extraídas dos artigos 132º e 188º do Código da Estrada. Contraditoriamente, no âmbito do presente recurso, a recorrente apenas elegeu como objeto do mesmo as normas extraídas dos artigos 27º, n.º 1, alínea c), e 28º, ambos do RGC. Porém, a inconstitucionalidade destas últimas normas nunca foi suscitada perante o tribunal recorrido. E, aliás, mal se compreende a invocação da inconstitucionalidade orgânica das referidas normas, constantes do regime geral das contraordenações, quando aquele resultou do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que foi, precisamente, aprovado ao abrigo do artigo 1º da Lei n.º 4/89, de 03 de março, que concedeu autorização legislativa ao Governo.
Por último, ainda se poderia questionar a própria tempestividade da suscitação de inconstitucionalidade de interpretação normativa extraída dos artigos 132º e 188º do Código da Estrada, apenas em sede de alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães. Isto porque, ao invocar a prescrição do procedimento contraordenacional, reportada a 16 de dezembro de 2012, a recorrente não poderia deixar de tê-lo feito, em sede de audiência de julgamento, que ocorreu bem depois dessa data, isto é, em 01 de julho de 2013 (fls. 60 a 62). Ora, devidamente analisada a respetiva ata, verifica-se que o mandatário da recorrente usou da palavra, inclusive para produção de alegações orais, sem que nunca tivesse invocado a referida questão de inconstitucionalidade normativa.
Em suma, face à manifesta falta de suscitação processualmente adequada da questão de inconstitucionalidade referente aos artigos 27º, n.º 1, alínea c), e 28º, ambos do RGC – que, recorde-se, constitui o objeto único do presente recurso, mais não resta do que concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.» (fls. 2370 a 2378)
2. Inconformada com a decisão proferida, a recorrente veio deduzir reclamação, das quais se extraem as seguintes conclusões:
«1ª A recorrente suscitou e quis suscitar a inconstitucionalidade das normas ínsitas nos art.ºs 132.º e 188.º do CE, aprovado pelo Dec.Lei n.º 44/2005, de 23.02, se se entendesse que aos procedimentos por contraordenações rodoviárias se aplicam as causas de suspensão e interrupção da prescrição, previstas nos art.ºs 27.ºA e 28.º do RGCO.
2ª É evidente, que só por mero lapso de escrita constante, também à evidência, no requerimento de interposição do recurso para esse Tribunal Constitucional, se fez constar que as normas cuja (in)constitucionalidade se suscitava eram aquelas do RGCO (art.ºs 27.ºA e 28.º) e já não aquelas cuja (in)constitucionalidade se quis suscitar, as dos art.ºs 132.º e 188.º do CE, aprovado pelo Dec.Lei n.º 44/200S, de 23.02, na interpretação vertida na conclusão anterior.
3ª Tal lapso de escrita é evidente pela simples conjugação do requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional com as alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães, onde se suscita a inconstitucionalidade das normas referidas do CE.
4ª E tal lapso, mesmo que não tivesse sido percecionado, mas foi, pela Merítissima Juiz Relatora desse TC, e mesmo que se tivesse entendido como incongruência, atentas as sobre ditas alegações de recurso para o TRG, deveria ter merecido um convite à prestação da indicação da(s) concreta(s) norma(s) cuja inconstitucionalidade se quereria suscitar, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 75.º A, n.ºs 5 e 6, da LTC.
5ª Pelo que, o incumprimento do poder/dever de dirigir à recorrente tal convite e a consequente prolação da decisão sumária sob reclamação, constitui verdadeira decisão surpresa, com violação do princípio e do direito do contraditório, previsto no art.º 3.º, n.º 3, do NCPC, o que a torna nula.
6ª Na primeira intervenção processual da recorrente, impugnação judicial da contraordenação rodoviária que lhe foi imputada, não havia decorrido o prazo prescricional de dois anos previsto no CE, aprovado pelo Dec.Lei n.º 44/2005, de 23.02, pelo que, naquela altura, não lhe era imposto que suscitasse a inconstitucionalidade das normas do CE referidas supra.
7ª Em ata de audiência de discussão e julgamento não ficam exaradas as alegações das partes, nem as do Ministério Público, nem as da arguida, a qual, porém, alegou, de facto, em alegações orais, que a infração porque vinha acusada estava já prescrita, por prescrição ocorrida em 16.12.2012, por serem de aplicar ao processo as normas dos artigos 132.º e 188.º do CE, aprovado pelo Dec.Lei n.º 44/2005, de 23.02, sem qualquer causa de suspensão e/ou interrupção previstas nas normas dos artigos 27.ºA e 28.º do RGCO, por estas serem inaplicáveis, sob pena de aquelas normas do CE serem inconstitucionais.
8ª Porque tais alegações orais não merecem, nem têm, resposta por parte do Tribunal que aplicou as normas a não ser por meio da sentença proferida pelo Tribunal da Ia instância, só nas alegações do recurso dessa sentença podia e pôde a recorrente suscitar, por escrito, a inconstitucionalidade que suscitou relativamente às normas previstas nos art.ºs 132.º e 188.º do CE, em vigor à data.
9ª Tem, pois, de concluir-se que a recorrente deu cabal cumprimento ao disposto no art.º 70°, n° 1, al. b), da LTC no seu requerimento de recurso para esse Tribunal Constitucional.
10ª E, bem assim, que a referência às normas do RGCO que fez em tal requerimento se trata de evidente lapso de escrita, por se ter querido fazer referência às normas previstas nos art.ºs 132.º e 188.º do CE, aprovado pelo Dec.Lei n.º 44/2005, de 23.02, se interpretadas como permitindo a aplicação aos procedimentos de contraordenações rodoviárias, mesmo que subsidiária, das causas de suspensão e/ou interrupção da prescrição, previstas nas normas dos artigos 27.º A e 28.º do RGCO.»
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público, na qualidade de recorrido, veio apresentar a seguinte resposta:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 204/2014, não se conheceu do objeto do recurso interposto por A. para o Tribunal Constitucional.
2º
Como nos parece evidente e se demonstra da douta Decisão Sumária, no que respeita às normas que a recorrente indicou no momento próprio – o requerimento de interposição do recurso -, como devendo constituir objeto de recurso, a sua inconstitucionalidade não fora suscitada “durante o processo”, ou seja, no caso, na motivação do recurso interposto para a Relação de Guimarães da sentença proferida em 1.ª instância.
3º
O convite a que alude o artigo 75.º-A, n.ºs 5 a 7 da Lei do Tribunal Constitucional, destina-se a dar a possibilidade aos recorrentes de suprirem deficiências formais de que o requerimento de interposição do recurso enferme.
4º
Ora, o requerimento apresentado pela recorrente cumpre os requisitos legalmente exigidos, pelo que não tinha que ser proferido despacho-convite.
5.º
Falta, porém, o requisito material de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC que consiste na suscitação “durante o processo” da constitucionalidade da norma que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie que, naturalmente, é a identificada no requerimento de interposição do recurso.
6.º
Parece-nos também que quanto à identificação, como devendo constituir objeto do recurso, das normas dos artigos 27º-A, n.º 1, alínea c), e 28.º, ambos do Regime Geral das Contraordenações, quando vista em conjunto e em articulação com o que mais é dito no requerimento de interposição do recurso, não poderá concluir-se que tal se deveu a um lapso, mas antes a uma alteração do que havia sido afirmado na motivação do recurso para a Relação.
7.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.
8.º
Poderíamos, no entanto, ainda acrescentar que mesmo que se conhecesse de mérito, sempre seria de proferir decisão sumária a negar provimento ao recurso, porque se está perante uma “questão simples” (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).
9.º
Na verdade, parece-nos evidente que as normas dos artigos 188.º e 132.º do Código da Estrada, na versão saída das alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 44/2005, de 23 de fevereiro, interpretadas no sentido de que às contraordenações rodoviárias se aplica subsidiariamente o regime geral das contraordenações no que diz respeito às causas de suspensão e interrupção da prescrição, não são inconstitucionais.
10.º
O Tribunal Constitucional numa jurisprudência que se tem mantido inalterável desde o Acórdão n.º 56/84, vem entendendo que, em matéria contraordenacional, a competência legislativa reservada à Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição) situa-se a nível de edição das normas “primárias”, ou seja, que façam parte do regime geral, podendo o Governo, no uso da competência legislativa concorrente, e dentro dos limites de “Lei Quadro” delinear indícios contra-
-ordenacionais, estabelecer a correspondente punição e moldar as regras secundárias do processo contraordenacional (v.g. Acórdãos nºs 629/2006 e 339/2008).
11.º
Assim sendo, uma norma emitida pelo Governo no uso da competência legislativa própria, que se limite a mandar aplicar o regime geral – que consta do Decreto-lei nº 433/82, de 27 de outubro -, não será organicamente inconstitucional.
12.º
Note-se, por outro lado, que esse já era o regime que vigorava antes das alterações introduzidas no Código da Estrada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, como se diz no acórdão recorrido e o próprio recorrente aceita (vd. ponto 6 da motivação do recurso para a Relação – fls. 73).
13.º
Apenas para fixar prazos de prescrição diferentes daqueles que constavam do Regime Geral é que o Governo, naturalmente, necessitava de estar habilitado pela Assembleia da República.
14.º
Esta habilitação foi-lhes concedida pelo artigo 3.º, alínea d)d), da Lei n.º 53/2004, de 4 de novembro, tendo, em cumprimento dessa autorização, o Governo editado o Decreto-Lei n.º 44/2005, que aditou ao Código da Estrada o citado artigo 188.º, no qual se estabelece que o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional é de dois anos.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. O principal argumento esgrimido pela reclamante resume-se a alegar que a referência, no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, às normas extraídas dos artigos 27º e 28º do Regime Geral das Contraordenações (RGC) apenas se verificou por mero lapso de escrita, pretendendo aquela antes indicar como objeto do recurso as normas extraídas dos artigos 132º e 188º do Código da Estrada (CE). Sucede, porém, que não se vislumbra nenhuma identidade gráfica entre os preceitos legais identificados no requerimento de interposição de recurso, assim como os diplomas legais onde aqueles se encontram previstos também são distintos. Não se pode concluir, de modo objetivo, que tenha ocorrido qualquer lapso de escrita que seja juridicamente relevante.
Além disso, o requerimento de interposição de recurso consiste na sede processual adequada para fixação do objeto dos recursos de constitucionalidade, mediante indicação das normas que o compõem, conforme, aliás, resulta do n.º 1 do artigo 75º-A da LTC. Bem sabendo disso, cabia à recorrente ter tido particular cautela na indicação das normas jurídicas que pretendia escolher – como escolheu – como objeto do presente recurso, não sendo legalmente admissível que venha tentar – só agora, em sede de reclamação – alterar o objeto de um recurso que já foi fixado no momento da sua interposição.
Por fim, tendo a recorrente dado pleno cumprimento ao n.º 1 do artigo 75º-A da LTC, não havia qualquer fundamento legal para que a Relatora tivesse procedido a qualquer convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 75º-A, n.º 6, da LTC, que só pode ocorrer quando estejam em falta qualquer um dos elementos exigidos por aquele preceito legal. O que não era, manifestamente, o caso do requerimento de interposição de recurso, que identificou – por exclusiva vontade da recorrente – as normas cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada.
Assim sendo, torna-se incontornável concluir, como a decisão reclamada, no sentido de que não foi suscitada, perante o tribunal recorrido, a inconstitucionalidade das normas extraídas dos artigos 27º e 28º do RGC, razão pela qual deve ser indeferida a presente reclamação.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 24 de abril de 2014. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro