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Proc. Nº 598/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - A...., com os sinais dos autos, deduziu impugnação judicial, ao abrigo dos artigos 96º e 97º do Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações (CIMSISD) da Segunda avaliação de um prédio omisso na matriz e destinado a construção.
Discordando do valor atribuído ao referido prédio invocou, entre outros fundamentos, que aquele valor era excessivo em relação ao que se mostrava justo às datas da liquidação da sisa e da transmissão, não tendo a sua determinação assentado em critérios de razoabilidade e de justiça; o valor fixado excederia em muito o valor venal de cada metro quadrado.
Desde logo, arguiu a inconstitucionalidade material do artigo 97º daquele Código, por violação do artigo 268º nº 3 da CRP (redacção então vigente), no ponto em que limitava a impugnação à preterição de formalidades legais.
Na petição, requereu ainda a produção de prova por avaliação nos termos do artigo 97º do Código de Processo das Contribuições e Impostos (CPCI).
Por sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância, a impugnação foi julgada improcedente, com expressa pronúncia no sentido da conformidade constitucional do citado preceito do CIMSISD.
Aí se disse, para fundamentar o juízo de constitucionalidade, que 'o campo da irrecorribilidade (...) se restringe a matéria de estrita índole técnica. Trata-se de uma 'zona discricionária' em que se situa a fixação de um valor e que está subtraída à censura jurisdicional, porque nela têm lugar juízos efectuados segundo regras técnicas ou de experiência particular, que o Tribunal não está em condições de poder corrigir'. Cita-se, depois a jurisprudência dos tribunais superiores, no mesmo sentido, 'a não ser em casos comprovados de manifesta injustiça, o que não é, visivelmente, a situação dos autos'.
Desta sentença recorreu o impugnante para o Tribunal Tributário de
2ª Instância, mantendo, nas suas alegações, a arguição de inconstitucionalidade da norma do artigo 97º do CIMSISD.
Por acórdão daquele Tribunal, foi negado provimento ao recurso. E também aqui se decidiu que a referida norma do CIMSISD não padecia de inconstitucionalidade, escrevendo-se a propósito:
'(...) estamos numa zona técnica, onde necessariamente há uma grande margem de discricionaridade. Aqui o que releva são conhecimentos técnicos especializados, obviamente, fora dos conhecimentos do Tribunal.
Esta discricionaridade técnica não pode ser sindicada pelo Tribunal, salvo, como refere o Mmo Juiz, em casos de gritante injustiça, o que manifestamente não ocorre na hipótese submetida.'
E sobre a produção de prova por avaliação, na decorrência do que se defendera sobre a constitucionalidade da norma do artigo 97º do CIMSISD, entende--se que ela não é admissível pois, de outro modo, violada seria tal norma.
De novo inconformado, o impugnante recorre para o STA, continuando a sustentar a inconstitucionalidade da referida norma do CIMSISD.
O recurso foi provido pelo acórdão agora impugnado, tendo o aresto, para tanto, recusado a aplicação do artigo 97º e seu § único do CIMSISD, por inconstitucionalidade material, nos termos que adiante melhor se explicitarão; consequentemente, revogou o acórdão recorrido 'na parte em que nele se entendeu não ser admissível a realização de avaliação nem poder ser apreciada jurisdicionalmente a correcção da fixação do valor patrimonial levada a cabo no acto impugnado'.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso pelo Ministério Público, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea a) da Lei nº 28/82, com vista à apreciação da constitucionalidade da norma extraída do artigo 97º e §
único do CIMSISD, concluindo o recorrente, nas suas alegações, nos seguintes termos:
'1 – São materialmente inconstitucionais, por violação do direito ao recurso contencioso, as disposições legais, constantes de leis fiscais, que impossibilitam ou limitam, em função da invocação de certos vícios específicos, a possibilidade de impugnação contenciosa do particular.
2 – A norma constante do artigo 97º e § único do CIMSISD, ao afastar a possibilidade de impugnação do valor fixado em avaliação administrativa, destinada a determinar e quantificar matéria colectável sobre que incide a sisa, salvo no caso de preterição de formalidades legais, é materialmente inconstitucional.
3 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
Não houve contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - O objecto do recurso
O objecto do presente recurso é a norma contida no artigo 97º §
único do CIMSISD, tal como ela foi interpretada no acórdão recorrido.
Importa, pois, precisar essa interpretação.
Dispõem os citados artigo e parágrafo único:
'Artigo 97º
O valor fixado em avaliação não é susceptível de impugnação contenciosa.
§ único – Com fundamento em preterição de formalidades legais, poderá o contribuinte ou o Ministério Público impugnar tanto a primeira como a Segunda avaliação, nos termos do Código de Processo das Contribuições e Impostos.
.......................................................................................................................................'
A questão que o acórdão recorrido tinha que resolver, face ao decidido no acórdão do Tribunal Tributário de 2ª Instância, era a de saber da possibilidade de os tribunais controlarem a legalidade do acto de avaliação, nos aspectos que não têm a ver com o cumprimento de formalidades legais.
Com efeito, o acórdão então recorrido confirmara a sentença de 1ª instância no ponto que não admitira a requerida prova por avaliação para determinação do valor venal, por metro quadrado, do prédio em causa, com fundamento em que, de outro modo, violada seria a norma do § único do artigo 97º do CIMSISD; e esta norma não se mostrava ferida de inconstitucionalidade, por os aspectos técnicos que estariam em causa na avaliação do prédio se situarem numa zona de discricionariedade técnica que relevam de conhecimentos técnicos especializados fora dos conhecimentos dos tribunais.
O acórdão agora impugnado começa por assinalar que 'a jurisprudência do STA vem uniformemente admitindo o controle judicial do carácter técnico nos casos em que se detecta erro grosseiro ou manifesto'.
Entende, porém, que, face ao disposto no artigo 268º nº 4 da CRP, a sindicabilidade dos actos praticados pela Administração 'no domínio da discricionariedade técnica deverá ir para além disso' (sublinhado nosso).
E, mais adiante, diz-se no mesmo acórdão que 'a restrição da sindicabilidade dos actos administrativos em que haja aplicação de critérios técnicos nos casos de erro manifesto implica uma subversão prática do princípio da legalidade, constitucionalmente imposto à Administração (nº 2 do artigo 266º da Constituição)' e ainda que 'tem-se por seguro que os Tribunais não podem recusar ao interessado a possibilidade de obter um controle efectivo da aplicação de critérios técnicos pela Administração'.
Demonstra-se, depois, que no quadro legal vigente, no domínio específico do contencioso tributário, normas há que apontam para a admissão generalizada do 'controle da aplicação de critérios técnicos nos actos de quantificação da matéria colectável'.
Seria, p. ex., o caso dos artigos 120º, alínea a), 136º nºs 2, 3 e 4 e 155º nºs 1 e 2 do Código de Processo Tributário.
Conclui o aresto neste ponto que 'não existe, actualmente, qualquer obstáculo, a nível de lei ordinária, a que sejam apreciados pelos tribunais os actos de fixação de valores patrimoniais em todas as suas vertentes, estendendo-se a possibilidade de controle judicial a qualquer erro de avaliação, seja motivado por errada apreciação de elementos de facto, seja por errada aplicação de normas jurídicas, abrangendo-se nestes elementos a aplicação de critérios técnicos feita pela Administração'.
E, nesta medida, no âmbito do CPT, não haveria obstáculo a que fosse apreciada a correcção do acto de avaliação impugnado e efectuada pelo Tribunal nova avaliação requerida pelo impugnante.
O artigo 97º do CIMSISD é chamado à colação pelo acórdão recorrido na parte em que se admite a aplicação ao caso do Código de Processo das Contribuições e Impostos, na vigência do qual haviam decorrido a avaliação e a impugnação judicial.
Reconhecendo que o CPCI já admitia a prova pericial, inclusivamente por arbitramento, para efeitos de avaliação, o acórdão salienta, no entanto, que o artigo 97º desse Código previa o afastamento da admissibilidade dos meios de prova por 'disposições especiais contidas nas leis de tributação '.
É, então, que surge o artigo 97º do CIMSISD como possível (e indirecto) obstáculo à avaliação judicial: se o valor fixado pela Administração não pode ser contenciosamente impugnado, então indirecta mas necessariamente aquele preceito proibiria a avaliação judicial.
Neste contexto, o acórdão recusa a aplicação da norma daquele artigo
97º do CIMSISD por inconstitucionalidade material – violação do artigo 269º nº 2 da CRP, na redacção inicial (artigo 268º nº 3, na redacção de 82 e artigo 268º nº 4 nas redacções posteriores).
Diz-se expressamente no mesmo acórdão:
'(...) este artº 97º e seu § único, afastando a possibilidade de impugnação contenciosa do próprio valor fixado na avaliação administrativa é materialmente inconstitucional, por nessa fixação poder ocorrer ilegalidade que não constituísse preterição de formalidade essencial, designadamente, o erro na própria avaliação, por não serem considerados factores de avaliação que deveriam ser atendidos.' (sublinhado nosso).
Nos parágrafos seguintes, o acórdão recorrido acentua o recorte do juízo de inconstitucionalidade que formula, considerando que a inconstitucionalidade 'é particularmente evidente' por a ilegalidade imputada ao acto se reportar 'à quantificação da matéria colectável.'.
Isto porque, admitindo que o direito ao recurso contencioso possa
'ser afastado relativamente a matérias que por sua natureza não sejam susceptíveis de apreciação por órgãos não administrativos' ('zonas de discricionariedade técnica' – diz-se mais adiante) esse não seria o caso da
'quantificação da matéria colectável' e da 'fixação de valores patrimoniais' por a própria lei ordinária (no caso, o CPT) admitir o seu controle judicial.
Com o que se deixa dito é agora possível definir o objecto do presente recurso.
Atendendo à situação concreta em causa, a aplicação da norma que se extrai do artigo 97º e § único do CIMSISD é recusada no ponto que, afastando na sua literalidade a impugnação contenciosa do valor fixado em avaliação, salvo com fundamento em preterição de formalidades legais, não permitiria o controle judicial do erro na avaliação, quer por erro na apreciação dos elementos de facto, quer por errada aplicação do direito, aqui se incluindo a aplicação pela Administração de critérios técnicos.
Na verdade, é porque no acórdão se entende que a garantia do recurso contencioso abrange tal controle judicial, mesmo para além dos casos de manifesta injustiça, que se julga inconstitucional aquela norma.
Dito de outra forma, se se entendesse que a quantificação da matéria colectável e a fixação de valores patrimoniais eram áreas da actividade da Administração que por sua natureza não eram susceptíveis de apreciação por
órgãos não administrativos, não seria sequer convocada a norma do artigo 97º e §
único do CIMSISD – não era ela que, por só admitir impugnação contenciosa por preterição das formalidades legais, obstaria ao recurso com os fundamentos invocados.
3 – Fundamentação
'A possibilidade de apreciação contenciosa da conduta da Administração não é mais do que um corolário do princípio da legalidade da Administração', escreveu André Gonçalves Pereira, em breve estudo intitulado 'A garantia do recurso contencioso no texto constitucional de 1971', in 'Estudos de Direito Público em honra do Professor Marcelo Caetano', pags. 243 e segs.
Tinham passado cerca de dois anos sobre a consagração constitucional da garantia do recurso contencioso operada pela Lei nº 3/71, de 16 de Agosto, que reviu a Constituição de 1933, ficando a constar do artigo 8º nº 21 a garantia dos cidadãos portugueses de 'haver recurso contencioso dos actos administrativos definitivos e executórios que sejam arguidos de ilegalidade'.
De então até hoje não deixaram os textos constitucionais de incluir no elenco dos direitos dos cidadãos o de impugnar contenciosamente actos administrativos.
Até à revisão constitucional de 97, a formulação deste direito pouco se afasta da que constava da revisão de 71 da Constituição de 33.
Com efeito, logo na versão original da Constituição de 76 a norma do artigo 269 nº 2 é quase um decalque da norma do artigo 8º nº 21 da Constituição de 33: a impugnação contenciosa dirige-se contra actos administrativos definitivos e executórios e tem como fundamento possível a ilegalidade.
Já não assim com a norma correspondente na revisão de 82; o recuso contencioso é garantido contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios 'independentemente da sua forma', podendo visar também (para além da anulação ou declaração de invalidade do acto) 'o conhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido'.
A verdade, porém, é que já então os tribunais administrativos, no quadro constitucional e legal vigente, admitiam recursos contenciosos de actos administrativos, mesmo não revestidos das formas de despacho ou deliberação
(v.g. actos contidos em diploma legislativo ou regulamentar ou em decreto presidencial).
Por outro lado, nunca foi consagrado, no plano do direito ordinário e como regra aquele outro fim ou objectivo do recurso contencioso; apesar da letra do preceito constitucional, para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido o legislador criou um novo meio processual: a acção para reconhecimento de direito ou de interesse legítimo, regulada nos artigos 69º e segs. Da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (DL nº
267/85, de 16 de Julho).
Mais profunda é neste aspecto a alteração resultante da revisão constitucional de 89.
Mantendo a garantia do recurso contencioso, em disposição própria por razões históricas e por ser ainda o meio contencioso mais utilizado pelos interessados, a norma deixou de impor como características do acto administrativo recorrível a definitividade e a executoriedade, acentuando antes a lesividade dos direitos ou interesses legalmente protegidos.
Se a alteração continha virtualidades de reforço daquela garantia – e não é aqui o lugar apropriado para tomar posição sobre a polémica, fundamentalmente doutrinária, que a propósito se suscitou – certo é que ela pouco adiantou na jurisprudência dos tribunais administrativos que manteve, em regra, a exigência da chamada 'definitividade vertical' dos actos recorríveis (o que veio a ser julgado conforme à Constituição por este Tribunal, p. ex. no Acórdão nº 603/95 in ATC 32º vol. P. 411) e, através da teoria dos actos destacáveis, continuou a dar resposta à garantia do recurso contencioso contra actos administrativos lesivos não horizontalmente definitivos.
Mas a revisão de 89 veio a garantir 'sempre' aos administrados o
'acesso à justiça administrativa' para tutela daqueles direitos ou interesses, impondo ao legislador ordinário a construção dos meios processuais aptos à concretização de tal garantia e vedando a criação ou a subsistência de medidas restritivas ou condicionadoras do acesso à justiça administrativa sempre que pela conduta da Administração, fossem lesados direitos ou interesses legalmente protegidos.
Assim é que o recurso contencioso começa, a nível constitucional, a perder a sua importância relativa no conjunto dos meios processuais adequados à tutela efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados.
Já antes, contudo, o legislador ordinário – em especial com a LPTA – havia criado, embora de forma relativamente incipiente, novos meios processuais, principais e acessórios, aptos à defesa daqueles direitos e interesses, o que respondia à crítica, aliás generalizada, do modo como se estruturava o recurso contencioso, insuficiente para reparar as lesões provocadas por condutas lesivas da Administração e apesar dos avanços conseguidos neste domínio, em particular com o regime de execução de julgados estabelecido no DL nº 256-A/77, de 16 de Junho.
Não se pode, por outro lado, recusar o reforço da função garantística do recurso contencioso, operada a par com a evolução legislativa pela jurisprudência dos nossos tribunais administrativos.
A essa jurisprudência, no sentido de uma fiscalização mais profunda da conformidade legal dos actos administrativos recorridos, não constituiu óbice a tipologia dos vícios dos actos administrativos tradicionalmente consagrada nos artigos 815º do Código Administrativo e 15º nº. 1º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo; com mais propriedade se dirá que, naquela tipologia, o
'vício de violação de lei' assumia uma amplitude suficiente para nele se poder compreender toda e qualquer forma de ilegalidade diversa das que se integravam nos outros vícios tipificados.
Garantido o recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, é com a abrangência deste conceito, tendo como parâmetro o bloco de legalidade a que a Administração deve observância por força do princípio constitucional da legalidade e o limite a que ela está sujeita na prossecução do interesse público
(artigo 266º da CRP) – o respeito pelos direitos dos cidadãos – que os tribunais administrativos vão 'ampliando' os seus poderes de cognição.
A Constituição, as leis e os regulamentos, os contratos firmados, os actos administrativos consolidados, tudo são parâmetros de aferição da legalidade dos actos da Administração.
A vinculação da Administração é revelada em domínios onde tradicionalmente apenas se reconhecia a discricionariedade administrativa, cuja sindicabilidade se limitava, a coberto do artigo 19º da LOSTA , à verificação do vício de desvio de poder.
É em particular nesta área que, por imperativo constitucional, a fiscalização contenciosa dos actos administrativos se aprofunda.
Não basta que a Administração, no uso de poderes discricionários, prossiga o interesse público que justifica a atribuição desses poderes; para além de existirem, sempre, áreas de vinculação quando a Administração age no exercício de tais poderes (v.g. quanto aos pressupostos de facto em que assenta)
é a própria estatuição do acto que se confronta com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (artigo 266º nº
2 da CRP) a que a Administração se encontra igualmente vinculada.
Mas se é assim no domínio da discricionariedade volitiva, também o é
– se não por maioria de razão – no domínio da chamada 'discricionariedade técnica' (usando esta expressão à margem de qualquer juízo sobre a propriedade da terminologia), onde, diversamente do que acontece no primeiro caso, não há, na definição da situação jurídica concreta em apreço, um leque de opções legalmente indiferentes.
Retornando ao tratamento constitucional da matéria, assinala-se, por fim, que a última revisão coloca um marco importante na apontada linha evolutiva, com o claro sentido de assegurar plenamente os direitos e garantias dos administrados.
O princípio fundamental, plasmado pela primeira vez na Constituição enquanto reportado aos direitos e garantias dos cidadãos face à Administração, é o da 'tutela jurisdicional efectiva' dos direitos ou interesses legalmente protegidos (artigo 268º nº 4).
