Imprimir acórdão
Proc. nº 365/92
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. A CÂMARA MUNICIPAL DO BOMBARRAL recorreu para a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo dos despachos do Secretário de Estado da Energia e do Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território que fixaram em 29.044.802$60 o montante da sua dívida à E.D.P. (Electricidade de Portugal, E.P.), e também do despacho deste último Secretário de Estado, que ordenou a retenção de verbas destinadas à recorrente, e a respectiva transferência para a E.D.P., para pagamento daquela dívida.
Invocou, para tanto, os vícios de violação de lei, de forma e de usurpação de poder - no âmbito do qual suscitou a inconstitucionalidade da norma ao abrigo da qual os despachos foram proferidos, constante do nº 4 do artigo 5º do
Decreto-Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril, por violação do princípio da reserva de juiz -, pedindo a declaração de nulidade ou anulação daqueles despachos.
2. Por despacho, que transitou em julgado, de 1 de Março de 1990, o recurso quanto ao último despacho citado foi rejeitado liminarmente, por ser irrecorrível contenciosamente, prosseguindo o recurso apenas quanto ao despacho conjunto do Secretário de Estado da Energia e do Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território.
Foi ainda citada a EDP, para intervir no processo, como interessada.
Foram produzidas alegações pela recorrente, a qual continuou a suscitar a questão de inconstitucionalidade da norma constante do nº 4 do artigo
5º do Decreto-Lei nº 103-B/89, e pelos recorridos.
3. Por acórdão de 30 de Abril de 1992, o STA julgou o recurso procedente relativamente ao vício de usurpação de poder, tendo, para tanto, julgado inconstitucional aquela norma constante do artigo 5º, nº 4, do Decreto-Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril, por violação do disposto nos artigos 205º e 206º da Constituição
(redacção anterior à revisão constitucional de 1989), enquanto confere ao Governo poderes que, por representarem o exercício da função jurisdicional, estão reservados aos tribunais.
Assim, pode ler-se nesse aresto:
'No caso em apreço, pela norma em causa, permite-se que o Governo, através dos Ministérios do Planeamento e da Administração do Território e da Indús-tria e Energia, como terceira entidade, derima um conflito de interesses, tendo subjacente uma questão jurídica que apenas respeita a pessoas colectivas públicas distintas: a EDP e um município. E de tal sorte que, se fixar como no caso ocorreu, o quantitativo que decida ter o município de débito para com a EDP, tal decisão será executada pelo próprio Governo, em proveito da EDP, através dos Ministérios das Finanças e do Planeamento e da Administração do Território, retendo para o efeito verbas que constituem receitas do município, como sejam as resultantes do produto da cobrança da sisa e de uma participação no Fundo de Equilíbrio Financeiro.
Procedendo desse modo, a Adminis- tração substitui por decisão sua a «sentença judicial transitada em julgado» que, nos termos do art. 17 da Lei das Finanças Locais - Lei 1/87, de 6 de Janeiro -, é aí considerado o título definidor das dívidas dos municípios às entidades não financeiras do sector público e com base no qual «pode ser deduzida uma parcela às suas transferências correntes e de capital, até ao limite de 15%».
Pelos despachos impugnados, como se disse no acórdão desta secção de
12.3.91, rec. 27.994, que temos seguido de perto e que concluiu pela inconsti-tucionalidade material das normas dos nºs 1º e 3º do art.º 4º do DL nº
103-B/89, de 4 de Abril, «não se procura a solução mais adequada para assegurar o funcionamento regular e contínuo de um serviço público essencial, o da distri-buição da energia eléctrica, que então se integraria no exercício da função administrativa (artº 202º, alíneas d) e g) da CRP). Diversamente, pretende-se que o Governo actue como terceiro imparcial para resolver um conflito, dizendo o que é o direito. Pede-se-lhe que declare a existência de uma dívida e ordene, pela via da retenção de verbas, a respectiva cobrança, para reposição da paz jurídica. ... Mas essa missão respeita, em conformidade com o atrás exposto, ao exercício da função jurisdicional, hoje constitucionalmente reservada aos tribunais». Como se disse no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 98/88, publicado no DR, II série, de 22.8., pág. 7640 e BMJ, nº 276, p. 306 «Aí, pois, têm os tribunais de ter, não apenas a última palavra, mas a primeira palavra - não sendo lícito ao legislador devolver a prática dos correspondentes actos para outros órgãos da Administração Pública
(ou seja, para o exercício da função em causa uma «via administra-tiva»)».
Pelo exposto, por violação do princípio da reserva da função jurisdi-cional aos tribunais, decorrente dos artºs 205º e 206º da CRP, na redacção anterior à 2ª revisão constitucional (correspondente aos nºs 1 e 2 do art. 205, na redacção da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho) e, tendo em conta o que se dispõe nos arts. 207 da CRP e 4º, nº 3 do ETAF, recusa-se a aplicação da norma contida no nºs 4 do artº 5º do DL nº 102-B/89, de 4 de Abril, na parte em que permite, por aceitação expressa do montante proposto nos termos e pela Comissão referidos nos nºs 1, 2 e 3 do artº 5º desse Diploma fixar o quantita-tivo da dívida dos municípios à Elec-tricidade de Portrugal, EP, reportada a
31 de Dezembro de 1988, com os efeitos referidos no nº 5 do artº 5º do citado Diploma. Assim, não têm base legal os despachos, que ora são objecto do presente recurso, os quais traduzindo o exercício da função jurisdicional, estão incluídos nas atribuições dos tribunais, sendo, portanto, estranhos às atribuições da Administração Pública, pelo que estão feridos de nulidade, invocável a todo o tempo (Nºs 1º, alínea a) e 2º do DL nº 100/84, de 29.3, onde se contêm aflorações desse princípio geral).
4. Desta decisão recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Constituição, para apreciação da questão de inconstitucionalidade de recusa de aplicação da norma do artigo 5º, nº 4, do Decreto-Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril.
Já neste Tribunal, nas alegações aqui apresen-tadas, o Ministério Público entendeu que a norma em causa não é inconstitucional.
Considerou, nomeadamente, que
A primeira conclusão que se nos impõe é a de que o Decreto-Lei 103-B/89 versa sobre matéria onde se debatem interesses públicos: o interesse público do regular o contínuo fornecimento de energia eléctrica, encarado como satisfação directa de uma necessidade básica e como instrumento de viabilização de outras necessidades fundamentais; o interesse público de que tal fornecimento se faça em condições de igualdade para todos os consumidores, evitando-se que do tratamento preferencial de uns resulte um aumento de encargos para outros.
A segunda conclusão diz respeito à natureza da comissão de avaliação dos débitos. Trata-se, em nosso entender, de uma entidade com composição e funções marcadamente técnicas e cuja actividade se insere numa fase marcadamente adminis-trativa. O relatório e o parecer da comissão sobre o montante em dívida têm uma dupla finalidade: por um lado, desenvolvem o processo negocial em curso entre o município e a EDP e, nesta medida, buscam ainda a obtenção de acordo entre ambos; por outro, e na falta de acordo, a intervenção da comissão é um elemento constitutivo do processo deci-sório administrativo que conduz à fixação, por acto administrativo, do montante da dívida, enquanto pressuposto necessário da aplicação do regime de retenção e transferência de verbas.
A terceira conclusão diz respeito à natureza da intervenção governamental ao abrigo da norma desaplicada - a decisão conjunta dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, ao aceitar, para efeitos da fixação do quantitativo referido no artigo 3º do Decreto-Lei nº 103-B/89, o montante proposto pela comissão, está a prosseguir a satisfação do já referido interesse público do regular e contínuo forne-cimento de energia eléctrica em condições de igualdade para todos os consumidores; pode
é afirmar-se que a satisfação do interesse público passa pela composição (ainda que em termos não definitivos) do litígio entre o município e a EDP quanto ao quantitativo em dívida. Mas, a decisão ministerial, ao homologar o montante alcançado pela comissão, não tem em vista a resolução de uma questão de direito, antes se destina a, na prossecução de um interesse público, viabilizar a aplicação do regime de retenção e transferência de verbas previsto no Decreto-Lei nº 103-B/89. Em suma, não se está a dirimir um litígio nem a fixar autoritáriamente o montante dos débitos pois nada obsta (nada obstou) ao recurso
à jurisdição administrativa para questionar a decisão ministerial que aceitou o montante proposto pela comissão.
[...]
Em suma, a intervenção governa-mental prevista na norma impugnada constitui uma exteriorização da função administrativa pois tem em vista a satisfação de interesses públicos que ao Governo compete defender e prosseguir. A intervenção reflexa no litígio entre o município e a EDP é uma consequência da satisfação do interesse público, inexis-tindo, por isso, violação da reserva de poder judicial consagrada nos artigos 205º e 206º da Constituição, na versão anterior à 2ª revisão consti-tucional, correspondentes, na versão actual, aos nºs 1 e 2 do artigo 205º.'
A Câmara recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do acórdão do S.T.A.
Nem os Secretários de Estado recorridos nem a EDP apresentaram alegações.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. A norma em causa é a seguinte:
4 - No prazo de quinze dias após a apresentação do relatório referido no número anterior, por decisão conjunta dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, pode ser expressamente aceite, para efitos de fixação do quantitativo referido no artigo 3º, o montante proposto pela comissão.
6. No seu Acórdão nº 260/98 (Diário da República, I série-A, de 31 de Março de 1998), este Tribunal apreciou as normas contidas no artigo 4º, nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril, tendo declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das mesmas, por violação do disposto no artigo 242º, nº 1 da Constituição.
O Tribunal não apreciou então a questão da violação por aquelas normas do princípio da reserva de juiz.
E, embora nos presentes autos não estejam em causa as normas cuja inconstitucionalidade foi declarada com força obrigatória geral por aquele Acórdão, verifica-se todavia uma clara indissolubilidade entre essas normas.
Com efeito, dispõe o artigo 4º do Decreto-Lei nº 103-B/89 que «os Ministérios das Finanças e do Planeamento e da Administração do Território procederão, respectivamente, à retenção de verbas» nos termos e dentro dos limites aí determinados (nºs 1 e 3), sendo os municípios informados por aqueles Ministérios da retenção assim efectuada (nº 2) e aquelas verbas «transferidas mensalmente para a EDP» (nº 4), estabelecendo ainda o nº 5 a incidência e repartição da retenção em causa.
Como também se salientou no citado Acórdão nº 260/98, a determinação do quantitativo objecto da aludida retenção é feita «em alternativa pelo valor referido no nº 1 do artigo 2º ou pelo valor fixado nos termos do nº 4 do artigo
5º», estando assim aquelas disposições interligadas.
Com efeito, o artigo 5º prevê uma das formas de determinação do montante das dívidas, no caso de desacordo entre as partes (Câmra e EDP), através da constituição de uma comissão de avaliação de débitos. O resultado da avaliação efectuada por essa comissão, pela forma prevista no citado artigo 5º, constituirá então, após aceite por decisão conjunta dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, «a fixação do quantitativo» da dívida em causa, ou seja, do montante a reter pela forma prescrita no artigo 4º.
Pois bem, independentemente da apreciação da questão suscitada de violação de reserva de juiz, resulta claro que, sendo a aplicação daquelas disposições indissociáveis, nomeadamente porque a previsão do artigo 5º é pressuposto da aplicação do previsto, por sua vez, no artigo 4º, por se referir a uma das formas de determinação dos débitos a reter nos termos desta última disposição, e tendo esta sido declararda inconstitucional, com força obrigatória geral, terá como consequência a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 5º, dada a manifesta indissolubilidade das questões em causa.
Ou seja, aquela declaração de inconstitu-cionalidade comunica-se, de forma consequencial e necessária, à norma dos nºs 4 e 5 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril.
III - DECISÃO
7. Nestes termos, decide-se:
a) julgar consequencialmente inconstitucional a norma constante do nº 4 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 103-B/89, de 4 de Abril;
b) negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no tocante à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 17 de Junho de 1998 Luis Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa