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Processo n.º 1180/13
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26 de setembro de 2013. Na sequência de despacho-convite proferido pelo Relator ao abrigo do n.º 6 do artigo 75.º-A, da LTC, veio o recorrente esclarecer que a norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada por este Tribunal é o artigo 271.º, n.º 8, do Código do Processo Penal (CPP), por no seu entender tal normativo violar o disposto no artigo 32.º da CRP.
2. O recorrente foi condenado, pelo tribunal de 1.ª instância, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças, agravado, previsto e punido nos termos dos artigos 171.º, n.º 3, alíneas a) e b), e 177.º, alínea a), ambos do Código Penal, e por um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das armas e munições (na redação conferida pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro), na pena única de vinte meses de prisão. Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, formulando, com pertinência para os presentes autos, as seguintes conclusões:
«(…)
1. Nos presentes autos, foram tomadas declarações para memória futura à Ofendida, nos termos do art. 271.º, do Código de Processo Penal.
2. O artigo 271.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal estipula que ao arguido é comunicado o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que este possa estar presente.
(…)
5. Pelo que caso venha a ser julgado que a nulidade está sanada, essa interpretação da lei, art. 271.º, n.º 3 do Código de Processo Penal – viola esse direito de defesa do arguido, consagrado constitucionalmente no art. 32.º da C.R.P., inconstitucionalidade essa que se invoca para todos os efeitos legais.
6. Por outro lado o art. 271.º, n.º 8 do Código de Processo Penal, estipula que a tomada de declarações em sede de inquérito não prejudica a prestação de depoimento em audiência de Julgamento.
7. Acontece que não foi prestado depoimento em audiência pela ofendida, nem justificada qualquer impossibilidade de ser obtido esse depoimento.
8. Essas declarações não foram lidas na audiência de julgamento e por conseguinte não foram submetidas a contraditório, em clara violação do princípio do contraditório e dos direitos de defesa do arguido, consagrados no n.º 5 do art. 32.º da CRP, que estipula que o Tribunal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
(…)
13. Caso venha a ser entendido, hipótese que se levanta sem se conceder, e por dever de patrocínio, que as declarações para memória futura não têm que ser lidas e examinadas em audiência de julgamento, o artigo 271.º do Código de Processo Penal é inconstitucional por violação do princípio do contraditório, consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da C.R.P., inconstitucionalidade essa que se invoca para todos os efeitos legais.
(…)»
Considerou o tribunal recorrido, no acórdão de 26 de setembro de 2013, que:
«(…)
Os elementos de prova devem, pois, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório.
Todavia, este princípio, comportando exceções, aceita-as sob reserva da proteção dos direitos de defesa, que impõem que ao arguido seja concedida uma oportunidade adequada e suficiente para contraditar uma testemunha de acusação posteriormente ao depoimento, sendo apenas os direitos de defesa limitados de maneira incompatível com o respeito do princípio e sempre que uma condenação se baseie, unicamente ou de maneira determinante, nas declarações de uma pessoa que o arguido não teve oportunidade de interrogar, seja na fase anterior, seja durante a audiência.
(…)
Em certas circunstâncias, com efeito, pode ser necessário que as autoridades judiciárias recorram a declarações prestadas na fase do inquérito ou da instrução, nomeadamente quando a impossibilidade de reiterar as declarações é devida a factos objetivos, como sejam a ausência ou a morte, ou por circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa (crimes sexuais); se o arguido tiver oportunidade, adequada e suficiente, de contraditar tais declarações posteriormente, a sua utilização não afeta, apenas por si mesma, o contraditório, cujo respeito não exige, em termos absolutos, o interrogatório direto em cross-examination.
O princípio do contraditório tem, assim, uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspetiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afete o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade de se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que aos outros sujeitos processuais (a “parte” adversa).
O modo de prestação de declarações para memória futura respeitou, como já se disse, os elementos essenciais do contraditório, dadas as garantias que o n.º 2 do artigo 271.º do CPP estabelece: o arguido pôde estar presente na produção (não esteve no caso dos autos devido a despacho judicial, mas foi desde logo informado do teor das declarações para memória futura prestadas pela ofendida, a sua filha menor), esteve representado na diligência por advogado, tendo sido assegurado assim e sem qualquer margem para dúvidas a possibilidade de confrontação em medida substancialmente adequada ao exercício do contraditório (artigo 271.º, n.º 2 e 3 do CPP).
(…)
Ora adotando este Tribunal a mesma opção quanto à questão levantada pelo recorrente, decorre que não há qualquer reparo a fazer quanto à menção expressa de facto ao teor das declarações para memória futura para alicerçar a convicção do Tribunal “a quo”, pela simples e linear ordem de razões de que não há necessidade de se proceder a tal leitura em audiência de discussão e julgamento (ou a audição do suporte áudio, nos casos em que não existe transcrição), não se tendo violado o princípio do contraditório, inexistindo assim e por arrastamento qualquer erro notório de apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal) na sentença recorrida (…).
Uma vez que o princípio do contraditório estava já anteriormente e plenamente garantido no caso dos autos, teremos que forçosamente concluir que o artigo 271.º do Código de Processo Penal não se encontra ferido de qualquer inconstitucionalidade no segmento em apreço e apontado pelo arguido, ou seja, que a não leitura em audiência de discussão e julgamento das declarações para memória futura acarrete os resultados que eram pretendidos pelo arguido, o que se declara.
(…)»
3. Notificado para alegar, nos termos do artigo 79.º da LTC, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
«(…)
1. Nos presentes autos a condenação do Recorrente foi fundamentada com base no depoimento prestado pela Ofendida para memória futura.
2. Acontece que, não foi prestado depoimento em audiência de julgamento pela Ofendida, nem justificada qualquer impossibilidade de ser obtido esse depoimento.
3. E, essas declarações também não foram lidas, nem submetidas a contraditório.
4. Assim, essas declarações não foram sujeitas ao princípio do contraditório em sede de audiência de julgamento.
5. O princípio do contraditório consagrado constitucionalmente no art. 32º, nº 5 da CRP exige que toda a prova tem de ser produzida em audiência de julgamento, pelo que, a interpretação que o Tribunal a quo e o Tribunal superior fizeram do art. 271º, nº 8, do CPP, é inconstitucional. Neste sentido, veja-se a mero título de exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.07.2005, proferido no Processo nº 0540595.
(…)»
4. As recorridas contra-alegaram, em requerimento com o seguinte teor:
«(…)
1. Pretende o recorrente que a decisão seja considerada inconstitucional, alegando que as declarações para memória futura prestadas pela Ofendida, não foram submetidas ao princípio do contraditório, inquinando a decisão proferida.
2. Recordamos que esta questão já foi considerada no acórdão do tribunal da Relação de Lisboa, a qual concordamos plenamente e nos apoiamos na sua fundamentação.
3. Remetemos para a dita fundamentação o que foi decidido sobre a inconstitucionalidade em apreço e nos dispensamos de reproduzir
4. Relembramos apenas uma sumula das nossas motivações dessa altura.
5. Em sede de inquirição, foi nomeado ao arguido um defensor oficioso, ao qual sempre foi dada oportunidade de intervir e de alegar no final daquela diligência, conforme consta do auto de diligência elaborado, bem como nos atos subsequentes.
6. Assim, o contraditório e os direitos de defesa do arguido foram sempre respeitados, nada havendo que apontar neste caso, bem andou o tribunal, ao levar em consideração tais decisões em conta na sentença proferida.
7. Aliás, esta é a posição maioritariamente defendida pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, de que são exemplo e que transcrevemos nas nossas motivações.
8. Apontamos o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de fevereiro de 2008, relativo ao processo 7877/07-5: “reunidos os pressupostos processualmente exigidos para a respetiva produção, as declarações para memória futura constituem um modo de produção de prova pessoal submetido a regras específicas, visando acautelar o respeito por princípios estruturantes do processo, mormente pelo princípio do contraditório (cfr. art.217º., nº.3 do C.P.P.)».
9. Sustentamos a nossa posição nas palavras do Acórdão do STJ de 07 de novembro de 2007, proferido no âmbito do processo 07P3630: “o princípio do contraditório tem uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspetiva processual significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afete o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que os outros sujeitos processuais (a parte adversa)».
10. Ainda quanto a este assunto refere o acórdão do STJ de 20 de janeiro de 2010, por referência ao processo 19/04.2JALAR.C2.S1: «a prestação de declarações para memória futura por parte de vítima de crime sexual, nos termos do artigo 271.º 1, do CPP, perante o Mº JIC, devem funcionar em pleno o contraditório com a comunicação ao arguido que esteve presente, ao advogado da assistente, mediante a indicação do dia, hora e local da prestação de depoimento»
11. E prossegue o mesmo aresto: «as garantias de defesa do arguido estão asseguradas mediante a produção de prova ante um juiz que exclusivamente pergunta, com possibilidade de assistência de defensor e arguido podendo aquela prova ser impugnada, abalada ou aproveitada em julgamento, como qualquer outra, regime que, não obstante a lei 48/2207 de 29-08 ter alterado, manteve no entanto, em essência o regime anterior, introduzindo uma nota de simplificação formal nos casos de processos contra crimes contra a autodeterminação sexual no nº 4 daquele artigo 271, podendo os intervenientes processuais formular perguntas adicionais, aproximando o incidente do ritual da audiência de julgamento»
12. Quanto à falta do arguido, à diligência, se esta abrisse caminho à inconstitucionalidade alegada, refere o acórdão do STJ de 19 de abril de 1991, processo 41428/3.ª: «no caso de depoimento prestado para memoria futura, dada a forma como o depoimento è prestado, essa contrariedade apenas é alcançada com a presença facultativa do arguido, seu advogado ou MP e com a possibilidade de solicitarem ao juiz a formulação de perguntas adicionais, conforme os n.ºs 2 e 3 do artigo 271, não obrigando a lei á presença do arguido ou seu defensor, já que é expressa em referir que são notificados «para que possam estar presentes se o desejarem» e não permite sequer o contrainterrogatório, mas só as perguntas adicionais já referidas»
13. Indica ainda o Acórdão do STJ de 7 de novembro 2007: «I. Por exigência do princípio do contraditório, as provas devem, em princípio, ser produzidas perante o arguido, em audiência pública. II. Tal princípio, porém, comporta exceções, pois verificada a impossibilidade de reiterar as declarações prestadas no inquérito ou na instrução, seja por ausência ou morte do declarante, seja por circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa, podem essas declarações ser valoradas na audiência de julgamento. III. É que o princípio do contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório direto ou em cross-examination. IV. O modo de prestar declarações pro memoria futura respeita no essencial o princípio do contraditório».
14. Não se compreende por isso, esta parte das motivações do dito recurso, pois na referida tomada de prova foram observados todos os requisitos legais não estando esta ferida de inconstitucionalidade, já analisada em sede do acórdão recorrido.
15. Citamos também oportunamente, as orientações existentes junto dos serviços do MP, para que:
«Nos casos de crimes sexuais nos quais seja ofendido menor, tendo presente a especial vulnerabilidade da vítima, em razão da sua idade e da natureza dos atos de que foi alvo, fortemente perturbadores da sua intimidade e integridade sexual, deverá o Ministério Público, sempre que possível e salvo a existência de especiais e ponderosas razões que o desaconselhem, providenciar pela tomada de declarações para memória futura ao ofendido, nos termos prevenidos no art.271º. do C.P.P., assegurando também que, tendo presente o estatuído na parte final do seu nº.3, no decurso dessa diligência, esteja obrigatoriamente presente defensor do arguido constituído ou a constituir, assim se assegurando o princípio do contraditório que vigora em processo penal.»
16. Sobre a não obrigatoriedade da leitura das declarações prestadas, referimos o douto Ac, TRL de 11-01-2012:
I. A redação originária do CPP de 1987, em coerência com o modelo acusatório que adotou, previa no seu art. 271.º que, em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a pudesse vir a impedir de ser ouvida em julgamento, o juiz de instrução procedesse à sua inquirição no decurso do inquérito para que o seu depoimento pudesse, se necessário, vir a ser tomado em conta no julgamento.
II. Embora o formalismo estabelecido para esse ato possibilitasse, em certa medida, o exercício do contraditório, o ato não decorria em condições idênticas àquelas em que teria lugar se realizado na audiência.
III. Este instituto, na versão originária do Código, desempenhava uma função puramente cautelar visando obter uma prova que poderia ser impossível de produzir na audiência de julgamento.
IV. A prova assim recolhida somente poderia ser utilizada, através da leitura do respetivo auto, se tal viesse a ser necessário.
V. As revisões de 1998 e de 2007 alteraram a natureza meramente cautelar do art. 271.º do CPP.VI. Conquanto esta finalidade se tenha mantido, as declarações para memória futura passaram a poder ter igualmente lugar para proteção de vítimas de determinados crimes. A partir de 1998, dos crimes sexuais e, a partir de 2007, dos crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual.
VII. Manteve-se, mesmo quanto às vítimas dos indicados crimes, a menção de que as declarações prestadas para memória futura apenas seriam tomadas em conta na audiência se tal fosse necessário, se bem que se tenham restringido os pressupostos da audição dessas testemunhas na audiência através da introdução da exigência suplementar de o respetivo depoimento não pôr em causa a saúde física ou psíquica de quem o devesse prestar.
VIII. O art. 28.º, n.º 2, da Lei de Proteção das Testemunhas em Processo Penal, ao estabelecer que, «sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal», veio alargar ainda mais o âmbito de aplicação deste preceito.
IX. Deixou de ter uma mera função cautelar e de proteger as vítimas de certo tipo de crimes, passando a abranger todas as pessoas que se incluam no amplo conceito de testemunha, tal como ele se encontra definido pelo art. 2.º, alínea a), da Lei n.º 93/99, de 14/07, e a abarcar qualquer tipo legal de crime.
X. A Lei n.º 112/2009, de 16/09, veio, por sua vez, no seu art. 33.º, prever um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do art. 271.º do CPP.
XI. Admitindo o art. 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse ato, importa procurar na lei um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.
XII. Esse critério há de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.
XIII. A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou de propiciar que a vítima exerça o direito que o Código lhe atribui de se recusar a depor. Ela tem esse direito em qualquer momento em que deva depor.
17. Através do princípio da livre apreciação da prova, podem as declarações ser lidas em audiência ou não, caso os intervenientes processuais requeiram e achem por conveniente a sua discussão.
18. Assentamos esta firmação com base no Acórdão TRC de 17 de outubro 2012: «A validade da prova para memória futura não depende da leitura das declarações em audiência, nem esta é necessária para o exercício do contraditório».
19. Este princípio é aliás um dos que está subjacente à motivação da decisão de facto da sentença, «o tribunal fundou a sua convicção na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento (de harmonia com os critérios constantes no artigo 127.ª, do código processo penal), nomeadamente nos depoimentos prestados pelas testemunhas arrolada, bem como pela análise da documentação junta aos autos»
20. Assim, aquele meio de prova é levado em pé de igualdade com as restantes provas obtidas e carreadas nos presentes autos.
21. Na senda da jurisprudência de vários acórdãos, e expresso no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 19 de fevereiro de 2008, no âmbito do processo 7877/07.5: «a imediação é apreciada pelo conjunto e não elemento a elemento, e pressupõe a conjugação sistemática com todos os elementos de prova processualmente admissíveis e produzidos nas condições da lei, como são as declarações para memoria futura cuja validade não depende da leitura das declarações em audiência e não as sobrevalorando em relação à prova produzidas com oralidade, imediação e respeito pelo contraditório»
22. Os formalismos desta tomada de depoimento, ou meio de obtenção de prova têm de observar os requisitos legais de modo a que a prova seja válida, conforme explicado no Acórdão TR Guimarães de 9 de novembro2009: «III. De acordo com o artº 271º do Código de Processo Penal, na redação conferida pela Lei nº 48/2007, de 29/8, as declarações para memória futura de menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual em inquérito constituem ato obrigatório e a documentar através de registo áudio ou audiovisual, valendo como prova de julgamento independentemente do menor vir a ser novamente ouvido durante a audiência».
23. E ainda o Acórdão TRC de 24 de março 2012: «1. As declarações para memória futura constituem uma exceção ao princípio da imediação e, são diligências de prova realizadas pelo juiz de instrução na fase do inquérito, sujeitas ao princípio do contraditório, que visam a sua valoração em fases mais adiantadas do processo como a instrução e o julgamento, mesmo na ausência das pessoas que as produziram.»
(…)»
5. Também o Ministério Público contra-alegou, pugnando pelo indeferimento do recurso:
«(…)
Conclusão
1.ª A norma do nº 8 do artigo 271º do CPP, integra-se no conjunto de um sistema que consegue um equilíbrio constitucionalmente aceitável entre as garantias de defesa do arguido (nas quais se inclui o exercício do contraditório), a realização da justiça (com o exercício pelo Estado do jus puniendi) e os direitos das vítimas, em especial daquelas que, pela sua especial fragilidade, carecem de uma proteção reforçada.
2.ª A prestação de depoimento em audiência de vítima menor de crime de abuso sexual de crianças que anteriormente prestou declarações para memória futura (artigo 271º, nº 8, do CPP), tem natureza excecional, apenas podendo ocorrer se o tribunal oficiosamente ou a pedido de qualquer sujeito processual considerar tal diligência imprescindível para a descoberta da verdade.
3.ª Neste sentido, apenas a sua utilização carece de ser justificada.
4.ª Termos em que deve negar-se provimento ao recurso.
(…)»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. O objeto do presente recurso é integrado pela norma constante do n.º 8 do artigo 271.º, do CPP, no segmento segundo o qual não é obrigatória, em audiência de discussão e julgamento, a leitura das declarações para memória futura, segmento esse aplicado pelo tribunal recorrido por, no seu entender, não consubstanciar violação das garantias de defesa do arguido, mormente do princípio do contraditório, consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição.
O artigo 271.º, n.º 8, do CPP dispõe o seguinte (o itálico é nosso):
«(…)
Artigo 271.º (Declarações para memória futura)
1 – Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 – No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual do menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 – Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação de depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 – Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5 – A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 – É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º.
7 – O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.
8 – A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
(…)»
6.1. Delimitação do objeto do recurso
Apesar de a interpretação normativa que integra o objeto do presente recurso ter sido ratio decidendi do acórdão do TRL, revelam-se necessárias algumas precisões adicionais por forma a que o juízo a proferir sobre a constitucionalidade da norma seja plenamente inteligível para os destinatários da mesma e para os operadores do direito em geral.
Assim, questiona-se a validade do artigo 271.º, n.º 8, do CPP, com o sentido já apontado e na pressuposição de que, por um lado, as declarações para memória futura constituíram meio de prova indicado pelo Ministério Público no despacho de acusação, e de que, por outro, o arguido nada requereu, no decurso de fase de julgamento, a propósito da reprodução ou leitura, em audiência, de tais declarações.
7. As declarações para memória futura
7.1. O instituto das declarações para memória futura reporta-se a um conjunto excecional de casos em que é admissível proceder à inquirição de testemunhas em fases anteriores à do julgamento, podendo tal depoimento, se necessário, ser tomado em conta em julgamento e contribuir para a formação da convicção do julgador. Na hipótese de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, a inquirição do ofendido, pelo juiz, durante a fase de inquérito, tornou-se mesmo obrigatória (cfr. artigo 271.º, n.º 2, do CPP), desde as alterações produzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto.
Ao contrário dos demais casos de declarações para memória futura, assentes num juízo de prognose quanto à impossibilidade de o declarante estar presente na audiência de julgamento, a doutrina sublinha que, nos crimes contra a autodeterminação sexual de menor, a prestação de declarações, bem como o seu caráter obrigatório, radicam numa “opção protetora” do ordenamento jurídico justificada pela especial vulnerabilidade do ofendido (cfr. ainda o artigo 26.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 42/2010, de 3 de setembro, doravante designada “Lei de Proteção de Testemunhas”).
Com efeito, visa-se não só assegurar a genuinidade e a credibilidade das declarações prestadas, mas também, no quadro das recomendações do direito europeu sobre a matéria, mitigar o efeito de vitimização secundária que a repetição das inquirições inelutavelmente comporta [cfr. António Miguel Veiga, «Notas sobre o âmbito e a natureza dos depoimentos (ou declarações) para memória futura de menores ou vítimas de crimes sexuais (ou da razão de ser de uma aparente “insensibilidade judicial” em sede de audiência de julgamento», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 19, 2009, p. 107, e ainda Rui do Carmo, «Declarações para memória futura – Crianças vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual», Revista do Ministério Público, n.º 134, 2013, p. 123]. Tal intenção é, aliás, expressamente coonestada pelo artigo 28.º da Lei de Proteção de Testemunhas.
7.2. O imperativo constitucional de concordância prática entre o interesse da vítima, o interesse da descoberta da verdade material e a salvaguarda dos direitos fundamentais do arguido (cfr. o artigo 18.º, n.º 2, da CRP) reclama naturalmente que as cedências ou compressões de cada um destes direitos ou interesses constitucionalmente protegidos se limite ao indispensável para a realização dos demais, asserção que desvela, no domínio das declarações para memória futura, uma série de consequências normativas (cfr. Maria João Antunes, «O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coação», Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1238).
Na verdade, esta atividade probatória, porque realizada fora do seu locus “natural” – a audiência de julgamento – implica evidentes prejuízos para o princípio do contraditório (cfr. artigo 32.º, n.º 5, da CRP), bem como para os princípios da oralidade, da imediação e da publicidade. Destarte, a validade desta “antecipação” da fase de julgamento está dependente, como é bom de ver, do cumprimento escrupuloso de um conjunto de requisitos, mormente de exigências associadas ao princípio do contraditório. Assim se explica o disposto nos n.ºs 2 e 4 do artigo 271.º, do CPP, bem como a necessidade de redução a auto das declarações prestadas, vertida no n.º 1 do artigo 275.º, do mesmo diploma (cfr. José António Mouraz Lopes, A tutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português, Studia Ivridica, 83, 2005, p. 161, e José Damião da Cunha, «O regime processual de leitura de declarações na audiência de julgamento», RPCC, ano 7, 1997, p. 410).
O princípio do contraditório decorre não só do princípio da igualdade de armas e das exigências ligadas a um processo equitativo (cfr. o acórdão n.º 279/2001, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), mas também da estrutura acusatória do processo penal. Este desdobra-se, assim, tanto num imperativo de separação entre a entidade que investiga e acusa e a entidade que julga, como na criação de condições de “reciprocidade dialética” entre a acusação e a defesa, isto é, de codeterminação, pelos sujeitos processuais, da decisão final do processo (cfr. Maria João Antunes, «Direito ao silêncio e leitura, em audiência, das declarações do arguido», Sub Judice, n.º 4, 1992, p. 25).
Ora, o núcleo essencial do contraditório reconduz-se, de acordo com a jurisprudência constitucional, ao facto de que “nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar”. Com efeito, “não se garante uma defesa efetiva se não houver possibilidade real de serem contrariadas e contestadas todas as afirmações ou elementos trazidos aos autos pela acusação” (v., entre outros, os acórdãos n.ºs 434/87, 172/92 e 372/2000, 279/2001, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Por seu turno, a oralidade e o seu corolário - a imediação - surgem como princípios de forma instrumentais relativamente ao princípio da investigação, o qual, não obstante enxertado numa estrutura acusatória, tem valor ou dignidade constitucional (cfr. os acórdãos n.ºs 137/2002 e 465/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Partem do pressuposto de que a decisão jurisdicional só deve ser proferida por quem tenha assistido à produção das provas e à discussão da causa pela acusação e pela defesa, através de um debate oral. Estima-se que as vantagens epistemológicas trazidas pelo contacto instantâneo do juiz do julgamento com os meios de prova permitam alcançar mais facilmente a verdade dos factos [cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed. (reimpressão), 2004, p. 220, e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I., Verbo, 6.ª ed., 2010, p. 105].
Contudo, apesar de parcialmente sobrepostas, imediação e oralidade não se confundem em absoluto: se, geralmente, as declarações prestadas pelo arguido e pelas testemunhas assentam em ambos os princípios, já a exibição, em audiência, de objetos apreendidos ou de documentos preenche os requisitos da imediação, mas não os da oralidade [cfr. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 220].
Neste contexto, é inequívoca a compressão que as declarações para memória futura importam para os princípios assinalados, porquanto ainda que tal atividade probatória decorra no mesmo “cenário” processual em que terá lugar a audiência de julgamento, não será o juiz desta fase do processo a “usufruir” das vantagens ligadas à relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes processuais. Por outras palavras, as garantias que rodeiam a prestação das declarações não aplacam o facto de elas chegarem ao juiz de julgamento sob a forma de atos escritos ou gravados, elaborados nas fases iniciais do processo (Sandra Oliveira e Silva, A proteção de testemunhas no processo penal, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 234).
Todavia, essa compressão justifica-se em nome da proteção do interesse da vítima e, indiretamente, em razão do interesse público da descoberta da verdade material, sendo de sublinhar o balanceamento gizado no n.º 8 do artigo 271.º, do CPP, que viabiliza a prestação de depoimento em audiência de julgamento, “sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar” (cfr. António Gama, «Reforma do Código de Processo Penal: a prova testemunhal, declarações para memória futura e reconhecimento», RPCC, ano 19, 2009, p. 402).
7.4. Apesar de o Tribunal Constitucional nunca se ter debruçado especificamente sobre a questão das declarações para memória futura, existem dados relevantes na respetiva jurisprudência e que não podem deixar de ser sobrelevados.
Destaca-se, pois, um conjunto de arestos em que o Tribunal concluiu que não implicava violação do direito ao contraditório nem dos demais direitos de defesa do arguido a não participação deste e do seu defensor, ou do assistente, em diligências de instrução prévias ao debate instrutório, fossem estas realizadas perante o juiz ou delegadas por este nos órgãos de polícia criminal (v. os acórdãos n.ºs 372/2000, 59/2001 e 339/2005 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Considerou-se, em síntese, que:
«(...)
Na situação que agora é objeto dos autos, tal direito (ao contraditório), encontra-se efetivamente garantido no seu núcleo essencial, sendo apenas – como bem nota o Ministério Público – diferido o momento do seu exercício.
Efetivamente, o respeito pelo contraditório é aqui garantido não apenas pelo fato de o arguido e seu defensor poderem ter acesso integral aos depoimentos prestados, que são obrigatoriamente reduzidos a escrito, mas fundamentalmente pelo fato de, nos termos do artigo 302.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o defensor do arguido poder, no início do debate instrutório, contraditar o teor das declarações anteriormente prestadas pelas testemunhas ouvidas pela GNR, podendo inclusivamente requerer a produção de prova indiciária suplementar (incluindo mesmo, se necessário, uma nova inquirição daquelas testemunhas) que considere pertinente.
(...)»
Igualmente pertinente é, a este propósito, a questão da admissibilidade de, em audiência de julgamento, poderem ser valorados e utilizados depoimentos de sujeitos processuais prestados em fase anterior (cfr. o acórdão n.º 1052/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Atente-se, com efeito, no preceituado no artigo 356.º do CPP (Leitura permitida de autos e declarações):
«(...)
1 – Sé é permitida a leitura em audiência de autos:
a) Relativos a atos processuais levados a cabo nos termos dos artigos 318.º, 319.º e 320.º; ou
b) De instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas.
2 – A leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas só é permitida tendo sido prestadas perante o juiz nos casos seguintes:
a) Se as declarações tiverem sido tomadas nos termos dos artigos 271.º e 294.º;
b) Se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a sua leitura;
c) Tratando-se de declarações obtidas mediante rogatórias ou precatórias legalmente perante permitidas.
3 – É também permitida a leitura de declarações anteriormente prestadas perante o juiz:
a) Na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos; ou
b) Quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias.
4 – É permitida a leitura de declarações prestadas perante o juiz ou o Ministério Público se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira.
(...)»
O preceito transcrito contém uma série de derrogações ao disposto no artigo 355.º, n.º 1, do CPP, que consagra, como regra geral, que a produção de toda a prova a ser utilizada para efeitos de fundamentação da decisão judicial tem de ser feita em audiência de julgamento. A par das declarações para memória futura, essa leitura apenas é admitida quando estejam em causa: (1) declarações prestadas perante juiz, na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar, na audiência, que já não recorda certos factos, ou quando houver entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias; (2) declarações prestadas perante juiz, Ministério Público ou órgãos de polícia criminal, se houver consenso entre os sujeitos processuais (cfr. José Damião da Cunha, ob. cit., p. 406, e Joaquim Malafaia, «O acusatório e o contraditório nas declarações prestadas nos atos de instrução e nas declarações para memória futura», RPCC, ano 14, 2004, p. 521).
Na verdade, este regime severamente limitativo funda-se naquilo que a doutrina reputa de “imediação material”, ou seja, num imperativo de utilização da melhor prova disponível ou de recurso, em primeira linha, às fontes imediatas ou originais de informação (cfr. Sandra Oliveira e Silva, ob. cit., p. 238). Asserção semelhante foi veiculada, por este Tribunal, no acórdão n.º 90/2013 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
«(...)
Daí que, sendo a prova testemunhal em sentido amplo, quanto à sua formação, uma prova constituenda, como regra geral se proíba a admissão em julgamento de anteriores declarações processuais. Na verdade, este tipo de prova, em fase de julgamento, só está imune a qualquer juízo de desconfiança relativamente à sua autenticidade e credibilidade quando ela é produzida perante o julgador, aos olhos do público e com o contributo dialético dos sujeitos processuais. É essa desconfiança que, na opção legislativa, não permite a transmissibilidade daquelas declarações para a fase de julgamento.
(...)»
8. Da obrigatoriedade da leitura das declarações em audiência de julgamento
8.1. Porém, como decorre da delimitação do objeto do recurso já ensaiada, a questão de constitucionalidade em causa nos presentes autos não tem que ver com a admissibilidade das declarações para memória futura, no quadro das garantias de defesa do arguido, mas antes com a não obrigatoriedade da leitura, em audiência de julgamento, dos autos em que as mesmas se encontram transcritas ou reproduzidas. Acrescente-se, ainda, que não é tarefa deste Tribunal controlar o iter hermenêutico percorrido pelo tribunal recorrido, à luz das regras gerais sobre a interpretação jurídica e das suas especificidades no direito penal e no processo penal, nem tampouco indagar da bondade da solução legislativa subjacente à interpretação normativa sufragada nos autos.
Ressalvados estes aspetos, tudo está em saber se a obrigatoriedade de leitura em audiência decorre de algum dos princípios constitucionais supra excogitados, e, em caso afirmativo, se a compressão decorrente da opção legislativa contrária é suscetível de encontrar arrimo bastante noutros princípios ou interesses constitucionalmente protegidos.
8.2. A questão tem recebido tratamentos diferenciados por parte da jurisprudência (cfr. Manuel Lopes Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17.ª ed., 2009, p. 650) e da doutrina penalista.
No sentido da obrigatoriedade da leitura das declarações, invocam-se, desde logo, os princípios da oralidade e da publicidade, porquanto a prática de dar por lidos os autos de declaração impede o público em geral de acompanhar a produção de prova e prejudica o respetivo convencimento sobre a justiça da decisão (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 2008, p. 223), lançando desconfianças sobre o exercício da justiça penal (cfr. Maria João Antunes, “O segredo de justiça...”, p. 1241, e Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 221). Argumenta-se, ainda, que “só os meios de prova adquiridos no processo podem ser valorados”, aquisição essa que apenas se dá com a leitura dos protocolos em audiência de julgamento (Sandra Oliveira e Silva, ob. cit., p. 246), ou seja, respeitando as exigências decorrentes dos princípios fundamentais em matéria de produção de prova (cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 29 de outubro de 2008, processo n.º 0814505, e de 17 de novembro de 2004, processo n.º 0414002, disponíveis em www.dgsi.pt).
Na jurisprudência constitucional, a conclusão tem sido a de que não constitui violação dos princípios do contraditório, da oralidade, da imediação e da publicidade da audiência o facto de o tribunal se servir, para formar a sua convicção, de documentos não lidos, explicados ou apresentados em audiência de julgamento. No acórdão n.º 87/1999 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal sustentou, com relevo para os presentes autos, que:
«(…)
Tratando-se de documentos que foram juntos aos autos com a acusação e depois se mantiveram durante a instrução e acompanharam a pronúncia do arguido, teve este todas as possibilidades de o questionar, podendo ainda, na própria audiência, provocar a sua reapreciação individualizada para esclarecer qualquer ponto da sua defesa relativamente à qual entendesse que isso seria necessário e, assim, pedir a leitura de qualquer desses documentos.
(…)»
Posteriormente, no acórdão n.º 110/11 (disponível em www.tribunalconstitucional), estando em causa a não leitura de um documento contendo o consentimento para a recolha de amostra de sangue com vista à realização de exame para determinação do estado de influenciado pelo álcool, o Tribunal sublinhou, quanto à prova documental, que:
«(…)
A lei processual adota uma noção ampla de documento, considerando como tal toda a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico nos termos da lei penal (artigo 164.º do CPP).
(…)
Porém, documentos há, como aquele cuja valoração está em causa, que se limitam a conter a narrativa de atos processuais ou do inquérito (…). Não são incorporados no processo para comprovar um facto externo, mas sim elaborados e integrando necessariamente o processo como instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os atos processuais ou de inquérito. Não deixando de ser em sentido genérico documentos, pelo menos quando a narrativa do que ocorreu em determinada diligência está indissoluvelmente ligada a um resultado que se destinou a preparar e que é expressamente invocado como meio de prova, o sujeito processual não pode ignorar a sua existência e aptidão probatória. A invocação probatória do resultado consequente é suficiente para assegurar que o arguido, patrocinado pelo advogado, possa defender-se do auto que documenta uma diligência que é um antecedente necessário à determinação desse resultado contra ele invocado, em termos de dispor e poder usar todos os instrumentos processuais necessários e adequados para defender a sua posição e contrariar a acusação.
(…)»
Este juízo de não inconstitucionalidade também vem tendo algum acolhimento, especificamente no que concerne a leitura das declarações para memória futura, por parte do Supremo Tribunal de Justiça (cfr., entre outros, os acórdãos de 7 de novembro de 2007, processo n.º 07P3630, e de 25 de março de 2009, processo n.º 09P0486, também disponíveis em www.dgsi.pt,).
8.3. Apesar de a jurisprudência constitucional supra transcrita se reportar, fundamentalmente, a prova pré-constituída (prova documental), não se vislumbram, no que concerne os presentes autos, boas razões para a afastar.
Estando em causa declarações do ofendido – rectius, provas constituendas, ainda que documentadas em auto – o contraditório deve realizar-se aquando da respetiva aquisição, isto é, durante o interrogatório previsto nos n.ºs 3 e 5 do artigo 271.º, do CPP. Apesar de este interrogatório não seguir os ditames do artigo 348.º, do CPP (cross-examination), certo é que é nesse momento que se revela mais importante conferir ao arguido, em cumprimento dos imperativos constitucionais, a possibilidade efetiva de contribuir para as bases da decisão.
Obviamente que, integrando os autos (de declaração) os meios de prova elencados pela acusação, nada impede o arguido de, já na fase de audiência de discussão e julgamento, exercer o seu direito subjetivo público de audiência, requerendo a leitura das declarações e a sua reapreciação individualizada, e atacando a sua eficácia persuasiva. O uso efetivo deste direito, como é bom de ver, é algo que já não interessa ao princípio do contraditório nem ao seu recorte constitucional.
Por outro lado, a previsão de prestação de declarações para memória futura – obrigatória, no caso dos crimes contra a autodeterminação sexual de menor – constitui, per se, uma compressão dos princípios da imediação e da oralidade, limitação essa que, apesar de constitucionalmente justificada (v. supra o ponto 7.2), não é mitigada pela obrigatoriedade de leitura daquelas declarações em audiência de julgamento.
Na verdade, requerendo a oralidade que a atividade processual seja exercida na presença dos sujeitos processuais, por oposição a um “processo escrito”, é no mínimo estéril argumentar que a leitura – necessariamente “oral” – dos autos de onde constam as declarações ainda é reclamada por aquele princípio. Com efeito, os benefícios impulsionados pela oralidade, uma vez subtraídos ao “usufruto” do juiz do julgamento, estão, à partida, perdidos, e só poderão ser recuperados caso este entenda ser necessário para a descoberta da verdade material, possível e não atentatório da saúde física e psíquica da vítima menor a prestação de novo depoimento em sede de julgamento (cfr. os artigos 271.º, n.º 8, e 340.º, do CPP).
Finalmente, alçam-se vários obstáculos à argumentação de que a leitura obrigatória das declarações decorre do princípio da publicidade da audiência, enquanto “trave-mestra” de um processo acusatório. Desde logo porque, nos crimes contra a autodeterminação sexual, a concordância prática dos interesses em presença já impõe, por si mesma, evidentes compressões ao princípio da publicidade, as quais encontram consagração, no direito infraconstitucional, nos artigos 87.º, n.º 3 e 88.º, n.º 2, alínea c), do CPP.
Acresce que a leitura das declarações em audiência não tem arrimo na teleologia normativa inerente ao princípio da publicidade, que é a de “dissipar quaisquer desconfianças que se possam suscitar sobre a independência e a imparcialidade com que é exercida a justiça penal” (Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 222). Aquela, por ressonância da jurisprudência do TEDH, reclama não só uma justiça efetiva, como também uma “aparência de justiça”, pois, como se enfatizou no acórdão n.º 279/01 (já mencionado), “a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais ao administrarem a justiça atuem de facto em nome do povo”.
Contudo, o princípio (fundamental) da publicidade basta-se, neste capítulo, com a leitura da sentença (cfr. artigo 87.º, n.º 5, do CPP) e com a “disponibilidade pública das razões da decisão” (José António Mouraz Lopes, A fundamentação da sentença no sistema penal português – Legitimar, diferenciar e simplificar, Almedina, Coimbra, 2011, p. 101), algo que só de per se já permite ao público a fiscalização da decisão e possibilita à comunidade o conhecimento daqueles elementos tidos por fundamentais e decisivos para a formação da convicção do julgador (cfr. o acórdão n.º 27/2007, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
9. Tanto basta para concluir que o presente segmento normativo não comporta violação dos princípios do contraditório, da oralidade, da imediação e da publicidade da audiência, nem dele resulta qualquer compressão das “garantias de defesa” do arguido a que se refere o n.º 1 do artigo 32.º, da CRP.
III. Decisão
10. Termos em que o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 271.º, n.º 8, do CPP, no segmento segundo o qual não é obrigatória, em audiência de discussão e julgamento, a leitura das declarações para memória futura;
b) Por conseguinte, negar provimento recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 6 de maio de 2014. – José da Cunha Barbosa – Maria de Fátima Mata-Mouros – João Caupers – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.