Consagrado este princípio, em termos genéricos, no artigo 20º nº 1 da CRP, não se dispensou o legislador constituinte de o repetir quando garantiu a defesa dos direitos ou interesses do cidadão, enquanto administrado.
Não cuidou, porém, de fixar os meios de que os cidadãos dispõem para fazer valer em juízo os seus direitos ou interesses – esta é tarefa da competência do legislador infra-constitucional que há-de criar os instrumentos necessários e suficientes para os cidadãos defenderem esses direitos ou interesses em termos tais que nenhum deles quede sem defesa jurisdicional adequada.
Limitou-se a Constituição a apontar, a título exemplificativo (mas desde logo vinculativos), alguns desses meios.
E é, entre eles, como mais uma indicação da sua perda de importância relativa no âmbito da justiça administrativa, que surge o recurso contencioso
('impugnação') 'de quaisquer actos administrativos'.
Mantendo-se expressamente essa garantia – já não agora em preceito autónomo – deixa, contudo, de se apontar o 'fundamento em ilegalidade' que, como vimos, desde a revisão de 71 da Constituição de 33 e com as sucessivas revisões da Constituição de 76, permanecia no nosso ordenamento juridico-constitucional.
Sem embargo de se admitir que esta eliminação possa abrir caminho a teses que, mesmo não indo ao ponto de sustentar que a ilegalidade deixou de ser fundamento exclusivo de impugnação de actos administrativos, a justifiquem pelo propósito de evidenciar a razão de ser e fim último da garantia – a defesa contra a ofensa ou lesão de direitos ou interesses dos administrados – afigura-se que a ilegalidade, tal como vinha sendo entendida, não deixou de ser o fundamento único do recurso contencioso.
Neste contexto juridico-constitucional se inscrevem alguns acórdãos deste Tribunal que julgam inconstitucionais, por violação da garantia do recurso contencioso, normas que restringem os fundamentos do recurso.
Foi assim no caso do Acórdão nº 429/89 (in ATC 13º vol. II, págs.
1237 e segs.) que julgou inconstitucional a norma do § 4º do artigo 97º do DL nº
42641, de 12/11/59, que restringe ao quantitativo da multa a possibilidade de impugnação contenciosa de decisão sancionatória do Ministério das Finanças em processo instaurado por infracção aos diplomas reguladores do comércio bancário e cambial, e onde se escreveu:
'É óbvio que, constitucionalmente, o recurso não pode deixar de abranger todos os aspectos juridicamente relevantes para apreciar da ilegalidade do acto administrativo em causa (...)'
É também o caso do Acórdão nº 233/94 (in ATC 27º vol. P. 595) que julgou inconstitucional, por violação do mesmo direito fundamental, a norma do artigo 114º § 2 do Código da Contribuição Industrial que fora interpretada na decisão recorrida como excluindo a sindicabilidade do acto administrativo com determinados fundamentos e onde se escreveu:
'(...)aos tribunais compete não somente a verificação dos pressupostos de aplicação da norma, mas também a correcção da interpretação da norma e a observância do princípio da proporcionalidade nessa aplicação, expressa não apenas no respeito do fim da norma mas também na correcção da adequação do meio ao resultado, ou seja, do 'iter' lógico seguido pela Administração na valoração da situação concreta e da correcção interna dos raciocínios logico-discursivos que presidiram à sua aplicação ao caso.'
É ainda o caso do Acórdão nº 728/98 (in DR II Série, nº 69, de
23/3/99, pags, 4232 que julgou inconstitucional, por violação do artigo 268º nº
4 da CRP, a norma do artigo 88º do CPCI.
É, por último, o caso do Acórdão nº 8/99 (inédito) que julgou inconstitucional, ainda com o mesmo fundamento, a norma do artigo 20º da LOSTA que, nos recursos das decisões proferidas em processos disciplinares em que sejam arguidos agentes administrativos, impede o tribunal de conhecer da gravidade da pena aplicada ou da existência material das faltas, salvo em determinados condicionalismos expressos na mesma norma.
Trata-se, afinal, de uma linha jurisprudencial que radica no entendimento de que 'o artigo 269º nº 2 [redacção da altura] da Constituição pode e deve ser interpretado como estabelecendo uma garantia completa de recurso, quer dizer, uma garantia que assegura aos particulares a possibilidade de impugnarem judicialmente todos os actos singulares e concretos da Administração Pública que produzam efeitos externos e sejam susceptíveis, portanto, de lesar os seus direitos. Assim, quaisquer normas legais que excluam esta possibilidade de impugnação relativamente a certos actos ou a certas categorias de actos administrativos ou que restrinjam os possíveis fundamentos de tal impugnação apenas a alguns dos vícios susceptíveis de gerar a antijuridicidade desses actos, têm de ser havidas como inconstitucionais (...)'
(J.M. Cardoso da Costa, 'A tutela dos direitos fundamentais in 'Documentação e Direito Comparado' nº 5, p. 209).
Ora, para além do que se deixou dito, não é despiciendo Ter em conta algumas normas do CPT actualmente vigente a que fez apelo o acórdão recorrido.
São os casos, designadamente, das normas contidas nos artigos 120º, alínea a), 121º nºs 1 e 3, 136º nº 2 e 155º nº 2 do CPT vigente à data em que o acórdão recorrido foi proferido e a que o mesmo acórdão fez apelo (estas normas correspondem, sem alteração, às que constam dos artigos 99º, alínea a), 100º nºs
1 e 3, 117º nº 2 e 134º nº 2, respectivamente, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo DL nº 433/99, de 26 de Outubro, que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2000, por força do artigo 4º deste diploma legal).
Das primeira e Segunda resulta que é fundamento de impugnação
'qualquer ilegalidade', designadamente 'a errónea quantificação de valores patrimoniais, devendo o acto impugnado ser anulado 'sempre que da prova produzida resulte fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário'; e é de salientar ainda que, no caso de quantificação de matéria tributável por métodos indiciários, não se considerando existir dúvida fundada se os fundamentos daqueles métodos forem os que constam do nº 2 do artigo 121º, mesmo aí é possível o impugnante 'demonstrar erro ou manifesto excesso na matéria tributável quantificada'.
O artigo 136º, com a epígrafe 'impugnação com base em mero erro na quantificação da matéria tributável' condiciona apenas a impugnação a prévia reclamação, permitindo o nº 2 do mesmo artigo que o impugnante apresente pareceres periciais que entender necessários; e de realçar é que o artigo 125º, sobre a prova pericial, não limita esta prova em função do quid impugnado mas apenas da sua necessidade de acordo com o entendimento do julgador.
Por último, o artigo 155º consagra a impugnação de actos de fixação de valores patrimoniais 'com fundamento em qualquer ilegalidade' (nº 1), constituindo 'motivo de ilegalidade, além da preterição de formalidades legais, o erro de facto ou de direito na fixação' (nº 2).
Os preceitos citados, em grande parte inovadores no anterior CPT, não deixam margem para dúvidas no sentido de que a matéria relativa à quantificação da matéria tributável e da fixação de valores patrimoniais se insere no estrito âmbito da legalidade, num domínio em que mais acentuadamente a Administração age no exercício de poderes vinculados.
Nesta área e com estas disposições, o legislador não está seguramente a fazer substituir a Administração pelos tribunais em juízos de oportunidade ou de conveniência.
Com efeito, a Administração não goza aqui de um poder de livre escolha de soluções, todas elas equivalentes em termos de legalidade – só um determinado valor é conforme à lei; no juízo que formula, ela gozará de 'uma margem de livre apreciação', que tradicionalmente se dizia subtraída à censura jurisdicional, salvo em casos de 'erro grosseiro' ou de 'manifesta injustiça'.
Comentando, a propósito, a jurisprudência produzida até então, escreveu Alberto Xavier ('Manual de Direito Fiscal', I, 1974, p. 132), depois de sustentar – e bem – que aquela liberdade interpretativa 'é uma liberdade científica conferida pela lei para a escolha da única solução justa e verdadeira e não uma liberdade discricionária de opção por uma de entre várias decisões possíveis':
'E daí que a jurisprudência tenha procurado limitar o princípio da irrevisibilidade parcial. No primeiro grupo de casos distingue com nitidez a fixação do quantitativo dos custos ou perdas da sua qualificação como tal, de modo que apenas a primeira seria 'discricionária' e inimpugnável. No segundo grupo separou duas zonas de actuação das comissões: uma 'vinculada', demarcada pelo âmbito das formalidades legais, sujeita a apreciação jurisdicional; outra
'discricionária' em que se situa a fixação de um valor, lucro, ou rendimento
(...) que está subtraída à censura jurisdicional porque nela têm lugar juízos de valoração, segundo regras técnicas ou de experiência particular, que o tribunal não está em condições de corrigir. E na sequência desta distinção procurou definir o conceito de formalidades técnicas em termos mais amplos do conceito comum, abrangendo questões de direito atinentes ao conteúdo e mérito da decisão, como decisão de fundo, tais como as relativas aos critérios jurídicos de determinação do valor, aos critérios de admissibilidade e interpretação das provas e legitimidade de escolha de critérios de avaliação, em termos de se poder afirmar que, em rigor, só não se incluíram no conceito de 'formalidades legais' as questões de facto que envolvem juízos de avaliação segundo critérios técnicos.
Todavia, a revisão constitucional de 1971 levanta sério obstáculo à legitimidade de todas estas distinções. Ao acrescentar ao seu artigo 8º um novo número 21º, nos termos do qual constitui direito ou garantia individual do cidadão 'haver recurso contencioso dos actos definitivos e executórios que sejam arguidos de ilegalidade' veio tornar inconstitucionais as disposições de lei ordinária que subtraem ao controle jurisdicional certos actos administrativos ou certos vícios do acto administrativo. Se é este o verdadeiro alcance – solução para a qual nos inclinamos – então deve concluir-se pela inconstitucionalidade das aludidas disposições da lei fiscal que excluem o recurso contencioso dos domínios onde vigora a 'margem de livre apreciação'. O exercício desta margem deverá pois ser também controlado pelos tribunais que para o efeito se podem socorrer de peritos.'
Sem deixar de se assinalar que, em obra anterior, o mesmo autor admitia a 'irrevisibilidade das deliberações no puro terreno das questões de facto que envolvem juízos de avaliação segundo critérios técnicos' ('Conceito e natureza do acto tributário', 1972, p. 380) a verdade é que, como se viu do trecho citado, ele acaba por pôr em causa, em termos de constitucionalidade, as razões que levaram a jurisprudência a situar fora dos seus poderes de cognição estas questões, e isto, mesmo num quadro jurídico-constitucional de exigência
'menos forte' de controle jurisdicional dos actos administrativos.
Igualmente, J.M. Cardoso da Costa ('Curso de Direito fiscal', 2ª ed.
1972, p. 59), não deixando de considerar que 'a identificação da base do imposto ou o cálculo da matéria colectável comportam muitas vezes uma zona de mais ou menos livre apreciação por parte da Administração ou de órgãos mistos (...) a quem cabe tal tarefa' tratando-se de 'insuprimíveis momentos de liberdade', liberdade que 'nada tem que ver (...) com a liberdade 'discricionária', sendo
'uma simples ' liberdade de investigação ou crítica', não deixa de se interrogar sobre se a exclusão do recurso contencioso (então vigente) dos rendimentos ou valores fixados em avaliação 'não deverá considerar-se prejudicada pela recente consagração constitucional do direito fundamental' de recurso contencioso dos actos administrativos definitivos e executórios que sejam arguidos de inconstitucionalidade' (...)'.
E justifica:
'Na verdade, tratando-se de uma parcela da actividade administrativa que se desenrola ainda numa zona de 'legalidade' e não numa zona de
'discricionariedade', e que por outro lado se preordena à emissão do acto definitivo e executório que é a liquidação do imposto, dir-se-á, em último termo, que ela não escapa à censura contenciosa a que a correcção jurídica deste acto (e do processo que condiciona a sua prática) está sujeita' (ob. Cit., p,
411, nota 1).
Ainda Nuno Sá Gomes ('Lições de Direito Fiscal', vol II in 'Ciência e Técnica Fiscal' nº 307/309), sobre a mesma matéria, defende que, face ao artigo 268º nº 3 da Constituição (redacção então vigente) 'são inconstitucionais as normas que limitam a possibilidade de recurso nos referidos casos de discricionariedade técnica ou científica quando se invoque a ilegalidade fundada em razões substanciais, designadamente a apreciação de critérios científicos ou técnicos inaceitáveis ou até arbitrário e não apenas, como vem sendo decidido em caso de preterição de formalidades legais.'
Não se oculta que já no quadro constitucional vigente e no anterior
à última revisão persiste alguma jurisprudência dos tribunais administrativos com relativa contenção na fiscalização contenciosa da legalidade dos actos recorridos no domínio da 'discricionariedade técnica' ou 'imprópria' – decisões que, geralmente situam o limite dos poderes cognitivos no 'erro grosseiro' ou
'erro manifesto'.
E isto porque se sustenta ou pressupõe a impossibilidade de fiscalização de 'juízos técnicos', por o tribunal não dispor de meios que possibilitem o controle desses juízos ou que permitam afirmar que o juízo jurisdicional seja mais correcto do que o formulado pela Administração ou, ainda, pelo insuperável obstáculo que representaria o princípio da separação de poderes.
