Imprimir acórdão
Procº nº 628/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. O Licº J... intentou pelos Juízos Cíveis da comarca de Lisboa e contra o Estado Português, acção, seguindo a forma de processo ordinário, solicitando a condenação deste último no pagamento de uma indemnização de Esc.
35.880.000$00, acrescidos de juros, tendo, em síntese, alegado que aquele montante representava o prejuízo sofrido pelo autor em virtude de lhe não ter sido possível actualizar as rendas de oito fracções autónomas de dois prédios urbanos de sua propriedade, impossibilidade essa que adveio da legislação em vigor que determinou o congelamento de rendas.
Por saneador/sentença proferido em 25 de Março de 1994 pelo Juiz do
10º Juízo Cível de Lisboa, foi a acção julgada improcedente e, na sequência, absolvido o réu do pedido.
Não se conformando com o assim decidido recorreu o autor para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 16 de Maio de 1995, negou provimento ao recurso.
De novo inconformado, pediu o autor revista para Supremo Tribunal de Justiça.
Na alegação que produziu, o recorrente, inter alia, invocou que 'o Estado tem o dever de indemnizar, nos termos do artº 22º, os prejuízos que no exercício da sua função legislativa cause a um cidadão ou a um grupo de cidadãos', que 'tal responsabilidade abrange tanto os actos lícitos e a responsabilidade pelo risco como os actos ilícitos, sendo o artº directamente aplicável, sem necessidade de mediação legislativa ordinária', e que 'são contrárias à Constituição, não podendo ser aplicadas, as seguintes normas: artºs. 41º, 42º, 46º, 47º, 48º, 50º e 67º, todos da Lei nº 2030, 10º do Dec. Lei nº 47344, 1095º do CC, 6º, nºs. 1, 2 e 3, 11º e 12º e Tabelas anexas da Lei nº
46/85, 30º, 31º, 32º, 34º, 68º, nº 2, 69º, nº 1, 71º, 107º e 109º, todos do RAU, bem como o artº 9º preambular, as normas constantes das Portarias nºs. 648-A/86, de 31 de Outubro, 847/87, de 31 de Outubro, 716/88, de 28 de Outubro, 965-B/89, de 31 de Outubro, 1011-D/90, de 30 de Outubro, 1133-B/91, de 31 de Outubro,
1025/92, de 31 de Outubro, e 1103-B/93, de 30 de Out.', por violação dos 'artºs
1º, 2º, 13º, 18º e 62º, todos da actual Const. e 4º, 5º e 8º,nºs 12º, 15º e 17º, da Const. de 1933'.
Por acórdão de 23 de Setembro de 1999, o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista.
2. Pode ler-se, em dados passos desse aresto e no que ora releva:-
'..........................................................................................................................................................................................................................................
A questão fundamental que o recorrente coloca nas suas conclusões das suas alegações, que delimitam o objecto do recurso, tem a ver com a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, a que alude o art. 22 C.R..P.
............................................................................................................................................................................................................................................
Tem sido entendimento uniforme na doutrina e jurisprudência (cfr. a propósito o Ac. deste tribunal, de 1-6-94, in Col. tomo 2º, pág. 127) que o citado normativo consagra o tipo de responsabilidade subjectiva do Estado por actos legislativos ilícitos e culposos.
Questão controvertida será já a de saber se o dito preceito versa igualmente sobre a responsabilidade objectiva do Estado ou por actos legislativos.
......................................................................................................................................................................................................................................................................Por ora só nos interessa apurar da responsabilidade civil do Estado por actos legislativos ilícitos e culposos, e saber se, na hipótese em apreço, se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar por banda do Estado, pressupostos enunciados na lei ordinária (art. 483 do Cód. Civil), para a qual a lei constitucional necessariamente remete.
............................................................................................................................................................................................................................................
Nesta conformidade, a conduta do lesante será reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se possa concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.
Ora, se aplicarmos os princípios expostos à situação que nos ocupa, dir-se-à que existe culpa do legislador quando este podia e devia ter evitado a aprovação de lei inconstitucional -- ... O erro do legislador (...) só exclui a culpa quando for desculpável. O problema da culpa (...) resume-se, na prática, à questão de saber quando é exigível que o legislador conheça a inconstitucionalidade da lei.
............................................................................................................................................................................................................................................
Assim, se atentarmos no caso dos autos, verificamos que nem o Tribunal Constitucional se pronunciou (art. 279 C.R.P.) pela inconstitucionalidade das normas legais postas em causa pelo recorrente, nem o interesse particular pode sobrepôr-se no domínio da legislação sobre arrendamento urbano para habitação ao interesse público aí dominante.
No caso concreto, o legislador não podia deixar de dar prioridade ao direito à habitação, de resto também consagrado no art. 65 e seu nº 3 C.R.P., uma vez colocado em confronto com o direito de propriedade, invocado pelo recorrente.
Na verdade, o direito à iniciativa privada e à propriedade privada, princípio constitucional que se mostra subjacente à pretensão do recorrente, previsto quer na Constituição de 1933, no seu art. 8º, nºs 7 e 15, quer na Constituição de 1976 e na vigente, nos arts. 61, nº 1 e 62, nº 1, não é um direito absoluto, devendo conjugar-se com outros igualmente previstos constitucionalmente, designadamente com aqueles que dizem respeito aos direitos sociais e ao direito ao trabalho, os quais, por vezes, para poderem afirmar-se implicam que haja cedências por parte dos titulares do direito à iniciativa e à propriedade privada. Por isso é que o Estado se viu forçado, para garantir o direito à habitação, a emitir normas e diplomas legais referentes ao mercado do arrendamento para fins habitacionais, levando-o a proibir as actualizações de rendas e limitando, noutros casos, os aumentos de rendas, bem como a consagrar
(art. 1095 do Cód. Civil) o princípio da prorrogação obrigatória dos contratos deste género.
Daí que as normas legais contra as quais o recorrente se insurge tenham sido norteadas pelo interesse público, procurando o legislador minorar a desigualdade material das partes em conflito, bem típica dos contratos de arrendamento para fins habitacionais. Se encararmos, portanto, por este prisma, as restrições legais impostas ao direito de propriedade, nenhuma censura pode merecer-nos a descrita actuação do legislador. E, uma vez arredada a censura à actuação do legislador, excluida fica também a possibilidade de a caracterizarmos como culposa.
De resto, nem sequer poderia falar-se de ilicitude, outro dos pressupostos da obrigação de indemnizar, pois que a sua existência implicava a aceitação de violação de uma norma ou princípio constitucional que, como resulta do que atrás ficou dito, não ocorreu.
Haverá um facto ilícito legislativo sempre que a aprovação de lei inconstitucional (ou ilegal), em face da legislação em vigor nesse momento, viole direitos, liberdades e garantias ou ofenda quaisquer outros direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares --...
Assim, para se afirmar a existência de ilicitude seria necessário que a legislação publicada, contra a qual o recorrente se insurgiu, tivesse violado o direito à propriedade privada por si invocado, o que, como se viu, não aconteceu, face ao confronto estabelecido entre esse direito e o direito à habitação, ambos consagrados na nossa Lei Fundamental.
Ainda a este propósito cabe esclarecer que, contrariamente ao que sustenta o recorrente, a legislação em causa não violou também o princípio da igualdade, previsto no art. 13 C.R.P..
............................................................................................................................................................................................................................................
De facto, se é certo que até ao D.L. nº 445/74, de 12/9, os aumentos de renda apenas eram proibidos em relação a prédios situados em Lisboa e Porto
(e só a partir daquele diploma a proibição se estendeu a todo o país), isso resultou de, ao longo de vários anos, as necessidades de alojamento da população portuguesa serem muito mais prementes naquelas duas cidades do que no resto do país, impondo-se, por isso, um tratamento diferenciado, por as situações não serem idênticas.
............................................................................................................................................................................................................................................
Ora, no confronto entre as necessidades de alojamento naquelas duas grandes cidades e as verificadas no resto do país, a desigualdade de tratamento justificava-se plenamente. Não há, pois, que falar de tratamento arbitrário por parte do legislador, no que toca ao congelamento de rendas nessas cidades, em confronto com o que se passou no resto do país, até Setembro de 1974. No caso em apreço a diferenciação estabelecida pelo legislador baseou-se, não em motivos subjectivos ou arbitrários, mas antes em fundamentos objectivos, racionais e razoáveis.
Improcedem, portanto, as conclusões das alegações do recorrente traduzidas na obrigação de indemnizar por banda do Estado, com base na responsabilidade por actos legislativos ilícitos e culposos.
............................................................................................................................................................................................................................................
Sem pretendermos tomar posição sobre a polémica desencadeada a respeito da delimitação do campo de aplicação do citado art. 22, passamos, de imediato, à análise da responsabilidade civil do Estado por actos legislativos lícitos, até porque qualquer das duas apontadas orientações doutrinais a admite, embora fazendo derivá-la de fonte ou origem diversa.
Para a orientação dominante (...) a responsabilidade por facto das leis deve admitir-se sempre que haja violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para o cidadão derivados directamente das leis.
Então, a questão que se coloca há-de traduzir-se em saber se, no nosso caso, terá havido com a publicação da legislação, alegadamente lesiva do direito de propriedade do recorrente, violação de direitos, liberdades e garantias. Mais precisamente, interessa apurar se o direito de propriedade invocado pelo recorrente, como tendo sido lesado pela publicação das normas em causa, merecerá, neste caso, a protecção que a Constituição lhe dispensa à partida.
Ora, esta questão não pode deixar de ser analisada e decidida no confronto entre o direito de propriedade a o direito à habitação, sendo mister apurar qual deles é prioritário, ou qual deles deve ceder perante o outro.
Já vimos que o direito à iniciativa e à propriedade privada, previstos nos arts. 61, nº 1 e 62, nº 1 C.R.P., não são absolutos, e que, por vezes, devem ceder perante outros direitos, nomeadamente de natureza social e laboral.
............................................................................................................................................................................................................................................
É também o que sucede com o direito à habitação, consagrado no art.
65 C.R.P. vigente, sendo certo que nos termos do seu nº 3 incumbe ao Estado adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
Foi, pois, com vista à materialização desse objectivo que o Estado interveio no mercado do arrendamento para habitação ao editar as leis ditas lesivas dos interesses do recorrente e do seu direito de propriedade sobre as fracções prediais identificadas na petição inicial desta acção.
............................................................................................................................................................................................................................................
Foi, pois, no cumprimento desta imposição constitucional que o Estado agiu, controlando o aumento das rendas e impedindo a sua subida gradual para além de determinados coeficientes de actualização.
Deste modo, a legislação editada pelo Estado, aqui em apreço, mostra-se inteiramente adequada ao fim que lhe cumpria assegurar constitucionalmente, não violando, como se disse, nem o princípio da igualdade, nem o direito de propriedade do recorrente.
............................................................................................................................................................................................................................................
Não pode, pois, no caso concreto, configurar-se como relevante a violação invocada pelo recorrente ao seu direito de propriedade, e admitir-se que daí pudesse fazer-se derivar o direito de qualquer indemnização a prestar pelo Estado.
..........................................................................................................................................................................................................................................'
3. É do acórdão de que algumas partes acima se encontram transcritas que, pelo Licº J..., vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso, por intermédio do qual pretende a apreciação da inconstitucionalidade das normas vertidas:-
- nos artigos 41º, 42º, 46º, 47º, 48º, 50º e 67º, todos da Lei nº
2030, de 22 de Agosto de 1948;
- no artº 10º do Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966;
- no artº 1095º do Código Civil;
- nos artigos 6º, nºs. 1, 2 e 3, 11º e 12º e Tabelas anexas da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro;
- nos artigos 30º, 31º, 32º, 34º, 68º, nº 2, 69º, nº 1, 71º, 107º e
109º, todos do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto- -Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro;
- no artº 9º preambular deste Decreto-Lei nº 321-B/90;
- nas Portarias nºs. 648-A/86, de 31 de Outubro, 847/87, de 31 de Outubro, 716/88, de 28 de Outubro, 965-B/89, de 31 de Outubro, 1011/90, de 30 de Outubro, 1133-B/91, de 31 de Outubro, e 1025/92, de 31 de Outubro, e Tabelas a elas anexas.
Determinada a feitura de alegações, concluiu o recorrente a por si produzida com as seguintes «conclusões»:-
'1ª Na 1ª instância, após se considerar que o direito de indemnização invocado pelo autor e referente à vigência dos artª s. 48º, 50º e 85º da Lei nº 2030, 10º do Dec.-Lei nº 47.344, 25º do Dec.-Lei nº 445/74 e 14º do Dec.-Lei nº 148/81, de 4 de Junho, havia prescrito, julgou-se a acção totalmente improcedente e absolveu-se o réu do pedido.
2ª Decidiu-se assim porque se entendeu não ser ilícita a intervenção do Estado no mercado de arrendamento, mesmo da forma como o tem feito, não se encontrando ferido o princípio da igualdade, e que o Estado não pode ser responsabilizado por danos decorrentes da sua função legislativa, além de não se verificarem as inconstitucionalidades invocadas na petição.
3ª A Relação, tendo considerado não se verificarem os pressupostos ilicitude e culpa da responsabilidade civil, negou provimento ao recurso, aduzindo como fundamentos nomeadamente que o artº 65º autoriza o Estado a intervir e a restringir os poderes do proprietário para promover o acesso à habitação dos cidadãos.
4ª O acórdão recorrido, considerando que o direito constitucional à habitação se sobrepõe ao direito de propriedade garantido pelo artº 62º , nº 1, da Const., por àquele estar ligado um interesse público, julgou que as normas cuja legitimidade constitucional se impugnou na alegação não são inconstitucionais e que, por isso, não se verificam a ilicitude e a culpa, confirmando o acórdão da Relação.
5ª Porém, tal como a Relação tamém a Supremo errou na interpretação e aplicação que fez da Constituição e da lei ordinária, considerando esta válida em face daquela, como se demonstra de seguida. De facto,
6ª Através de actos legislativos concretos, limitados às cidades de Lisboa e do Porto, o recorrido estabeleceu um regime permanente, duradouro e inarredável da proibição absoluta de actualização das rendas, que perdurou, sem qualquer interrupção, desde Junho de 1948 até Janeiro de 1986 e, a partir deste último ano, autorizou actualizações muito reduzidas, mesmo de valor simbólico e irrisório (artº s. 47º, 48º e 50º da Lei nº 2030, 10º do Dec.-Lei nº 47.344, de
25 de Novembro de 1967, que aprovou o CC, 1º e 25º do Dec.-Lei nº 445/74, de 12 de Setembro, 14º do Dec.-Lei nº 148/81, de 4 de Junho, 11º, 12º e 47º da Lei nº
46/85, de 20 de Setembro, 14º, 31, nº 1, al. a), 32º, nº 1 e 2 , 68º , nº 2, 69º e 71º, todos do Dec.-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU).
7ª Ameaçou e continua a ameaçar com prisão o recorrente e os restantes senhorios em situação identica, se cobrassem dos inquilinos rendas superiores às fixadas nas datas da celebração dos contratos ou, a partir de Janeiro de 1986, aplicasse actualizações superiores às autorizadas pela lei ordinária (artº s. 85º da Lei nº 2030, com referência ao artº 110º, § único, do Dec. n º 5411, de 17-04-1919,
16º do Dec.-Lei nº 217/74, de 17 de Março, 47º da Lei nº 46/85, de 14º do Dec.-Lei nº 148/81, de 4 de Junho, e 14º do Dec.-Lei nº 321-B/90), sendo que a partir do início da vigência do Dec.-Lei nº 217/74, a prisão que fosse aplicada deixou de poder ser atenuada extraordinariamente e substituída por multa.
8ª Por causa de tal proibição e da renovação automática, forçada e indefinida dos contratos de arrendamento, bem como das sanções destinadas a garantir o respeito por aquela, os valores das rendas recebidas pelo recorrente oscilavam, na data da propositura da acção, entre o mínimo de 1.336$00 e o máximo de 7.487$00.
9ª Se os prédios em causa tivessem sido dados de arrendamento nos últimos 10 anos, as rendas seriam, todas elas, muito superiores a 50.0000$00, pelo que os valores que os inquilinos estão a pagar não podem deixar de ser considerados irrisórios, simbólicos e injustos, estando destituídos de qualquer significado em termos económicos.
10ª Por causa da proibição absoluta de actualizar e de denunciar os contratos, desde a data em que os prédios do recorrente começaram a ser utilizados pelos inquilinos identificados na petição até ao fim de 1992, o rendimento ilíquido produzido pelos dois prédios foi de apenas 3.016.685$00.
11ª Se a partir do ano seguinte à ocupação de cada uma das fracções, tivesse havido actualizações anuais com base em coeficientes de 10 por cento, até 1973, de 20 por cento até 1986, e de 12 por cento até 1992 (valores muito superiores, nalguns casos, à taxa da inflação verificada), os dois prédios teriam produzido o rendimento total de 21.383.200$00.
12ª Por causa das proibições e limitações impostas, o recorrente não recebeu o montante de 18.131.000$00, valor este que, actualizado pela aplicação dos correspondentes coeficientes de desvalorização da moeda aprovados pela Port. n º
395/92, de 12 de Maio, e deduzindo os valores das simbólicas actualizações aplicadas desde de 1986, dá um valor actualizado superior a 36.000.000$00.
13ª Se o recorrente pudesse ter denunciado os contratos, o que lhe permitiria ajustar novos valores com novos inquilinos, também por esta forma se tinha obtido um valor muito superior ao referido, mas a denúncia era e continua a ser vedada ao senhorio (artº s. 1095º do CC e 68º, nº 2, 69º e 71º, todos do RAU).
14ª Como se tem uniformemente entendido, existe um princípio geral do dever de reparação dos danos causados a outrem no exercício de qualquer actividade, que emana, ao lado de outros, do Estado de direito democrático (artº 2º da Constituição).
15ª Quanto ao Estado e demais entidades públicas, a Lei Fundamental particulariza tal dever nos artº s. 22º, 13º, nº 1, e 62º, nº s. 1 e 2, nos casos em que de actos legislativos resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem, princípio que a Const. 33 consagrava no artº 8º , nº. 17.
16ª
É unanimemente aceite quer pela doutrina quer pela jurisprudência que o Estado tem esse dever de indemnizar os prejuízos que cause a um cidadão ou a um grupo de cidadãos, só não o tendo quando os prejuízos forem extensivos a toda a população ou à maior parte dela e estejam envolvidos interesses públicos.
17ª Rege, quanto a esta matéria, o princípio da igualdade dos cidadãos perante a repartição dos encargos públicos que irradia do princípio geral da igualdade acolhido no artº 13º , nº 1, da Const. 76 e do artº 5º , § 2º , da Const.
18ª Também se entende que sobre o Estado recai o dever de indemnizar os danos causados por actos legislativos, situando-se a fonte da responsabilidade no princípio da garantia da propriedade privada, ao qual o artº 62º , nº 1, da Const. 76 dá guarida, o mesmo acontecendo com o artº 8º , nº 15 da Const. 33.
19ª A garantia da propriedade privada, acolhida nos artºs. acabados de citar, abrange todos os poderes que o artº 1305º do CC confere ao proprietário, como os de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dos quais goza de modo pleno e exclusivo, salvaguardando certas restrições estabelecidas por lei.
20ª Como restrições encontram-se a expropriação por utilidade pública, a mais grave de todas, limitações ao direito de construir, por motivos de estética e de higiene, pela defesa da propriedade florestal, pelo transporte de energia eléctrica, pela defesa do ambiente, além de outras, mas que não afectam o núcleo essencial do direito.
21ª O direito de propriedade protegido pela Const. é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, gozando do respectivo regime, apesar de se encontrar integrado no Tit. que dá guarida aos direitos económicos, sociais e culturais (artº s. 17º e 18º).
22ª O artº 65º da Constituição só contém normas programáticas e dirige-se ao Estado e autarquias locais, sendo certo que dele não decorre para os inquilinos qualquer direito que os mesmos possam fazer valer contra quem quer que seja e muito menos contra os proprietários e senhorios.
23ª O preceito constitucional é claro, ao incumbir os entes públicos da resolução do problema habitacional, não fazendo nem podendo fazer qualquer referência aos particulares, nem o podendo fazer sem violar frontamente os princípios da própria Lei Fundamental, como o da justiça, o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade, o da garantia da propriedade privada e o da indemnização, indo contra a própria ‘natureza das coisas’ (artº s. 1º, 2º, 13º, nº 1, e 62º , nº s.
1 e 2).
24ª O direito à habitação é um direito fraco, não tendo a natureza de direito análogo aos direitos enunciados no Tit. II da Const., pelo que não goza do regime aplicável aos direitos, liberdades e garantias nem é directamente aplicável e, ao contrário do que se julgou no acórdão recorrido, não pode sobrepor-se ao direito de propriedade.
25ª Do artº 18º resulta que os preceitos constitucionais que consagram direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas, acrescendo que os mesmos só podem ser restringidos por lei e nos casos expressamente previstos na Constituição, mas com a restrição em caso algum se pode diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos respectivos preceitos constitucionais.
26ª De facto, existe um núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias, como
é o direito de propriedade, que nunca pode ser violado, nem sequer nos casos em que o legislador está constitucionalmente autorizado a editar normas restritivas ele pode molestar o núcleo essencial dos direitos restringidos.
27ª Assim, o direito de propriedade do recorrente só podia ser restringido de modo legítimo se a Constituição autorizasse expressamente a restrição, mas nunca podendo a lei restritiva diminuir nem aniquilar a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito sacrificado, devendo sempre ser respeitados os princípios da necessidade, da proporcionalidade e da proibição do excesso, acolhidos no citado artº 18º .
28ª Com efeito, quanto a restrições constitucionalmente autorizadas, apenas se encontram a expropriação por utilidade pública e a requisição (artº 62º , nº 2), as que resultam da intervenção do Estado na economia e que têm a ver com a organização económico-social e a utilização dos meios de produção, políticas agrícola, comercial e industrial (artº s. 80º e segts. e aquela que resulta do dever de pagar impostos.
29ª De qualquer modo, a expropriação e a requisição só são possíveis mediante justa indemnização, que não pode ser apenas nominal, irrisória ou simbólica, e tem de respeitar o princípio da igualdade perante a repartição dos encargos públicos, visto nas suas vertentes das relações interna e externa da expropriação.
30ª Só que as referidas restrições nada têm a ver com a habitação, pelo que não pode deixar de se concluir que aquelas que as normas impugnadas produzem no direito de propriedade do recorrente não têm legitimidade constitucional e ofendem os artº s. 1º, 2º, 13º , nº1, 18º e até o próprio artº 65º , nº 3 , todos da Constituição.
31ª O recorrente está legalmente obrigado a assegurar o bom estado de conservação dos prédios, podendo ser administrativamente ou judicialmente compelido a realizar as obras necessárias e sendo-lhe aplicadas pesadas coimas se as não fizer (artº s. 1031º , 1036º e 1037º , todos do CC, 17º 18º , 20º e 21º da Lei nº 46/85, 11º e segts. do RAU, 9º, 10º , 160º a 164º do RGEU e Dec.-lei nº
61/93, de 3 de Março ).
32ª Se as obras não forem efectuadas e os prédios ruírem, por forma a que os inquilinos tenham de os ocupar, tem a jurisprudência entendido que o senhorio é obrigado a repará-los dos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofrerem.
33ª Como um servente de pedreiro ganha mais por dia do que alguns dos inquilinos pagam de renda por mês (para não falar do pedreiro, que ganha muito mais), o recorrente e a sua família têm de ir trabalhar e ganhar dinheiro para, com esse rendimento do trabalho, poder fazer obras e proporcionar aos inquilinos o conforto que não merecem e não pagam, o que é injusto, imoral, violento, ofende todo o Direito justo e repugna à consciência humana minimamente bem formada
(artº s. 4º da Const. 33, 1º e 2º da Const. 76 e 4º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).
34ª Com o rendimento insignificante que recebe, o recorrente não consegue vender os prédios, tendo já anunciado a intenção de os alienar, porque ninguém está interessado no ‘investimento’, assim se evidenciando que resultam aniquilados os poderes de uso, fruição e disposição que ao recorrente, como proprietário, assistem e que formam o conteúdo do direito de propriedade protegido pelo artº
62º, nº 1, citado.
35ª A intervenção do Estado no mercado de arrendamento, limitando drasticamente as rendas e proibindo a denúncia dos contratos pelo lado do senhorio causa repulsa na consciência jurídica dominante, só podendo ser bem aceite pelos inquilinos que pagam as referidas rendas de valor simbólico.
36ª De facto, os protestos contra a situação em apreço vêm de todos os quadrantes, nomeadamente dos escritos da especialidade, da AR, dos jornais, do próprio legislador e dos governantes e encontram expressão em frases cheias de significado, como ‘estagnação forçada do contrato’ , ‘os senhorios são as únicas vítimas expiatórias que o Estado imola’ , ‘apagar a tempo uma nódoa de injustiça que só mancha o sistema’ , ‘extremos iníquos e imorais’ , ‘renda vil e irrisória’.
37ª O legislador, quando editou as normas em causa, tinha perfeita consciência de que estava a causar graves agressões ao direito de propriedade do recorrente e de outros proprietários de prédios situados em Lisboa e no Porto, até porque teve sempre o cuidado de se desculpar por causa da intervenção, dizendo que se tratava de situação transitória.
38ª Tem-se entendido que, uma vez apurada a ilegalidade e a ilicitude do facto, deve haver uma imputabilidade subjectiva (culpa presumida), pelo que também se conclui que se verifica o pressuposto da culpa.
39ª Existe sempre um dever constitucional de indemnizar por parte do Estado, decorrente do facto de resolver uma questão social à custa do recorrente e de um grupo restrito de donos de prédios arrendados há muito tempo, situados nas cidades de Lisboa e do Porto, com violação dos princípios da igualdade e da repartição dos encargos públicos, entre outros.
40ª Como têm entendido a doutrina e a jurisprudência constitucionais, não é possível configurar um caso de lesão de direitos sem haver o dever de reparação, existindo mesmo naqueles casos em que o Estado impõe aos particulares certos vínculos que, sem subtraírem o bem objecto do vínculo, lhes diminuem a utilidade ou o poder de uso e de fruição.
41ª A obrigação de indemnizar também encontra o seu fundamento na garantia constitucional da propriedade privada, mesmo no caso de sacrifício lícito de direito e em casos em que formalmente a titularidade privada se mantém e não há, pois, tecnicamente expropriação ( artº 62º da Constituição ).
42ª Todo o acto legislativo que intencionalmente impuser a um privado um encargo que puder ser considerado grave e anormal só será acto válido se expressamente incluir uma cláusula indemnizatória que atribua a compensação justa para o sacrifício que é imposto (artº, 62º, nº 2, da Const.).
43ª Por tudo o que fica exposto, verifica-se ofensa da autonomia ética do recorrente, da dignidade da pessoa humana, da justiça, da igualdade perante os encargos públicos, da necessidade, da proporcionalidade, da proibição do excesso, da protecção da propriedade privada, da justa indemnização, entre outros (artº s. 1, 2º, 13º, nº 1, 18º e 62º, todos da Const. 76, e 4º, 5º e 8º, nº s . 12, 15 e 17, todos da Const. 33 ).
46º Na medida em que as normas impugnadas não são suficientes para o recorrido cumprir o programa contido no artº 65º, nº 3, da Const., pois as mesmas não prevêm a redução das rendas muito altas e a elevação suficiente daquelas que são irrisórias, como as pagas pelos inquilinos do recorrente, também se encontra ofendido o referido preceito constitucional.
47ª Assim, devem ser julgadas inconstitucionais as normas constantes dos artº s.
41º, 42º, 47º, 48º, 50º e 67º , todos da Lei nº 2030, de 22-06-48, 10º do Dec.-Lei nº 47344, de 25-11-66, 1095º do CC, 6º, nº s. 1, 2 e 3, 11º e 12º e Tabelas anexas da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, 30º, 31º, 32º, 34º, 68º , nº
2, 69º, nº 1, 71º, 107º e 109º , todos do Dec.-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, bem como o seu artº 9º preambular, e as normas e Tabelas anexas às Portarias nºs. 648-A/86, de 31 de Outubro, 847/87 de 31 de Outubro, 716/88, de
28 de Outubro, 965-B/89, de 31 de Outubro, 1101/90, de 30 de Outubro, 1133-B/91, de 31 de Outubro, e 1025/92, de 31 de Outubro, por ofenderem os referidos princípios e preceitos constitucionais e não preverem indemnização compensatória, dando-se provimento ao recurso e ordenando-se a reformulação da decisão recorrida de acordo com o juízo de inconstitucionalidade emitido, com o que se fará a devida
JUSTIÇA'.
Por seu turno, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções junto deste Tribunal, como representante do Estado, finalizou a sua alegação dizendo:-
'1º - Não tem qualquer sentido e utilidade, em acção cujo objecto é a efectivação de uma pretensa responsabilidade do Estado por actos praticados no exercício da função legislativa, apreciar e decidir da pretensa inconstitucionalidade de numerosos preceitos de lei, editados ao longo das
últimas décadas e atinentes à tutela dos direitos do arrendatário no confronto do senhorio, já que a única questão que releva para a dirimição do litígio é a do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado, resultante do preceituado no artigo 22º da Constituição da República Portuguesa.
2º - Sendo evidente que os pressupostos da responsabilidade civil do Estado por actos legislativos constituem matéria perfeitamente autónoma e destacável da questão da pretensa inconstitucionalidade de certos preceitos legais editados - muitos deles, antes de vigorar a actual Constituição - já que tal responsabilidade se poderia perfeitamente fundar em actos lícitos, de plena validade constitucional, mas susceptíveis de afrontar ilegitimamente direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
3º - Nestes termos, não tendo a decisão recorrida aplicado à dirimição do litígio que opunha o autor ao Estado os preceitos legais por ele arrolados na sua alegação - e respeitantes ao conteúdo da relação locatícia - limitando-se a subsumir a matéria apurada à norma constante do artigo 22º da Constituição da República Portuguesa, falta um essencial pressuposto do recurso, pelo que se não deverá sequer conhecer.
4º - A não se entender deste modo, é manifestamente infundado o recurso enquanto procura demonstrar que, num Estado social de direito, são materialmente inconstitucionais todos os preceitos legais que visam tutelar o direito à habitação do inquilino, limitando ou restringindo uma pretendida e absoluta superioridade do direito de propriedade do senhorio'.
Ouvido sobre a questão prévia suscitada pelo recorrido, o impugnante defendeu que a mesma não tinha razão de ser, já que, disse em síntese, por um lado, a suscitação da inconstitucionalidade do conjunto normativo sub iudicio se justificava, pois que o pedido formulado na acção se fundou em prejuízos sofridos pelo recorrente e decorrentes da vigência de tal conjunto, o qual, na sua óptica, de tal vício padecia e, por outro, no acórdão impugnado concluiu-se que não houve actos ilícitos e culposos, para tanto se firmando em que as normas em crise não ofendiam quaisquer normas ou princípios constitucionais.
Cumpre decidir.
II
1. Impõe-se, desde logo, tomar posição sobre a questão prévia deduzida pelo recorrido Estado.
Na verdade, este sustenta que tendo a acção de que emerge o vertente recurso por escopo a efectivação da responsabilidade do Estado por actos praticados no exercício da sua função legislativa, estando, pois, nela em causa tão só a questão de saber se estão preenchidos os pressupostos daquela responsabilidade, não fará sentido, neste recurso, apreciar a validade, face à Constituição, da corte de normas ora impugnadas pelo recorrente.
Crê-se, porém, que a questão prévia não deve proceder.
2. De facto, se bem se entende a tese do recorrente, ao menos em sede do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, a alegada responsabilização do Estado, na qual, por entre o mais, se fundamenta o pedido de indemnização por aquele formulado, derivaria da prática, pelo recorrido, de actos ilícitos, actos esses justamente consubstanciados na edição normativa pretendida apreciar na presente impugnação. E essa ilicitude decorreria da circunstância de os normativos questionados virem a prescrever comandos que a Constituição (actual e, bem assim, a de 1933) vedaria.
Daí que, se este Tribunal se viesse a pronunciar no sentido de julgar inválidos - sob o ponto de vista conformidade constitucional - esses normativos, sempre o Alto Tribunal a quo, que os teve, no acórdão sub specie, como não padecendo de um tal vício, haveria de, em face daquela pronúncia, reequacionar a questão de saber se, perante essa invalidade, estaria, ou não, preenchido um dos pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual, qual seja o que se prende com a invocada ilicitude da conduta do recorrido consubstanciada na edição indevida de tais normativos.
3. Improcede, desta arte, a questão prévia suscitada pelo recorrido.
III
1. Por outro lado, cumpre salientar que se não irá dilucidar a questão da validade constitucional das normas em apreço parametrizando- -as com a Constituição de 1933, pois que a competência deste órgão de administração de justiça se limita a aferir da não insolvência normativa tendo por referência a Lei Fundamental de 1976 (cfr. por entre outros, o Acórdão deste Tribunal nº
446/91, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 2 de Abril de 1992 e Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 993).
Haverá, assim, que analisar a questão à luz do disposto na Constituição de 1976.
2. O presente recurso, como se viu, tem por objecto a invocada inconstitucionalidade das normas constantes das seguintes disposições:
- artigos 41º, 42º, 46º, 47º, 48º, 50º e 67º, todos da Lei nº 2030, de 22 de Agosto de 1948;
- artº 10º do Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966;
- artº 1095º do Código Civil;
- artigos 6º, nºs. 1, 2 e 3, 11º e 12º e Tabelas anexas da Lei nº
46/85, de 20 de Setembro;
- artigos 30º, 31º, 32º, 34º, 68º, nº 2, 69º, nº 1, 71º, 107º e
109º, todos do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro;
- artº 9º preambular deste Decreto-Lei nº 321-B/90;
- Portarias nºs. 648-A/86, de 31 de Outubro, 847/87, de 31 de Outubro, 716/88, de 28 de Outubro, 965-B/89, de 31 de Outubro, 1011/90, de 30 de Outubro, 1133-B/91, de 31 de Outubro, e 1025/92, de 31 de Outubro, e Tabelas a elas anexas.
Tendo em conta as estatuições consagradas em tais disposições, resulta claro que as mesmas se podem integrar em dois grupos de normas, quais sejam as que se prendem com regime regulador da cessação do contrato de arrendamento e aquelas que respeitam ao regime regulador da actualização de rendas.
Para o recorrente, o vício de que todas elas padecerão é consubstanciado numa violação do direito de propriedade protegido pelo artigo
62º da Constituição, adiantando ainda que o seu artigo 65º só contém normas programáticas, dirigindo-se apenas ao Estado e autarquias locais e não aos proprietários e senhorios.
3. Dispõe-se naquele artigo 62º, nº 1, que [a] todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
Tal como este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa tem vindo a defender, o direito de propriedade privada é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando da força jurídica do artº 18º da Constituição (cfr. Acórdãos n.ºs
1/84 e 257/92, publicados no Diário da República, 2ª série, de, respectivamente,
26 de Abril de 1984 e 18 de Junho de 1993).
E, no último dos citados Acórdãos, teve o Tribunal ocasião de precisar que:
'.........................................................................................................................................................................................................................................
........................o próprio projecto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito de poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições, quer a favor do Estado ou da colectividade, quer a favor de terceiros, das liberdades de uso, fruição e disposição...................
............................................................................................................................................................................................................................................
Quando o artigo 62º garante o direito à propriedade privada ‘nos termos da Constituição’, quer sublinhar que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas dentro dos limites e nos termos previstos e definidos noutros lugares do texto constitucional.
..........................................................................................................................................................................................................................................'
Mas, perspectivado como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o Tribunal, por intermédio do seu Acórdão nº 267/95
(publicado na 2ª Série do Diário da República de 20 de Julho de 1995), ponderou que:
'..........................................................................................................................................................................................................................................
O artigo 62º , n.º 1, da Constituição garante o direito à propriedade privada e à sua transmissão, ‘nos termos da Constituição’, isto é, dentro dos limites e termos definidos noutros pontos da lei fundamental, competindo ao legislador definir o conteúdo e limites do direito de propriedade privada
[artigo 168º, n.º 1, alíneas b) e j), da Constituição].
Elemento essencial do direito de propriedade é o direito de não de ser privado dela, que a Constituição não garante em termos absolutos, prevendo-se no n.º 2 do artigo 62º apenas o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e o direito à percepção de uma indemnização no caso de requisição ou de expropriação por utilidade pública
..........................................................................................................................................................................................................................................'
Também do Acórdão nº 4/96 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 30 de Abril de 1996) se extrai que o nº 1 do artigo 62º da Constituição não protege de forma absoluta o direito de propriedade privada e que, não sendo ele um direito ilimitado, 'a verdade é que o mesmo há-de ser compatibilizado com um outro direito de natureza social, justamente' o direito à habitação.
Mais recentemente, o Tribunal (cfr. o Acórdão nº 329/99, publicado na 2ª série do Diário da República, de 20 de Julho de 1999, o que foi reiterado nos Acórdãos números 517/99 - publicado na 2ª série do Diário da República, de
11 de Novembro de 1999 - e 602/99 - este ainda inédito), e no particular do entendimento que vinha seguindo àcerca do núcleo essencial do direito de propriedade, confrontando-o com a questão de saber das possibilidade de limitação do direito de edificar resultante dos planos urbanísticos, veio a dizer que:
'.......................................................................................................................................................................................................................................... Ora, no que concerne ao direito de propriedade, dessa dimensão essencial que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública - e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, nºs 1 e 2, da Constituição). Já, porém, se não incluem nessa dimensão essencial os direitos de urbanizar, lotear e edificar, pois, ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam sempre parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito a habitação própria, já não são essenciais à realização do Homem como pessoa. E, assim, como só pode construir-se ali onde os planos urbanísticos o consentirem; e o território nacional tende a estar, todo ele, por imposição constitucional, integralmente planificado [cf. artigos 9º, alínea e),
65º, nº 4, e 66º, nº 2, alínea b)]; o direito de edificar, mesmo entendendo-se que é uma faculdade inerente ao direito de propriedade, para além de ter que ser exercido nos termos desses planos, acaba, verdadeiramente, por só existir nos solos que estes qualifiquem como solos urbanos. Atenta a função social da propriedade privada e os relevantes interesses públicos que confluem na decisão de quais sejam os solos urbanizáveis, o direito de edificar vem, assim, a ser inteiramente modelado pelos planos urbanísticos.
..........................................................................................................................................................................................................................................'
Desta postura resulta, assim, que o direito de propriedade, enquanto direito que, constitucionalmente, deve ser tido por equiparado aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, há-de ser visualizado como detendo, à guisa de núcleo essencial, as garantias de não ser o respectivo titular dele privado por requisição e expropriação por utilidade pública sem que lhe seja atribuído uma justa indemnização, e de poder ser transmitido em vida ou por morte.
Sendo isto assim, impõe-se aquilatar se os conjuntos normativos questionados pelo recorrente vão, efectivamente, limitar de forma censurável o direito de propriedade e por forma a que tais limitações diminuam a extensão e o conteúdo desse direito, ou se, pelo contrário, nem sequer se poderá falar em que aqui nos postamos perante uma verdadeira limitação.
3.1. Em conformidade com a noção legal, o arrendamento urbano é o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição (cfr. artº 1º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321B/90, de 15 de Outubro), arrendamento esse que pode ter por fim o habitação, a actividade comercial ou industrial, o exercício de profissão liberal ou outra aplicação lícita do prédio
(cfr. art.º 3º, nº 1, do aludido Regime).
No caso vertente no recurso, apenas se questionam as normas relativas ao arrendamento para habitação permanente e, por isso, cabe notar que, tal como refere M. Januário C. Gomes (in. Arrendamentos para habitação, 2ª ed., pág. 32) 'foi em função ou em atenção ao fim de habitação permanente que se estabeleceu o regime vinculístico no arrendamento habitacional, com o estabelecimento de múltiplas normas de protecção do arrendatário destinadas a tutelar a sua posição contratual e, portanto, a proteger a sua casa, o seu lar.
É a esta luz que se compreende e justifica a norma da alínea i) do nº 1 do artº
64º do R.A.U. que permite ao senhorio resolver o contrato quando o arrendatário habitacional não tiver no prédio arrendado residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia: a lei considera, e bem, que o arrendatário habitacional que não usa a casa arrendada para o fim a que se destina não merece a tutela proteccionista e vinculística, não se justificando o ‘sacrifício’ do locador e também da comunidade que, assim, despejado o prédio locado, pode, em princípio, beneficiar de mais um prédio para arrendar.'.
3.2. No contrato de arrendamento para habitação vigora, no que ao senhorio respeita, o princípio da prorrogação obrigatória do contrato, por força do disposto no n.º 2 do artº 68º e nº 1 do artº 69º, ambos do citado Regime, tal como já acontecia na Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, designadamente, dos seus artigos 41º e seguintes, sendo certo que a introdução de tal regra foi introduzida pelo artº 106º do Decreto nº 5411, de 17 de Abril de 1919, e que veio, também, a continuar consagrada no art.º 1095º do Código Civil.
Para a cabal compreensão deste regime, é curial citar o que a propósito escreve o autor acima indicado (in Constituição da Relação do Arrendamento Urbano, 1990, pág. 68):
'..........................................................................................................................................................................................................................................
A regra da prorrogação obrigatória do contrato foi introduzida no nosso direito sem carácter definitivo num período em que a desproporção entre a exígua oferta e a grande procura de habitações justificava esta medida protectora da estabilidade do contrato. Ultrapassada a crise, nem por isso foi restabelecida a liberdade contratual no que a este ponto concerne, apesar dos protestos de parte da doutrina.
............................................................................................................................................................................................................................................
O certo é que esta medida, a princípio excepcional e transitória veio a enraizar-se de tal modo que o legislador teve de consagrar no Código Civil com carácter definitivo, ... [a] consagração legal do princípio da prorrogação obrigatória do contrato, as excepcionais situações em que o senhorio pode exercer a denúncia – artº 1096º e Lei nº 55/79.
..........................................................................................................................................................................................................................................'
3.3. Pelo que concerne ao grupo de normas respeitantes à renda e sua actualização, quanto aos arrendamentos para habitação, acentuar-se- -á, desde logo, que, hodiernamente, para a fixação do montante da renda no momento da celebração do contrato, não existe qualquer limite legal (cfr., sobre a limitação à liberdade de fixação do montante da renda para novos arrendamentos incidentes sobre prédios anteriormente dados de arrendamento, o artº 15º do Decreto-Lei nº 445/74, de 12 de Setembro, que, aliás, veio suspender as execuções fiscais para todo o País, diploma posteriormente revogado pelo Decreto-Lei nº 148/81, de 4 de Junho, que veio a estabelecer os regimes de renda de renda livre e renda condicionada).
Já no que se refere à sua actualização, o regime legal desde a Lei nº 2030 (artigos 46º a 48º e 50º) tem sido o de imposição de limites de actualização.
Na verdade, o regime da actualização da renda decorridos cinco anos sobre a sua fixação foi suspenso pelo artº 48º da Lei nº 2030 e mantido, provisoriamente, quanto a Lisboa e Porto, pelo artº 10º do Decreto-Lei nº 47344, decreto preambular do Código Civil, podendo, fora daqueles concelhos, a renda anteriormente fixada ser actualizada nos termos do então vigente artº 1104º do Código Civil (cfr. Decreto-Lei nº 37.021, de 21 de Agosto de 1948, posteriormente alterado em 1950 e 1968).
Pela Lei nº 46/85, de 20 de Setembro (cfr. seu artº 6º), veio a ser estabelecido o regime de actualização anual das rendas por coeficientes fixados pelo Governo, na sua sequência sendo editadas Portarias, algumas das quais as ora questionadas pelo recorrente.
Retomando o mencionado autor (cit. Arrendamentos para habitação, pág. 102), o 'artº 6º da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, veio – finalmente – no seu nº 1, enunciar o princípio geral do sistema de actualização de rendas, a que passavam a estar sujeitos todos os arrendamentos para habitação: as rendas – qualquer que fosse o regime de renda aplicável – passavam a estar sujeitas a actualizações anuais, podendo a primeira actualização ser exigida pelo senhorio um ano após a data do início de vigência do contrato e as seguintes, sucessivamente, um ano após a actualização anterior.', acrescentando, mais adiante (pag. 104), que '[a]inda no que respeitava aos arrendamentos existentes
à data de entrada em vigor, havia que considerar os arrendamentos passíveis de correcção extraordinária, nos termos do artº 11º e segs., que focaremos adiante. Realce-se, porém, que tais arrendamentos não constituíam excepção ao nº 1 do artº 6º, quer porque a correcção se destinava a corrigir a renda praticada tendo em vista a aplicação normal do sistema de actualização anual, quer porque o senhorio não estava obrigado a corrigir a renda, podendo optar, ab initio, pela actualização anual.'.
De seu lado, dispõe-se no Regime de Arrendamento Urbano que a actualização de rendas é permitida apenas nos casos previstos na lei e pela forma nela regulada (artº 30º), sendo as rendas nele reguladas actualizáveis
[a]nualmente, em função de coeficientes aprovados pelo Governo, nos termos do artigo 32º, ou por convenção das partes, nos casos previstos na lei [alínea a) do nº 1 do artº 31º] e, [n]outras ocasiões, em função de obras de conservação extraordinárias ou beneficiação realizadas pelo senhorio, nos termos dos artigos
38 e seguintes, salvo quando possam ser exigidas a terceiros [alínea b) dos mesmos número e artigo], ressalvando-se na medida da sua especificidade, o disposto para os arrendamentos de renda apoiada (nº 2 do dito artº 31º).
Este novo regime do arrendamento veio manter o sistema das actualizações anuais em função de coeficientes (que tiveram a sua expressão naqueloutras Portarias objecto do presente recurso) e permitir a sua actualização por convenção das partes, anotando-se que o artº 9º do diploma preambular aprovador do Regime do Arrendamento Urbano (ou seja, o Decreto-Lei nº
321-B/90) prevê casos de avaliação extraordinária de rendas, ainda que por um período transitório (cfr. António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 4ª edição, pág. 117).
4. Que estes grupos de normas constituem uma «diminuição»,
«limitação» ou «compressão» da liberdade contratual e da livre fixação da contrapartida contratual, é algo de que se não pode duvidar.
Ponto é saber se essas «diminuição», «limitação» ou «compressão», de um lado, podem ser consideradas como algo que, verdadeiramente, restringe o direito de propriedade do senhorio sobre o arrendado e, a dar-se resposta afirmativa, se isso vai diminuir ao extensão e o conteúdo essencial desse direito.
Este Tribunal, no seu Acórdão deste Tribunal nº 425/87 (publicado no Diário da República, 2ª série, de 5 de Janeiro de 1988) referiu, perspectivando o direito de propriedade, que se diria 'desde logo, que a conflitualidade existente entre o senhorio e o inquilino radica numa base obrigacional, derivando os direitos e deveres respectivos de um contrato entre ambos celebrado' e, tomando por referência o direito à habitação, teve ocasião de discretear assim no Acórdão nº 311/93 (mesmos jornal oficial e Série, de 22 de Julho de 1993):-
'....................................................................................................................................................................................................................................................................O direito à habitação - ou seja, o direito a ter uma morada condigna - é, assim, um direito a prestações.
Pois bem: quer esse direito deva conceber-se como um verdadeiro direito subjectivo, quer, antes, como um direito a uma 'prestação não vinculada' que, ao cabo e ao resto, se deva reconduzir a uma mera pretensão jurídica -
(neste último sentido, cf. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1985, ps. 205 e 209; diferentemente, cf. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 1988, p. 106, e J.J. GOMES CANOTILHO, Tomemos a sério os direitos económicos, sociais e culturais, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor A. Ferrer Correia, III, Coimbra, 1991, p. 461 e sg) - ,uma coisa é certa. E é esta: o seu grau de realização depende das opções que o Estado fizer em matéria de política de habitação. E estas são, desde logo, condicionadas pelos recursos materiais (financeiros e outros) de que o Estado, em cada momento, possa dispor. O direito em causa é, assim, um direito 'sob reserva do possível' - um direito que corresponde a um fim político de realização gradual (cf. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, loc. cit. p. 201).
A concretização do direito à habitação - o facultar a cada pessoa uma morada condigna - é, pois, uma tarefa cuja realização - gradual, como se disse - a Constituição comete ao Estado.
Mas, fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana
( ou seja, naquilo que a pessoa realmente é: um ser livre com direito a viver dignamente), existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir
..........................................................................................................................................................................................................................................'
Tal entendimento, já assumido no Acórdão nº 151/92 (publicado no Diário da República, 2ª série, de 28 de Julho de 1992) foi, neste último aresto, desenvolvido em termos perfeitamente extrapoláveis para os presentes autos, o qual, ao avaliar as normas que subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da liberdade contratual e o submetem à regra da renovação automática obrigatória, refere que é nelas que 'o legislador, conhecendo como conhece, a falta de casas para habitação, sacrifica um direito do senhorio a favor do direito do locatário a dispor de uma casa para sua habitação. De facto, retira àquele o direito que, em princípio, lhe assistiria de denunciar livremente o contrato de arrendamento celebrado - direito este que está compreendido, seja no direito de iniciativa económica privada (artigo 61º, nº 1, da Constituição), seja no direito de propriedade privada (artigo 62º, nº 1, da Constituição)', acrescentando, ainda, que a 'legislação sobre arrendamento para habitação é fortemente vinculística, sendo um domínio onde a hipoteca social que recai sobre a propriedade é, talvez, mais forte.'.
4.1. Poderá, neste contexto, afirmar-se que as «diminuição»,
«limitação», ou «compressão» que, reportadamente ao direito de propriedade, se surpreendem com os grupos de normas questionados pelo recorrente, verdadeiramente, não traduzem uma qualquer restrição de tal direito.
Efectivamente, de um lado, elas, obviamente, não «tocam» no «núcleo» essencial do direito de propriedade dos senhorios, que continuam a poder transmiti-lo e fruí-lo (convindo-se, contudo, que se não pode escamotear que, na prática, a transmissão de um prédio urbano dado de arrendamento se antevê mais dificultosa reportadamente a um outro que se não encontre «onerado» com um tal tipo de contrato e que, dados os condicionamentos da actualização das rendas, a sua fruição se pode apresentar como menos proveitosa).
Todavia, de outro, com a consagração constitucional do direito à habitação, no sentido de se tratar de um direito de interesse colectivo ou social e cuja prossecução imposta ao Estado não deixa também de vincular os proprietários particulares, como resulta da postura assumida por este Tribunal e se extrai das citações dos seus arestos que acima foi efectuada, o que haverá de concluir é que os grupos de normas de que curamos constituem, mais propriamente, uma forma de composição do conflito que se surpreende entre aquele direito e aqueloutro de propriedade dos senhorios, de cuja «concordância» resultam as assinaladas «diminuição», «limitação» ou «compressão» deste último que, como se viu, não atingem, porém, a sua extensão e o seu conteúdo essencial.
Como de pode ler em J.C. Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 1985, 200), '[n]a realidade, certos direitos, como, p. ex.., os direitos à habitação, ..., dependem, na sua actualização, de determinadas condições de facto. Para que o Estado possa satisfazer as prestações a que os cidadãos têm direito, é preciso que existam recursos materiais suficientes e é preciso ainda que o Estado possa dispor desses recursos. Ora, a escassez dos recurso postos à disposição (material e jurídica) do Estado para satisfazer as necessidades económicas, sociais e culturais de todos os cidadãos é um dado da experiência, pelo que não está em causa a mera repartição desses recursos, segundo um princípio de igualdade, mas sim uma verdadeira opção quanto à respectiva afectação material. Por outro lado, essa opção revela-se extremamente articulada e complexa, já que a escassez dos recursos disponíveis está intimamente ligada às variações no desenvolvimento económico e social, tornando, por isso, a escolha dependente de um sistema global em que pesam todas as coordenadas que condicionam esse desenvolvimento'.
E, mais adiante, expressa-se esse autor no sentido de que:
'..........................................................................................................................................................................................................................................
As políticas de habitação, saúde, segurança social, educação, cultura, etc., dadas as suas complexidades e contingência, não podem estar determinadas nos textos constitucionais e a sua realização implica opções autónomas e específicas de órgãos que disponham simultaneamente de capacidade técnica e de legitimidade democrática para se responsabilizarem por essas opções.
............................................................................................................................................................................................................................................
.............Podemos falar aqui da necessidade de uma concretização jurídico política da Constituição ou de uma conformação do conteúdo dos direitos fundamentais.
............................................................................................................................................................................................................................................
Quanto aos direitos (sociais) a prestações, já as coisas se passam de outro modo. As normas que os prevêem contêm directivas ao legislador ou, talvez melhor, são normas impositivas de legislação, ... ,porque apenas indicam ou impõem ao legislador que tome medidas para uma maior satisfação ou realização concreta dos bens protegidos.
..........................................................................................................................................................................................................................................'
Ao analisar as situações de colisões ou conflitos de direitos, Vieira de Andrade (ob., cit., 220 e seguintes), após asseverar que a soluções dessas situações não poderá ser resolvida com o 'recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais', não se podendo 'sempre (ou talvez nunca) estabelecer uma hierarquia entre os bens para sacrificar os menos importantes', e de assinalar que se não pode, além disso, ignorar 'que, nos casos de conflito a Constituição protege os diversos valores ou bens em jogo e que não é lícito sacrificar pura e simplesmente um deles ao outro', conclui que se terá, pois, de respeitar 'a protecção constitucional dos diferentes direitos ou valores, procurando a solução no quadro da unidade da Constituição, isto é, tentando harmonizar da melhor maneira os preceitos divergentes', sendo certo que um tal princípio de concordância prática como critério de solução de conflitos não pode ser perspectivado como 'um regulador automático', já que 'a sua aceitação pressupõe que o conflito entre direitos nunca afecta o conteúdo essencial de nenhum deles'.
E, na decorrência, expende:-
'..........................................................................................................................................................................................................................................
Por outro lado, o princípio da concordância prática não prescreve propriamente a realização óptima de cada um dos valores em termos matemáticos. É apenas um método e um processo de legitimação das soluções que impõem a ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis, para que se não ignore algum deles, para que a Constituição, (essa sim) seja preservada na maior medida possível. Ora, a realização máxima das prescrições constitucionais pode depender da intensidade ou modo como os direitos são afectados no caso concreto, atentos o seu conteúdo e a sua função específica. Isto é, a medida em que se vai comprimir cada um dos direitos (ou valores) pode ser diferente, dependendo do modo como se apresentam e das alternativas possíveis de solução do conflito.
O princípio da concordância prática executa-se, portanto, através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito.
Por um lado, exige-se que o sacrifício de cada um dos valores constitucionais seja necessário e adequado à salvaguarda dos outros. Se o não for, não se trata sequer de um verdadeiro conflito.
Por outro lado, e aqui estamos perante a ideia de proporcionalidade em sentido estrito, impõe-se que a escolha entre as diversas maneiras de resolver a questão concreta se faça em termos de comprimir o menos possível cada um dos valores em causa segundo o seu peso na situação (segundo a intensidade e a extensão com que a sua compressão no caso afecta a protecção que lhes é constitucionalmente concedida).
A questão do conflito de direitos depende, pois, de um juízo de ponderação, no qual se procura, em face de situações, formas ou modos de exercício específicos (especiais) dos direitos, encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto dos valores constitucionais (à ordem constitucional).
..........................................................................................................................................................................................................................................'
4.2. Em face desta parametrização, ponderando que já se concluiu que o «núcleo» ou dimensão essencial do direito de propriedade do senhorio não é posto em crise pelos normativos sub specie, que aos interesses dos cidadãos em verem garantido o seu direito à habitação não é alheia a vinculação dos particulares, chamados, com o seu direito de propriedade, a cumprir a função social decorrente daquele direito à habitação, a par com as incumbências que o Estado deve prosseguir, e que a escassez do mercado habitacional reclama a adopção de medidas tendentes a conseguir a preservação do direito de habitação, como um valor indubitavelmente protegido pela Lei Fundamental, igualmente se haverá de concluir que as normas em apreço, ao conferir características vinculísticas ao contrato de arrendamento para habitação, designadamente no que se reporta à sua livre revogação por banda do senhorio e às limitações quanto à actualização da contrapartida pelo desfrute do arrendado, se não configuram como ultrapassando um modo adequado e proporcionado de resolução do conflito que, à partida, se postaria entre um e outro daqueles direitos.
E, justamente por isso, não violam elas, designadamente, os artigos
62º, 13º e 18º da Lei Fundamental.
Não cabe a este Tribunal indicar se, de entre as várias formas virtualmente possíveis de hipotisar e tendentes a tal resolução, outro deveria ser o trilho a seguir pelo legislador. Cabe-lhe, isso sim, aferir se a solução normativa adoptada, na óptica do quadro unitário da Constituição e da prossecução do desiderato da menor compressão dos direitos ou valores em jogo, é adequada e proporcionada, questão à qual, como se viu já, se deu resposta afirmativa.
Não são, pois, inconstitucionais, as normas colocadas à sindicância deste Tribunal no presente recurso.
IV
Perante o que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando em unidades de conta a taxa de justiça. Lisboa, 3 de Maio de 2000 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa