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Proc. nº 421/98
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - Após o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, o ora reclamante C..., foi este sujeito, por decisão do Exmº Juiz do Tribunal de Turno de Lisboa, proferida em 13 de Dezembro de 1997, à medida de coacção de prisão preventiva prevista no art. 202º do Código de Processo Penal (CPP).
2 - Em 26 de Dezembro de 1997, nos termos das alíneas a) e b) do nº 1 do art.
212º do CPP, veio o arguido requer a revogação da medida de prisão preventiva, por infundada e aplicada fora dos seus pressupostos materiais, requerendo a fixação, em alternativa, de outra ou outras medidas de coacção.
3 - Por despacho do Exmº Juiz do 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, de 30 de Dezembro de 1997, foi indeferido o requerimento supra referido
- por se manterem inalterados os pressupostos de facto e de direito que determinaram, em 13 de Dezembro de 1997, a aplicação ao arguido da medida de prisão preventiva.
4 - Desse despacho interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, formulando na motivação apresentada e, especificamente, no que às questões da inconstitucionalidade respeita, as seguintes conclusões:
'9. É inconstitucional o art. 209º do CPP, na interpretação implícita do Mmº.Juiz que o aplicou a um caso punível com prisão até 8 anos, por violação da norma contida no nº 2 do art. 18º da CRP.
10. Invoca-se a inconstitucionalidade do nº 1 e das alíneas a) e b) do nº 2 do art. 126º do CPP, na interpretação implícita feita pelo Juiz de Instrução que aplicou a prisão preventiva ao valorar a prova obtida através de meios enganosos, não se respeitando as normas constitucionais que constam vertidas nos artigos 32º nº 6; 18º nºs 2 e 3 e 25º nº 1, todos da Constituição.
11. Invoca-se a inconstitucionalidade dos artigos 126º nº 1; 174º nº 4 alínea b) e 177º nº 2, todos do CPP, na interpretação implícita feita pelo Juiz de Instrução que aplicou a prisão preventiva após valoração da pena resultante da busca domiciliária ilegal obtida através de estratagema, ou seja, mediante pretensa autorização do arguido, na qual não pode colocar as reservas que entendia, obtida sob coacção moral e ameaças, por violação dos artigos 32º nº 6 e 34º nºs 2 e 3, ambos da Constituição.'
5 - Colhido o parecer do Ministério Público junto do Tribunal da Relação e os demais vistos legais, decidiu aquele Tribunal, ao abrigo do art. 420º do CPP, rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso interposto, atendo-se para tanto à fundamentação que passaremos a transcrever nas suas passagens essenciais:
' Pelo despacho de 13.12.97, o Ex.mo Juiz determinou a prisão preventiva ao arguido, com base nos seguintes pressupostos: (...). Este despacho não foi impugnado pelo arguido, tendo por isso transitado em julgado. (...). Transitado o despacho que lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, o arguido, nos termos do art. 212º do CPP, requereu a revogação dessa medida, por infundada e aplicada fora dos pressupostos materiais, fixando-se outra que até sugere (...).
Pronunciando-se sobre esse requerimento, o Ex.mo Juiz dividiu claramente o despacho em duas partes autónomas. Na primeira parte pronunciou-se sobre a nulidade invocada, indeferindo a sua arguição. Na segunda parte pronunciou-se sobre a requerida revogação da prisão preventiva, para indeferir o requerido, em suma, por não terem sido invocados quaisquer factos ou circunstâncias que não tivessem sido já ponderadas no despacho que determinava a prisão preventiva.
É da segunda parte desse despacho que o arguido interpõe recurso - ... vem recorrer da douta decisão de fls. que indeferiu o pedido de fls. 70 e seguintes, da extinção da medida ilegal de prisão preventiva que lhe foi aplicada -. Saliente-se deliberadamente este aspecto na medida em que o recorrente suscita nas conclusões da motivação questões várias que não se prendem com o despacho recorrido mas com o despacho que aplicou ao arguido a medida de prisão preventiva. Aliás, o teor do requerimento apresentado nos termos do art. 212º do CPP evidencia já que o arguido não se situa no âmbito do 212º, pois não visa a revogação da medida de prisão preventiva, por verificação dos pressupostos indicados nesse artigo, pretendendo antes a reapreciação dos elementos indiciários constantes dos autos que haviam sido valorados aquando da prolação do despacho que determinou a prisão preventiva (...). Com a interposição do recurso desse despacho, mais uma vez o arguido utiliza um mecanismo legal para alcançar uma finalidade não compreendida no âmbito do recurso interposto. Quer dizer: nas conclusões da motivação o recorrente não impugna o despacho de que recorre mas o despacho, transitado, que o sujeitou à medida da prisão preventiva (sublinhado nosso). Nas conclusões 1ª, 2ª, 3ª, 4ª,
10ª e 11ª o arguido invoca a utilização de métodos proibidos de prova sem que haja conhecimento de que tenha arguido a nulidade das provas e inconstitu-cionalidades assentes na interpretação de preceitos legais feita pelo Ex.mo Juiz de Instrução, que aplicou ao arguido a medida de prisão preventiva, ao valorar essas provas para efeitos do despacho de indiciação, após o primeiro interrogatório judicial. Nessas conclusões o recorrente não impugna o despacho recorrido mas o despacho que aplicou a medida de prisão preventiva. (...). Nas conclusões 5ª, 6ª, 7ª, 8ª e 9ª o arguido impugna o despacho que aplicou a prisão preventiva (...). O único aspecto em que se pode considerar que o recurso abrange, também, o despacho recorrido respeita à questão de, na legação do recorrente, não se verificar o requisito do art. 209º nº 1 do CPP, sendo inconstitucional a interpretação implícita de o aplicar a um caso punível com prisão até 8 anos. O recorrente suscitara uma questão no requerimento apresentado, nos termos do art.
212º do CPP, e no despacho recorrido que sobre ele recaiu, embora essa referência expressa, está contido o entendimento de que não ocorreu violação desse artigo. Ora, tal questão resulta de um manifesto equívoco na interpretação do art. 209º do CPP (....). O art. 209º do CPP não contém nem a impossibilidade de aplicação da prisão preventiva a crimes punidos com pena inferior a 8 anos de prisão (contrariando o requisito especial do artº 202º do CPP) nem a imposição regra da prisão preventiva aos crimes punidos com pena superior a 8 anos de prisão. O art. 209º tão só impõe ao Juiz uma a crescida exigência de fundamentação (...). De tudo o exposto decorre, sem necessidade de maiores considerações, a manifesta improcedência do recurso, por ser patente que o recurso interposto de um despacho tem o propósito de impugnar um outro, já transitado, levando este Tribunal à apreciação e decisão de questões que não se contêm no âmbito do despacho recorrido.'
6 - Não se conformando com o teor do aresto supra referido o arguido interpôs, em 20 de Março de 1998, recurso para o Tribunal Constitucional que, por decisão do Exmº Desembargador Relator do processo no Tribunal da Relação de Lisboa, não foi admitido com o fundamento em que em tal acórdão não foi apreciada norma cuja inconstitucionalidade tivesse sido suscitada durante o processo.
7 - Contra este despacho de não admissão do recurso apresentou o arguido, em 31 de Março de 1998, a reclamação para o Tribunal Constitucional que agora se aprecia, aduzindo na exposição das razões que a justificam, em síntese, o seguinte:
'Os fundamentos do recurso não são os da aplicabilidade de norma cuja inconstitucionalidade tivesse sido suscitada durante o recurso. São sim a aplicabilidade - implícita como é óbvio - de interpretação de normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada quer no requerimento que deu lugar ao despacho recorrido quer depois nas alegações de recurso (...). Pelo que, o que interessará para que o recurso para o Venerando TC deva ser admitido, é tão-só o facto de ter sido suscitada a inconstitucionalidade de normas em sede dum processo e em sede de recurso da decisão recorrida, desde que, quer o tribunal a quo quer o tribunal adquem apliquem normas (lhes atribuam certa interpretação/aplicabilidade) - ainda que implicitamente violadora da Constituição. Na óptica do recorrente, quer o tribunal a quo (1ª Instância) quer o tribunal ad quem (Tribunal da Relação de Lisboa) adoptaram interpretações das normas do CPP
- ainda que implícitas - que colidem com a lei fundamental. E não se diga que o reclamante não invocou no tempo e no lugar próprios as ilegalidades que permitem, agora, a subida do recurso para o Venerando TC.
(...). Pelo que, se o Venerando TRL manteve a douta decisão recorrida, assacada de violadora da Lei Fundamental - na interpretação adoptada -, se não apreciou as conclusões de recurso (porque adoptou implicitamente a interpretação de normas da lei processual penal adoptada na douta decisão recorrido, assacada de violadora da CRP) tratar-se-á de matéria que o recorrente pretende suscitar ao Venerando Tribunal Constitucional. Mas que, salvo melhor opinião, não poderá servir como fundamento para o recurso não ser admitido.'
8 - Já neste Tribunal, foram os autos com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer no sentido do indeferimento da reclamação, pelos motivos que de seguida se sintetizam:
'O requerimento de interposição do recur-so de constitucionalidade não indica a norma ou normas cuja inconstitu-cionalidade se pretende que o Tribunal aprecie. Não vemos, porém, qualquer utilidade em convidar o ora reclamante a completar tal requerimento nos termos do preceituado no nº 6 do art. 75º-A, da Lei nº
28/92, já que se infere que tais normas seriam as que o reclamante indica na presente reclamação - e cuja constitucionalidade foi suscitada no âmbito do recurso para a relação - e, como se demonstrará, relativamente a elas, faltam os pressupostos de admissibilidade do recurso;
É manifesto que a decisão recorrida não aplicou as normas constantes dos artigos
126º 174º e 177º do CPP, atinentes à proibição de obtenção de provas por meios ilegais, já que se limitou a considerar que tendo transitado em julgado o despacho que inicialmente cominou ao arguido a prisão preventiva o que estava em causa era apenas valorar se teriam ocorrido circunstâncias novas super-venientes
àquela decisão que impusessem a revisão da dita medida de coacção. Em suma, limitou-se a decisão recorrida a sem aplicar as referidas normas considerar que a questão suscitada, tendo a ver com o reflexo da pretensa nulidade de certas provas na inicial imposição ao arguido da prisão preventiva, estava precludida e situava-se fora do âmbito do recurso interposto, já que, por um lado, não tinha sido arguida a nulidade de tais provas; e, por outro lado, o caso julgado rebus sic stantibus que se havia formado na sequência do trânsito do despacho inicialmente proferido sobre medidas de coacção, obstava à apreciação da sua legalidade, cumprindo ao arguido suscitar o reexame dos respectivos pressupostos, nos termos dos artigos 212º e 213º do CPP o que não curou de fazer, condenando, consequentemente, o recurso à manifesta improcedência; Em segundo lugar, é evidente que a decisão recorrida não aplicou a norma constante do art. 209º do CPP, com o sentido, pretensamente inconstitucional, que lhe pretende atribuir o reclamante: na sua óptica, o art. 209º do CPP só permitiria a prisão preventiva relativamente a crimes puníveis com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, pelo que a adopção de tal medida de coacção, relativamente a crime punido com pena inferior àquele limite, traduziria interpretação extensiva, proscrita pela lei fundamental. Não foi no entanto esta a interpretação feita pelas instâncias, que se limitaram a salientar que, ao contrário do que parece supor o recorrente, o art. 209º do CPP não contém a impossibilidade de aplicação de prisão preventiva a crimes punidos com pena de prisão inferior a 8 anos (contrariando o requisito especial do art. 202º do CPP), já que tão-só impõe ao juiz uma acrescida exigência de fundamentação. Nestes termos, não tendo as normas ou interpretações normativas, questionadas sub specie constitutionis pelo recorrente, sido aplicadas pela decisão recorrida, é evidente a inexistência de um essencial pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta interposto, o que conduz à manifesta improcedência da presente reclamação. Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II - Fundamentação
9 - Objecto do recurso interposto ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 70º da LTC
é a questão da inconstitucionalidade de norma de que a decisão recorrida faça efectiva aplicação. A apreciação por este Tribunal de uma questão de inconstitucionalidade suscitada ao abrigo daquela alínea b) está pois condicionada à demonstração de uma efectiva aplicação pela decisão recorrida da(s) norma(s) cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo
(cfr., entre muitos outros nesse sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 367/94 e 364/96, in
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., pp. 147 e ss. e Diário da República, II Série, de 9 de Maio de 1996, respectivamente).
10 - Assim, in casu, a decisão sobre a procedência ou improcedência da presente reclamação depende da questão de saber se a decisão recorrida - o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27 de Fevereiro de 1998, que rejeitou, por manifesta improcedência, o recurso interposto pelo arguido do despacho do Exmº Juiz do 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa que indeferiu o requerimento de revogação da prisão preventiva - fez ou não efectiva aplicação, ainda que implícita como sugere o reclamante, das normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo; a saber: os artigos
126º; 174º, nº 4, alínea b); 177º, nº 2 e 209º, todos do Código de Processo Penal.
11 - E, colocada a questão nestes termos, como deve sê-lo, é manifesta a improcedência da reclamação. Não porque não seja suficiente a aplicação da norma de forma implícita para que o pressuposto de admissão do recurso de constitucionalidade agora em discussão se ache verificado (no sentido de que a aplicação da norma tanto pode ser expressa como implícita já se pronunciou, por diversas vezes, o Tribunal Constitucional (veja-se, entre muitos nesse sentido, o acórdão
nº 47/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., pp. 177 e ss.), nem porque a questão da inconstitucionalidade não possa reportar-se a uma certa interpretação da norma feita pela decisão recorrida (no sentido de que pode veja-se, entre muitos outros, os acórdãos nºs 114/89 e 305/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., pp. 641 e ss.e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., pp. 211 e ss., respectivamente), mas porque, no caso que é objecto dos autos, e no que concretamente se refere às normas constantes dos artigos 126º 174º e 177º do CPP, nem de forma implícita elas foram aplicadas na decisão recorrida e, no que se refere à norma constante do artigo 209º do CPP, ela não foi aplicada com o sentido que o recorrente quer imputar à interpretação da Relação. Vejamos melhor.
12 - No que se refere às normas constantes dos artigos 126º, 174º e 177º do CPP
- normas relativas à legalidade dos meios de obtenção de prova - é manifesto que a decisão recorrida não as aplicou, ainda que implicitamente, por entender que não o podia fazer uma vez que já tinha transitado em julgado - sem ter sido recorrida nem ter sido arguida a questão da nulidade das provas em que se baseou
- a decisão que aplicou ao arguido a medida de coacção da prisão preventiva. Considerou assim a decisão recorrida que o objecto possível do recurso e, portanto, a única matéria sobre que teria de decidir, era a de valorar a decisão do Exmº Juiz do 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de
Lisboa, na parte em que indeferiu o requerimento de revogação da prisão preventiva com fundamento em que não teriam ocorrido circunstâncias novas e supervenientes que impusessem a revisão da referida medida de coacção. E, na fundamentação normativa desta decisão, não necessitou de aplicar, como efectivamente não aplicou, as normas constantes dos artigos 126º, 174º e 177º do CPP.
13 - E igualmente não aplicou a decisão recorrida a norma constante do art. 209º do CPP, pelo menos não o fez com o sentido alegadamente inconstitucional que lhe pretende atribuir o reclamante. A decisão recorrida limita-se neste ponto a procurar esclarecer um manifesto equívoco em que aparentemente labora o reclamante na interpretação do art. 209º do CPP. É que o reclamante pretende que as decisões que aplicaram e mantiveram a prisão preventiva a um crime punível com pena de prisão superior a 8 anos encontraram o seu fundamento normativo no art. 209º do CPP, o que não é, manifestamente, verdade. Os fundamentos normativos da decisão de aplicação e manutenção da prisão preventiva (a um crime punível com pena de prisão inferior ou superior a
8 anos) hão-de encontrar-se nos artigos 202º e 204º e não no art. 209º, todos do CPP. Esta última norma impõe apenas, como se limita a esclarecer a decisão recorrida, uma acrescida exigência de fundamentação na decisão de não aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao arguido a
quem seja imputado um crime punível com pena de prisão superior a 8 anos.
III - Decisão Por tudo o exposto, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em dez UCs.
Lisboa, 4 de Junho de 1998 José de Sousa e Brito Messias Bento Luis Nunes de Almeida