A verdade é que a admissibilidade do controle geralmente aceite pela mesma linha jurisprudencial – o erro manifesto ou grosseiro – põe decisivamente em causa aqueles fundamentos expressos ou implícitos. O que uma tal tese deixa entrever é, afinal, que a questão apenas se deve colocar no estrito plano da prova – o grau ou a aparência de desvalor do acto (ilegalidade) não é, nem pode ser, face à Constituição, medida da admissibilidade do controle jurisdicional dos actos administrativos.
E também não se vê na Constituição que, no mesmo plano de legalidade, a dirimência de conflitos entre a Administração e os administrados, no âmbito das relações jurídico-administrativas, se confira a outros órgãos – que não os tribunais – designadamente a órgãos mistos constituídos no seio da própria Administração, por razões de melhor apetrechamento técnico ou proximidade ao real, poderes para emitir juízos incontestáveis de legalidade.
Por outro lado, ao admitir que os tribunais determinem à Administração 'a prática de actos administrativos legalmente devidos' (artigo
268º nº 4 da CRP) a Constituição revela que o princípio da separação de poderes, quando estão em causa condutas da Administração, necessariamente sujeitas ao império da lei, nem limita já os tribunais administrativos ao exercício de meros poderes cassatórios. O que vale por dizer que o controle jurisdicional da Administração, exorcizado por aquele princípio no sentido de impedir que os tribunais 'fizessem administração', tenderá hoje a Ter apenas como fronteira a oportunidade ou a conveniência das decisões administrativas.
4 – O que se deixa dito tem plena aplicação no caso dos autos.
Na verdade, a comissão mista que, em Segunda avaliação, fixa o valor do prédio para efeitos de tributação em sisa, ao abrigo do artigo 109º do CIMSISD não emite qualquer juízo de oportunidade ou de conveniência, nem actua no domínio de poderes discricionários: a lei não confere à Administração qualquer poder de determinar esse valor, sendo ele qual for igualmente legal.
Ao estabelecer no § 4º do artigo 94º, do CIMSISD, aplicável por força daquele artigo 109º, que a avaliação dos terrenos considerados para construção se baseia 'no valor venal de cada metro quadrado', a lei não deixa de vincular a Administração à determinação de um certo valor, único legal. Qual este seja é questão a decidir, pois, em termos de legalidade, com a utilização de critérios adequados.
Sujeita a erro e assim a incorrer em ilegalidade, o resultado da avaliação não pode deixar de se sujeitar ao poder sindicador dos tribunais – a maior ou menor ostensividade desse erro é questão – repete-se – a resolver em sede de prova, sendo o tribunal livre de valorar a prova (nomeadamente, por avaliação ou pelo recurso à coadjuvação de técnicos) produzida na impugnação judicial.
Ao impugnante caberá provar – independentemente do uso de poderes inquisitórios pelo juiz – a ilegalidade (o erro na avaliação) que invoca; a previsível dificuldade dessa prova ou da sua apreciação – semelhante, aliás, à de qualquer outra que os tribunais enfrentam quando se convocam juízos de perícia – não pode transfigurar-se, contra o que dispõe o artigo 268º nº 4 da CRP, em impossibilidade de controle jurisdicional.
Bem decidiu, pois, o acórdão recorrido, recusando a aplicação do artigo 97º e § único do CIMSISD, por inconstitucionalidade material – violação do artigo 268º nº 4 da CRP.
5 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando o juízo de inconstitucionalidade feito no acórdão impugnado.
Lisboa, 3 de Maio de 2000 Artur Maurício Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa (com declaração junta)
Declaração de Voto
Ao acórdão que antecede, por si esclarecedor, permito-me apenas juntar a breve observação seguinte: a deficiência ou insuficiência constitucional nele censurada poderia também ser corrigida por outra via, a saber, admitindo-se que a 'ilegalidade' da avaliação, decorrente do exagero do valor atribuído ao prédio (erro quanto aos pressupostos de facto), fosse invocável, em todo o caso, como fundamento de impugnação judicial, já não o próprio acto de avaliação, mas do acto 'final' de liquidação da sisa. Foi isso mesmo, aliás, que aventei noutra oportunidade, em lugar citado no precedente aresto. A verdade, porém, é que, configurando já a lei esse acto de avaliação, na hipótese, como um 'acto destacável' - só que limitando o âmbito da sua impugnabilidade contenciosa - acaba por ser mais lógico que a insuficiência constitucional em causa, resultante dessa mesma restrição do âmbito da impugnabilidade, seja corrigida mantendo o acto tal natureza (de acto
'destacável'), e no quadro dela.
José Manuel Cardoso da Costa