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Processo n.º 153/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Pelo Acórdão n.º 227/2012 (fls. 107), foi indeferida reclamação, deduzida ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da LTC, do despacho que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de setembro de 2011. Os recorrentes, A. e B., pedem a reforma e arguem nulidades daquele acórdão nos seguintes termos:
“(…)
I - Da correção:
Por Acórdão do Tribunal Coletivo do 1° Juízo Criminal da Comarca de Vila do Conde, foi referido, em termos de fundamentação jurídica, a decisão inserta no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 444/98, nele se referindo que não é inconstitucional a interpretação do artigo 355º do CPP segundo a qual o Tribunal pode valorar os documentos existentes no processo, identificados no despacho de acusação, e cujo conhecimento foi dado ao arguido, mesmo que não lidos em sede de audiência de julgamento, uma vez que o arguido teve “a oportunidade de discutir, contestar e de desvalorizar os factos constantes dos documentos”não poderia ter sido depreciada, no Acórdão em crise.
Os recorrentes, tempestivamente, explicitaram a discordância na sua aplicação e fundamentaram tal discordância.
Ora, salvo o devido respeito, o Acórdão que ora se solicita a reforma, apenas de uma forma vaga se debruça sobre a presente questão que, aliás, já tinha sido colocada em sede de Recurso para a Veneranda Relação do Porto e na Reclamação apresentada, neste Magnânimo Tribunal.
Nesta sequência, constando do processo o douto Acórdão do 1º Juízo Criminal da Comarca de Vila do Conde, que se debruça sobre a questão da constitucionalidade da interpretação dada ao artigo 355 do CPP, estranham os recorrentes que o Tribunal Constitucional não tenha tomado tal circunstância em consideração, aquando da fundamentação do presente Acórdão que ora se solicita a reforma, por manifestamente implicar, independentemente do sentido da sua decisão, a tomada de uma posição diferente da daquela que foi proferida.
Do objeto da presente arguição
Por Acórdão n.º 227/2012, proferido a fls. foi indeferida a Reclamação interposta para o Tribunal Constitucional com os seguintes fundamentos:
- “Com efeito, o recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70 da LTC tem como pressuposto que o interessado haja suscitado a questão da inconstitucionalidade que quer ver apreciada de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dele conhecer (n.º 2 do artigo 72 da LTC).
Ora, nem na motivação do recurso para a Relação, nem em qualquer outra intervenção no processo anterior à prolação do acórdão recorrido, se vislumbra a colocação de qualquer questão de constitucionalidade (vide fls. 1380 e segs.)
Aliás, os reclamantes nem sequer apresentam agora uma argumentação, com um mínimo de consistência jurídica, em que procurem demonstrar o contrário do que foi considerado no despacho de que reclamam. Efetivamente, numa vaga aproximação à questão do cumprimento do ónus de suscitação prévia da questão da questão da constitucionalidade, dizem que ao arguirem que a consideração dos relatórios sociais violara o princípio do contraditório e constituíra devassa da vida privada “tinham presente o princípio jura novit cúria”, isto é, das referidas conclusões retiramos a impossibilidade da formação da convicção do Tribunal com base na utilização do conteúdo vertido nos referidos relatórios, violador das normas legais, na interpretação dada, por colidir com os princípios constitucionais do contraditório, da proporcionalidade e do direito a uma processo equitativo”. Sucede que uma argumentação desse género nunca seria modo idóneo de colocar uma questão de constitucionalidade normativa. Ao exigir a suscitação prévia da questão de constitucionalidade, a Constituição [alínea b) do n.º 1 do artigo 2800 da CRP] e a Lei [alínea b) do n.º 1 do artigo 70 e n.º 2 do artigo 72 da LTC] não se contentam com o princípio jus novit curia, designadamente em matéria de constitucionalidade. Exigem que o interessado confronte o tribunal com a pretensão de desaplicação de determinada norma jurídica com fundamento em desconformidade com a Constituição.
Deste modo, sem necessidade de examinar outras questões que igualmente poderiam conduzir a que o recurso não pudesse ser admitido, a reclamação tem de ser indeferida, confirmando-se o despacho de não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto.”
Sobre tal douto entendimento, assim como da reforma suscitada, são a retirar as seguintes,
Conclusões:
Da Reforma:
1. Por Acórdão do Tribunal Coletivo do 1° Juízo Criminal da Comarca de Vila do Conde, foi referido, em termos de fundamentação jurídica, a decisão inserta no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 444/98, nele se referindo que não é inconstitucional a interpretação do artigo 355º do CPP segundo a qual o Tribunal pode valorar os documentos existentes no processo, identificados no despacho de acusação, e cujo conhecimento foi dado ao arguido, mesmo que não lidos em sede de audiência de julgamento, uma vez que o arguido teve “a oportunidade de discutir, contestar e de desvalorizar os factos constantes dos documentos”
2. Os recorrentes, tempestivamente, explicitaram a discordância na sua aplicação e fundamentaram tal discordância.
3. Ora, salvo o devido respeito, o Acórdão que ora se solicita a reforma, apenas de uma forma vaga se debruça sobre a presente questão que, aliás, já tinha sido colocada em sede de Recurso para a Veneranda Relação do Porto e na Reclamação apresentada, neste Magnânimo Tribunal, pelo que se solicita a sua Reforma nos termos do artigo 669º n. 3 b) do Código de Processo Civil, tomando, agora, em consideração a questão de fundo onde os Recorrentes alicerçam a sua pretensão e manifestamente implicar, independentemente do sentido da sua decisão, a tomada de uma posição diferente da daquela que foi proferida.
Da arguição de nulidades:
Da não especificação dos fundamentos de facto e da sua oposição com a decisão:
4. Com o devido respeito, não assiste acolhimento à tese sustentada no Acórdão sub judice, uma vez que nas Conclusões que sustentam o Recurso dos aqui Reclamantes do Tribunal Coletivo de Vila do Conde para o Tribunal da Relação do Porto é dito de uma forma clara e taxativa, pelos ali Recorrentes:
5. “A factualidade do relatório deve ser retirada do item “factualidade provada “.
6. Por especifica ser a sua finalidade.”
7. Das referidas conclusões extrai-se a impossibilidade da formação da convicção do Tribunal com base na utilização do conteúdo vertido nos referidos relatórios.
8.Como nas alegações de recurso se evidenciou, assim como, no Recurso de arguição de nulidades, os factos constantes dos relatórios sociais foram utilizados na formação da convicção pelo Tribunal, indevidamente, para determinação do grau culpabilidade do agente, assim como a determinação da sanção, como já ficou dito na Reclamação apresentada anteriormente, se é correta a utilização pelo Tribunal dos factos do relatório social para a determinação da medida da pena, já o mesmo é ilegal e inconstitucional para efeitos de juízo de culpabilidade (imputação de factos ao agente) já que dessa forma, transforma-se o julgamento num julgamento de caráter, conforme adágio popular “coitado do mentiroso, mente uma vez mente para sempre, ainda que fale verdade todos julgam que mente” ou então “Quem faz um cesto, faz um cento”.
9.Quer o Tribunal Coletivo de Vila do Conde, quer a Veneranda Relação do Porto, formaram, indevidamente, a sua convicção nos referidos relatórios sociais.
10. Estando em causa o ultraje de princípios constitucionais de relevo, elencados no âmbito dos direitos e deveres fundamentais e direitos, liberdades e garantias, a simples indicação da matéria factual subsumível é suscetível de preencher e dar cumprimento ao ónus da alegação de uma questão de inconstitucionalidade.
11. Ao se dizer “uma argumentação desse género nunca seria modo idóneo de colocar uma questão de constitucionalidade normativa” está este respeitável Tribunal a determinar a prevalência da forma sobre o fundo.
12.Mais uma vez com o devido respeito o prelecionado no douto Acórdão, ignora que a consecução da finalidade prosseguida pelas normas jurídicas processuais penais, já enumeradas na Reclamação apresentada, impõe um limite lógico, que o sistema nunca deverá ultrapassar, sob pena de irracionalidade.
13. Se o vício não prejudicou os interesses substanciais que as normas jurídicas violadas procuravam acautelar não há razão para destruir o ato, o problema aqui, salvo melhor opinião, é que o ato – inserção do conteúdo dos relatórios sociais utilizados na questão da culpabilidade no item factos provados – sem que os mesmos fossem notificados aos autores para que estes os pudessem questionar e/ou desvalorizar – implode qualquer decisão que perspetive a não observância de tal realidade apenas com base em circunstâncias formais.
14. O cidadão não pode alterar os princípios essenciais imprescindíveis ao funcionamento do processo penal de um Estado de Direito Democrático, bem como
o Tribunal não poderá, de forma tão singela, negar-se ao pronunciamento de violações claras a tais princípios.
15. A “infeção” não se restringe ao ato inválido, contaminado, antes sim, todo o processo.
Da Omissão de Pronúncia:
16. Ao invés, de forma ligeira e apressada, mais uma vez dando ênfase à prevalência da forma sobre o fundo, o Tribunal escuda-se “sem examinar outras questões que igualmente poderiam conduzir a que o recurso não pudesse ser admitido” não se pronunciando sobre:
- A ofensa à reserva da intimidade da vida privada e familiar, dos Recorrentes derivados da valoração pública dos factos contidos no referido relatório social, no âmbito do artigo 26 n. 1 da C.R.P.
- A violação do direito ao recurso no que à recorrente B., com base em critérios meramente contabilísticos / formais, se refere.
Omissões de pronúncia que aqui se arguem para os devidos e legais efeitos.
17. Por último, o ónus da suscitação prévia da questão da constitucionalidade foi cumprido – as concretas alegações e conclusões de recurso acima referidas – são, claramente, idóneas para gerar neste Magnânimo Tribunal a obrigação processual de sobre elas se pronunciar, dispondo da última possibilidade para o fazer, dando prevalência, definitiva e no nosso humilde entendimento correta, do fundo sob a forma.
Termos em que, devem Vs. Exs., Exmos. Juízes Conselheiros, reunidos em Conferência, dar provimento ao presente Requerimento, e, por via disso:
a) Reformar o Acórdão, objeto da presente análise, tomando em consideração os factos acima elencados, determinando o pronunciamento sobre esta questão;
b) Deferir a Arguição das Nulidades invocadas, revogando o douto Acórdão, de que ora se recorre, e, atendendo aos fundamentos acima esgrimidos, ordenar a notificação dos aqui Reclamantes/Recorrentes a apresentarem as suas alegações, farão, como sempre, Inteira e Sábia
2. O Ministério Público responde nos seguintes termos:
“1º
Pelo douto Acórdão n.º 227/2012, indeferiu-se a reclamação da decisão que, na Relação do Porto, não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, do acórdão que negara provimento ao recurso interposto da decisão proferida em 1.ª instância.
2º
No Acórdão entendeu-se que o reclamante, nem na motivação do recurso interposto para a Relação, nem em qualquer outra intervenção no processo antes de ser proferido o acórdão recorrido, suscitara qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
3º
No Acórdão fundamenta-se nessa conclusão e se mais não se disse foi, seguramente, por nada mais haver a dizer, dada a manifesta ausência daquele pressuposto de admissibilidade de recurso.
4º
A referência que, na decisão de 1.ª instância, se faz a um acórdão do Tribunal Constitucional, nada releva quanto à exigência de cumprimento do ónus da suscitação prévia, que impende sobre os recorrentes.
5.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a arguição de nulidade.”
3. A transcrição integral do pedido de reforma e arguição de nulidades serve para tornar evidente que os reclamantes não tomaram em consideração o conteúdo do acórdão de que reclamam e o tipo legal a que corresponde. Efetivamente, dispõe o n.º 4 do artigo 76.º da LTC que cabe reclamação para o Tribunal Constitucional do despacho que indefira o requerimento de interposição do recurso (ou retenha a sua subida). Foi este tipo de competência que o Tribunal foi chamado a exercer e exerceu no Acórdão n.º 227/2012. Competia-lhe – e nesta fase apenas isso lhe competia – decidir se o recurso de constitucionalidade deveria ser admitido ou se, pelo mesmo fundamento do despacho reclamado ou qualquer outro (uma vez que a decisão faz caso julgado quanto à admissibilidade – n.º 4 do artigo 77.º da LTC), a decisão de não admissão de recurso teria de manter-se.
O recurso não fora admitido por, só podendo considerar-se interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não ter sido suscitada pelos recorrentes, de modo processualmente adequado, qualquer questão de inconstitucionalidade perante o Tribunal da Relação, como exige o n.º 2 do artigo 72.º da LTC. Ora, este fundamento não podia deixar de ser confirmado porque os recorrentes não suscitaram, em qualquer intervenção sua perante a Relação, anteriormente ao acórdão que julgou o recurso, qualquer questão de (in)constitucionalidade de normas jurídicas. É de flagrante evidência que não é modo de colocar uma questão desta natureza afirmar que “a factualidade do relatório deve ser retirada do item “factualidade provada” por “especifica ser a sua finalidade”.
Esta conclusão em nada é infirmada pela circunstância de a decisão de que se estava a recorrer ter reforçado a sua fundamentação com invocação da jurisprudência deste Tribunal.
Referências contidas na sentença de 1ª instância à jurisprudência do Tribunal no sentido da não inconstitucionalidade de determinada solução legal não dispensam o interessado de suscitar a respetiva questão de constitucionalidade se pretender vê-la retomada em recurso de fiscalização concreta. Pelo contrário, excluem qualquer hipótese de se considerar a confirmação desse entendimento pela Relação como “insólita” ou “inesperada” para este efeito.
Por outro lado, o acórdão examinou todas as questões pertinentes à reclamação do despacho de não admissão do recurso. Tendo chegado à conclusão de que merecia confirmação o fundamento do despacho de indeferimento do requerimento de interposição do recurso, o acórdão agora reclamado nada mais tinha de decidir, considerando-se prejudicadas quaisquer outras questões (artigo 660.º, n.º 2, do CPC). Aliás, na reclamação nada mais poderia ser examinado senão o que respeitasse à admissibilidade do recurso de constitucionalidade. Não podiam aí ser decididas questões de constitucionalidade relativas às normas aplicadas pela decisão de que se pretendia recorrer.
Improcedem, pois, os pedidos de reforma e de arguição de nulidade que não têm fundamento sério, face à realidade processual.
4. Decisão
Pelo exposto, indefere-se o pedido de reforma e a arguição de nulidade do Acórdão n.º 227/2012, formulados no requerimento de fls. 114 e segs., condenando-se os recorrentes nas custas, com 15 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 22 de maio de 2012.- Vítor Gomes – Ana Guerra Martins – Gil Galvão.