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Proc. nº 1106/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - ML...propôs, no Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, acção de despejo contra J... e mulher, MA..., pedindo, ao abrigo do artigo 69º, nº 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro, se decrete a denúncia do contrato de arrendamento do prédio urbano de que é proprietária e arrendatários os demandados para o termo da renovação do contrato, condenando-se estes a entregarem-no à autora devoluto de pessoas e bens, nessa data - 30 de Junho de 1998 - ou, o mais tardar, decorridos três meses sobre a decisão definitiva, com as legais consequências. Contestaram os réus e, na respectiva defesa, por excepção, invocam o disposto no artigo 107º, nº 1, alínea b), do mesmo Regime, defendendo a caducidade do direito de denúncia, face à sua alegada inconstitucionalidade orgânica - por violação do artigo 165º, nº 1, alínea h), da Constituição da República Portuguesa (CR) - vício de que igualmente padece o artigo 69º, nº 1, alínea a). Respondeu a autora e, oportunamente, foi proferida sentença - a 26 de Maio de
1998 - na qual se recusou a aplicação ao caso das normas do nº 1, alínea a), do artigo 69º do RAU, na parte em que permite ao senhorio a denúncia para habitação dos seus descendentes em primeiro grau, e da alínea b) do nº 1 do artigo 107º, do mesmo diploma, que alargou de 20 para 30 anos o período de manutenção no locado do arrendatário, como impeditivo da denúncia do contrato pelo senhorio,
'pois tais normas terem sido produzidas por órgão incompetente para o efeito, violando reserva de lei parlamentar'.
2. - O magistrado do Ministério Público competente, notificado, interpôs recurso desta sentença para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, recurso que viria a ser recebido. Notificados para alegarem, fizeram-no oportunamente recorrente e recorrida. O Senhor Procurador-Geral adjunto concluíu do seguinte modo as suas alegações:
'1º- É organicamente inconstitucional a norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 69º do Regime de Arrendamento Urbano, na parte em que permite ao senhorio a denúncia para habitação dos seus descendentes em 1º grau.
2º- A definição do 'tempo de arrendatário', susceptível de obstar ao exercício do direito de denúncia pelo senhorio da relação locatícia, diz respeito ao regime geral do arrendamento urbano, situando-se, consequentemente, no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
3º- Não pode interpretar-se o sentido da norma constante do artigo 2º , alínea c) da lei de autorização legislativa (Lei nº 42/90, de 10 de Agosto) como facultando ao legislador credenciado a possibilidade de regular, em termos inovatórios, a matéria de denúncia do arrendamento para habitação do senhorio, nomeadamente alargando substancialmente o 'tempo de arrendatário' exigido como obstáculo ao exercício de tal direito.
4º- Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
E a recorrida, por sua vez:
'1. A Recorrida intentou acção judicial tendente a denunciar arrendamento para habitação da sua filha, o que fez ao abrigo das normas do Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro, ainda em vigor, cuja inconstitucionalidade não fora declarada, no momento em que pretendeu tutela legal para o seu direito.
2. Com efeito, tais normas constam expressamente dos artigos 69º, nº 1, alínea a) do artigo 107º nº 1 alínea b) do Regime do Arrendamento, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, aprovado ao abrigo da Autorização Legislativa nº 42/90.
3. Sucede que, tais normas, cuja declaração de inconstitucionalidade é ora suscitada, sendo objecto do presente recurso, foram ao longo de quase uma década, sucessivamente aplicadas pelos Tribunais Comuns, o que permitiu aos cidadãos adquirirem uma certeza e segurança jurídica quanto à reconhecimento e existência dos seus direitos e expectativas fundadas.
4. Permitiu ainda a aplicação dessas normas e a sua não declaração de inconstitucionalidade atempada, que inúmeros cidadãos vissem, enquanto filhos de senhorios, o seu direito à habitação protegido, ao abrigo de normas, que são, agora e a destempo, postas em crise.
5. Face ao exposto, a declarara-se a inconstitucionalidade orgânica desses preceitos legais, estar-se-ia a desrespeitar o direito de igualdade de todos os cidadãos perante a lei, idealmente geral e abstracta, permitindo-se a uns, por força do mero acaso temporal, o reconhecimento dos direitos que essas normas lhes conferiram e, negando-se a outros, de forma manifestamente injusta e irremediável, o reconhecimento desses mesmos direitos, com base em critérios que, afinal, se configuram meramente formalistas e demasiado radicais.
6. Impõe-se, assim, sem mais que o direito da Recorrida seja acautelado, produzindo-se um juízo de constitucionalidade dessas normas, por forma a que os princípios da certeza e segurança jurídica e ainda da igualdade prevaleçam no caso.
7. Sem prescindir, os preceitos legais em apreço não configuram sequer verdadeiras normas inovadoras, em relação ao regime do arrendamento urbano que já existia disperso por vários diplomas - o arrendamento já podia ser denunciado para a habitação do senhorio, apenas se ampliaram as condições do exercício desse direito, tendo-se ainda alargando um prazo de caducidade do uso desse direito, que também já existia.
8. Assim, deverá entender-se que as alterações do RAU quanto a estas matérias não necessitavam sequer de autorização legislativa, podendo ser alteradas pelo Governo.
9. Sem prescindir ainda, caso se entenda que o Governo só podia legislar sobre tais questões, mediante prévia autorização legislativa, sempre se deverá considerar que as alterações havidas, estão contempladas e foram efectuadas ao abrigo da directriz constante do artigo 2º alínea c) da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto. Termos em que e nos mais de direito deverá ser negado provimento ao presente recurso, julgando-se constitucionais as normas dos artigos 69º nº 1 alínea a) e
107º nº 1 alínea b) do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro.'
Cumpre apreciar e decidir.
II
1. - O magistrado recorrente, no seu requerimento de iniciativa obrigatória, refere genericamente a recusa de aplicação de normas do RAU com fundamento na sua desconformidade perante a Lei Constitucional, inferindo-se da leitura da sentença que essas normas são as dos artigos 69º, nº1, alínea a), e 107º, nº 1, alínea b), do RAU, já enunciadas - aquela no segmento que alude aos descendentes em 1º grau - convocada a primeira pela autora para fundamentar o pedido, invocada a segunda pelos demandados, na respectiva contestação. O recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional assenta nos seguintes pressupostos de admissibilidade: a) a recusa de aplicação pela decisão recorrida de uma norma jurídica, com fundamento na sua inconstitucionalidade; b) implicar tal recusa um dos fundamentos da decisão recorrida e não um simples obiter dictum (cfr., por todos, os acórdãos nºs. 14/91 e 206/92, publicados no Diário da República, II Série, de 28 de Março de 1991 e 12 de Setembro de 1992, respectivamente). Ora, da análise da sentença sob recurso resulta que esta, após, num primeiro momento, ter recusado aplicar o segmento normativo da alínea b) do nº 1 do artigo 69º, passou a abordar a segunda das normas convocadas para concluir, de igual modo, pela sua 'desaplicação', também por razões de inconstitucionalidade
- uma e outra por violação da alínea h) do nº 1 do artigo 168º da CR, na redacção vigente à data da publicação do Decreto-Lei nº 321-B/90, que é a pertinente em termos de constitucionalidade orgânica [a que corresponde hoje a alínea h) do nº 1 do artigo 165º, em termos, aliás, análogos aos anteriores]. Posteriormente, foi declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da primeira das normas em causa, na dimensão questionada, pelo acórdão deste Tribunal , nº 55/99, publicado no Diário da República, I Série-A, de 19 de Fevereiro de 1999. Assim sendo, e nesta medida, não resta agora mais do que proceder á aplicação in casu dessa declaração, nos termos da qual a norma do artigo 69º, nº 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de
15 de Outubro, na parte em que refere os descendentes em 1º grau do senhorio, enferma de inconstitucionalidade, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição da República (versão de 1989).
2. - A decisão recorrida julgou, ainda, inconstitucional a norma do artigo 107º, nº 1, alínea b), do RAU, na medida em que alterou de 20 para 30 anos o prazo fixado pelo artigo 2º, nº 1, alínea b), da Lei nº 55/79, de 15 de Setembro. Está, assim, em causa a referida norma, interpretada no sentido de abranger os casos em que, como ocorre na hipótese sub judice, no domínio da lei antiga, decorrera já, integralmente, o tempo de permanência do arrendatário, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio. Ora, o Tribunal Constitucional já sobre ela se pronunciou, como o ilustram os acórdãos nºs. 259/98 e 70/99, publicados no Diário da República, II Série, de 7 de Novembro de 1998 e 6 de Abril de 1999, respectivamente. Vem posta em causa, nos autos, a constitucionalidade orgânica da norma, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea h), da CR [a que corresponde actualmente a alínea h) do nº 1 do artigo 165º]. Ora, como se escreveu naquele acórdão nº 70/99:
'Nos termos do artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição, o regime geral de arrendamento urbano integra a reserva relativa de competência da Assembleia da República. O Tribunal Constitucional tem entendido que esse regime compreende ‘as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção’ (cf. Acórdãos nºs. 352/92 – inédito – e 311/93 – D.R., II Série, de 22 de Julho de 1993). A definição dos pressupostos condicionantes do exercício pelo senhorio, do direito de denúncia do arrendamento para habitação do andar locado respeita a aspectos significativos e substantivos do regime legal do contrato, pelo que se encontra compreendida no âmbito da reserva de competência legislativa relativa da Assembleia da República. Nessa medida, a alteração do prazo de arrendamento (de vinte para trinta anos) susceptível de impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio teria necessariamente de estar legitimado pela lei de autorização legislativa (Lei nº
42/90, de 10 de Agosto).'
Adere-se à doutrina emanada do acórdão, para os devidos efeitos.
III
Em face do exposto, decide-se:
a) em aplicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma da alínea a) do nº 1 do artigo 69º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, na parte em que refere os descendentes em 1º grau do senhorio, constante do mencionado acórdão nº 55/99, negar provimento ao recurso, no que à respectiva questão de constitucionalidade respeita; b) julgar inconstitucional - por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição da República, na redacção da Lei de Revisão Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho - a norma constante da alínea b) do nº 1 do artigo 107º do referido Regime de Arrendamento Urbano; c) em consequência, negar provimento ao recurso, também no que respeita a esta questão de constitucionalidade.
Lisboa, 5 de Maio de 1999 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento (vencido pelo essencial das declarações de voto apostas ao acórdão nº 70/99 (DR, II, de 6/4/99) pelos Exmºs Conselheiros Vítor Nunes de Almeida e Paulo Mota Pinto). Luís Nunes de Almeida