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Proc. nº 110/98
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. J... requereu, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, a suspensão de eficácia do despacho proferido em 11 de Abril de 1997 pela Directora Geral do Departamento de Recursos Humanos da Saúde do Ministério da Saúde, nos termos do artigo 76º e seguintes da LPTA.
A entidade recorrida concluiu, na sua resposta, pela rejeição desse pedido.
Por despacho de 18 de Junho de 1997, o juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa declarou esse Tribunal incompetente em razão do território, ordenando a remessa dos autos para o TAC do Porto.
2. Inconformada, a requerente interpôs recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal Administrativo.
Por acórdão de 30 de Outubro de 1997, o Supremo Tribunal Administrativo concedeu provimento ao recurso, e considerou competente para a questão o TAC de Lisboa.
Passando a apreciar o pedido de suspensão de eficácia, aquele aresto concluiu pela inviabilidade do mesmo, indeferindo-o.
3. A requerente veio então arguir a nulidade do Acórdão do STA, por excesso de pronúncia do mesmo, dado que
a) o Tribunal recorrido (Administrativo do Círculo de Lisboa) não se pronunciou sobre o mérito do pedido;
b) o objecto do recurso restringia-se (até pelo facto de não poder haver recurso sobre matéria que não havia sido objecto de pronúncia pelo Tribunal Administrativo do Círculo) à definição da competência territorial para a apreciação da questão.
A recorrente considerou ainda, na sua arguição, que tal excesso de pronúncia, uma vez que o tribunal recorrido se não debruçara sobre a questão de fundo, estava a «subtrair um grau de jurisdição previsto pela lei».
Pelo acórdão de 17 de Dezembro de 1997, o STA indeferiu a arguição de nulidade. Concluiu-se nesse aresto:
[...] o princípio do duplo grau de jurisdição visa assegurar fundamentalmente o reexame ou fiscalização por um tribunal hierarquicamente superior das decisões da 1ª instância pelo facto de presuntivamente aquele tribunal garantir uma melhor justiça quer porque as suas decisões são sempre tomadas por um colectivo de juizes quer porque estes serão «mais experientes».
Deste modo, no caso presente não se colocaria tal questão, uma vez que é precisamente o tribunal superior que aprecia a pretensão do requerente, estando, pois, assegurada essa «melhor justiça».
[...]
Assim entendido - como o deve ser – o princípio do duplo grau de jurisdição em nada é afectado pelo facto de o Supremo Tribunal Administrativo, após ter revogado a decisão do Tribunal Administrativo de Círculo que se julgara territorialmente incompetente (e, por isso, não conhecera do mérito do pedido de suspensão de eficácia), ter entrado de imediato na apreciação do mérito desse pedido e ter decidido no sentido do seu improvimento, sendo certo que todos os intervenientes processuais - designadamente a ora reclamante - já tinham tido oportunidade processual, que efectivamente utilizaram, de se pronunciarem sobre as questões que vieram a ser decididas pelo acórdão ora reclamado, pelo que a decisão nele contida respeitou escrupulosamente o princípio do contraditório, não constituindo qualquer decisão-surpresa.
4. É dessa decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade,
«no âmbito do art. 70º da [...] Lei Orgânica [deste Tribunal], quanto às seguintes questões:
- a afirmada insusceptibilidade de ser decretada a suspensão da eficácia do acto administrativo por se lhe imputar um conteúdo negativo, viola o art. 268º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que recusa a aplicação daquela norma, a qual, determinando a recorribilidade dos actos administrativos, indepen-dentemente da sua forma, por extensão natural de aplicação, envolve a susceptibilidade de o acto ser suspenso na sua eficácia - insere-se, em consequência, na previsão do art. 70º, al. c) da Lei Orgânica do tribunal Constitucional;
- ao conhecer do mérito da causa, sem que tal tenha sido delimitado como objecto do recurso, insusceptibilizando, em consequência, o recurso a um grau de jurisdição o qual, por natureza do próprio processo, estava na disponibilidade do recorrente, viola o princípio fundamental que coloca à disposição dos particulares um duplo grau de jurisdição, chamando à colação a questão da inconstitu-cionalidade do art. 103º, al. a) da LPTA - insere-se, em consequência, na previsão do art. 70º, nº 1, al. f) da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
5. Admitido o recurso, e já neste Tribunal, foi elaborada exposição prévia, nos termos do disposto no artigo 78º-A da LTC (Lei nº 28/82, de 11 de Novembro), na qual o relator se manifestou no sentido de não se conhecer do recurso, nos termos seguintes:
Quanto à primeira questão indicada pela recorrente, e desde logo, esta não invoca qualquer recusa de aplicação de uma norma infra-constitucional por contradizer lei de valor reforçado, já que não identifica nem uma nem outra, antes apontando à decisão recorrida uma não aplicação do artigo 268º, nº 4, da Lei Fundamental. Ora, o que a alínea c) do nº
1 do artigo 70º da LTC determina é que cabem recurso para este Tribunal das decisões «que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado», o que não é manifestamente o caso.
Aliás, nem se descortina na decisão recorrida qualquer recusa de aplicação de uma qualquer norma infra-constitucional. E o que a recorrente parece querer indicar é que a norma eventualmente não aplicada foi aquele preceito constitucional - o que não se configura como uma questão de inconsti-tucionalidade -, sendo que tal preceito nunca se poderia mostrar violador de lei com valor reforçado.
Quanto à segunda questão, indica a recorrente como norma a apreciar o artigo 103º, alínea a), da LPTA, por violação do princípio do duplo grau de jurisdição.
E subsume esta questão à alínea f) do nº 1 do artigo 70º da LTC; mas este, por sua vez, refere-se aos recursos das decisões
«que recusem a aplicação de norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)».
Também aqui se não verifica o pressuposto do recurso de constitucionalidade pretendido: desde logo, porque não foi a ilegalidade daquela norma suscitada durante o processo pela recorrente com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) (sendo, aliás, que estas duas últimas se referem a normas constantes de diplomas regionais e violadoras de estatuto de uma região autónoma, respectivamente, o que nunca se poderia verificar no caso dos autos). Aliás, tal norma também não foi aplicada na decisão recorrida, nem a sua inconstitucionalidade suscitada durante o processo pela recorrente (isto, no caso de se pretender interpor o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do referido artigo 70º).
6. Na sua resposta, a recorrente continuou a propugnar a admissibilidade do recurso pretendido, porquanto:
(...) apenas perante o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo se suscitou a questão da irrecorribilidade, sendo que antes, em momento anterior do processo, a invocação da inconstitucio-nalidade agora suscitada e motivadora do presente recurso nem sequer fazia sentido equacionar.
Por outras palavras, a inconstitucionalidade foi suscitada e invocada no primeiro momento, e desde o primeiro momento, em que foi carreada para o processo a questão decorrente da norma contida no art. 103, al. a) da LPTA.
(...) a norma não foi expressamente invocada pela decisão recorrida, não obstante ter sido efectivamente aplicada, em termos de consequências.
(...) Sendo que a recorribilidade para o Tribunal Constitucional não pode estar dependente de uma invocação directa, sob pena de se esvaziar de conteúdo o meio processual a ela subjacente.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
7. Com efeito, a resposta da recorrente nada traz de novo em relação
à exposição prévia do relator.
Desde logo, quanto à primeira questão indicada naquela exposição, a mesma foi abandonada pela recorrente na presente resposta, pelo que nada há a acrescentar àquela exposição.
Quanto à segunda questão, e como também resulta da sua resposta, a recorrente limita-se a pretender que suscitou a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 103º, alínea a), da LPTA, em momento oportuno, porquanto aquele aresto constituiu «novidade absoluta», e só nesse momento
«fazia sentido» equacionar tal questão; de resto, terá suscitado a questão na arguição de nulidades do acórdão recorrido, o que, no seu entender, seria momento oportuno para tanto.
Quanto à aplicação da norma pela decisão recorrida, entende que a mesma foi «efectivamente aplicada, em termos de consequências»; e que o recurso para este Tribunal «não pode estar dependente de uma invocação directa».
8. Ora, adiante-se desde logo que aqueles aspectos de não aplicação da norma pela decisão recorrida e de a respectiva questão de inconstitucionalidade não ter sido suscitada durante o processo se referiam à hipótese de se pretender interpor o recurso ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º, e não da alínea f), como a recorrente fez in casu; de todo o modo, é jurisprudência pacífica e uniforme deste Tribunal considerar que a suscitação da questão de inconstitucionalidade no requerimento de arguição de nulidades se não pode entender como feita «durante o processo», por ocorrer depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à apreciação dessa questão.
Como este Tribunal tem repetidamente afirmado, só se pode considerar suscitada a questão durante o processo, quando a tempo de o tribunal a quo sobre ela se pronunciar, antes de esgotado o seu poder jurisdicional. Significa isto que o requerimento de arguição de nulidades de uma decisão judicial não é instrumento idóneo para se levantar, pela primeira vez, a questão de inconstitucionalidade, em termos de se abrir a via do recurso para o Tribunal Constitucional.
9. É que, ao contrário do que entende a recorrente, não se tratou de uma decisão-surpresa, não sendo previsível que o STA se debruçasse sobre a questão. Era, antes, de todo previsível tal pronúncia, no caso, como sucedeu, de a pretensão da recorrente relativa à competência do Tribunal merecer acolhimento, por constituir orientação e jurisprudência uniforme daquele
«Supremo Tribunal Administrativo que o objecto do recurso jurisdicional de decisões que julguem pedidos de suspensão de eficácia abrange a decisão judicial recorrida e o próprio pedido de suspensão (no mesmo sentido, entre muitos outros, cfr. o acórdão de 2 de Maio de 1996, recurso nº 39 613, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 455, pág. 290)», como se pode ler na decisão recorrida, citando a mesma ainda outros acórdãos daquele Supremo Tribunal no mesmo sentido. Tal regime, aliás, decorria, desde logo, do preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 102º da LPTA e 753º do CPC.
Quer dizer, no caso de atendimento da sua pretensão, a recorrente deveria ter antecipado que o STA passaria ao conhecimento imediato da questão, pois que essa é orientação uniforme, pelo que sempre dispôs de momento e oportunidade processual para o efeito de suscitar a pretendida questão de inconstitucionalidade.
10. Para além disso, a recorrente continua a sustentar a admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea f) do nº 1 do artigo
70º da LTC. Como já referido na exposição prévia, tal recurso só poderia ter por objecto norma cuja ilegalidade houvesse sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e) do mesmo nº 1 do artigo 70º. Estas duas últimas estão naturalmente afastadas, pois que se referem apenas aos casos de normas constantes de diploma regional ou violadoras de estatuto regional, respectivamente, pelo que apenas poderia verificar-se o caso da alínea c), ou seja, ilegalidade da norma por violação de lei de valor reforçado.
Ora, nem a recorrente indica qual a lei de valor reforçado que entende violada nem no processo se descortina qualquer norma com tal valor.
Quanto a esta questão, a resposta da recorrente em nada contraria a exposição prévia.
11. Em todo o caso, a norma não foi efectivamente aplicada. Com efeito, aquele artigo 103º da LPTA determina a irrecorribilidade das decisões do STA, da forma seguinte:
1 – Salvo por oposição de julgados, não é admissível recurso dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Central Administrativo que decidam: a) Em 2º grau de jurisdição;
[...]
Na verdade, esta norma só teria aplicação se a decisão recorrida tivesse, in casu, recusado a admissão de recurso para o Pleno, o que não aconteceu. Não se verificou, pois, aplicação da norma em causa.
III - DECISÃO
12. Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta. Lisboa, 3 de Junho de 1998 Luis Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Bravo Serra Messias Bento Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa