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Processo n.º 688/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares de Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. - E... e mulher, A..., instauraram, em 3 de Junho de 1996, acção de despejo contra L... e mulher, I..., pedindo a resolução do contrato de arrendamento que haviam celebrado com o primeiro réu, referente ao imóvel identificado nos autos, alegando que os réus não vivem no locado há mais de 3 anos e que cederam o seu uso a LJ..., que o ocupa desde a saída dos réus.
Estes não contestaram, mas requereram a intervenção principal de LJ..., invocando ser esta quem habita o locado desde 1982, data em que o réu L... rompeu a comunhão de vida que mantinha com esta e deixou o local arrendado.
Porém, antes de o tribunal ter oportunidade de se pronunciar sobre a admissibilidade da requerida intervenção, a referida LJ... deduziu incidente de intervenção principal espontânea, alegando ter vivido maritalmente com o réu L... no local arrendado desde 1974 até 1985, e que, a partir desta última data, quando o seu companheiro rompeu a comunhão de vida com a interveniente, continuou esta a residir no locado. Considerou ainda a interveniente que o demandado deferiu o direito ao arrendamento, que se lhe deve considerar transmitido por aplicação analógica da norma do artigo 84º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro
(doravante designado RAU), e, com este fundamento, deduziu reconvenção pedindo a condenação dos autores a reconhecerem-na como inquilina, por transmissão do arrendamento.
O tribunal não admitiu a requerida intervenção principal e, conhecendo do mérito da causa no saneador, julgou a acção procedente, decretando o despejo.
Desta decisão recorreram os réus, por entenderem que os autos não continham todos os elementos indispensáveis para uma decisão sobre o mérito da causa, e a interveniente, considerando que em virtude de ter vivido em união de facto com o arrendatário se lhe devia considerar transmitido o arrendamento, aplicando-se a esta situação por analogia o disposto no artigo
84º, n.º1, do RAU, e que, não tendo sido decidido deste modo houve violação do artigo 36º, n.º1 da Constituição.
Assim não entendeu a Relação que, por acórdão, de 23 de Abril de 1998, negou provimento aos recursos, tendo por fundamento a argumentação que coligiu nas seguintes conclusões:
'I - A disposição a que alude o artigo 84º do RAU é norma excepcional sendo, portanto, inadmissível a sua aplicação analógica designadamente à situação decorrente da cessação de união de facto por se ter casado com outra mulher o companheiro – homem, arrendatário, por isso deixando de viver no prédio arrendado onde continuou a permanecer a mulher com quem até então tinha vivido more uxorio. II - O reconhecimento de determinados efeitos jurídicos à união de facto não significa que haja equiparação entre casamento e união de facto, pois tanto no plano ético, como social e jurídico as realidades são diversas. III - A lei não tutela situações decorrentes da cessação da união de facto quando a ruptura foi fruto da livre vontade de algum ou de ambos os companheiros.'
Inconformada com esta decisão veio a interveniente
«interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto pelo artigo 70º, n.º1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Nov., por se ter recusado a aplicação do disposto pelo Artº 84º do R.A.U., em violação do disposto pelo Art.
36º, n.º1 da Constituição da República ...».
Neste tribunal, o relator proferiu o despacho de fls.
143, no qual «considerando que a recusa de aplicação da norma do artigo 84º do R.A.U. consubstancia - segundo tudo leva a crer, neste momento - um problema de interpretação normativa - integrável na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional», determinou a notificação para alegações.
A recorrente apresentou as alegações que constam de fls.
144 a 156, que sintetiza com as seguintes conclusões:
'I - A ora Recorrente e o R. L... viveram em união de facto no locado, por cerca de onze anos consecutivos – e para ambos o R. L... tendo outorgado o arrendamento. II - E vieram para o locado na sequência da vida marital em comum, por cerca de vinte anos, em Lisboa. III- Com efeito, e no total, a ora Recorrente e o L... viveram em comunhão de vida, vivendo na mesma casa, comendo e dormindo juntos, por cerca de trinta anos. IV - Geriam em comum, e no interesse de ambos, os respectivos ordenados. V - Os senhorios tinham exacto conhecimento dessa vida em comum de ambos. VI - Em 1985, o R. L... deixou a casa, separando-se da ora Recorrente, e a ela deferiu o direito ao arrendamento. VII– Também disso mesmo o Senhorios tiveram pronto e cabal conhecimento. VIII- O direito ao arrendamento do ajuizado terceiro andar deve considerar-se deferido à ora Recorrente, nos termos do disposto pelo Art. 1110º, n.º 2 do C.C. e, agora, Artº 84º, n.º 1 do RAU, aplicados analogicamente, por força também do disposto pelo Artº 64º, n.º 2, al. c) do mesmo diploma. Para tanto, IX - Deve ser admitida a requerida intervenção principal, com todas as consequências. X - Assim não tendo decidido o Tribunal recorrido, violou esse dispositivo legal e o Art. 36º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.'
Os recorridos não contra-alegaram.
2. - No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, fundamentado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, afirma a recorrente ter-se recusado a aplicação da norma do artigo 84º do RAU, em violação do artigo 36º, n.º 1, da Constituição - tal como, diz-se, anteriormente se suscitou, seja no requerimento de intervenção principal que apresentou, seja nas alegações para o Tribunal da Relação. Na verdade, transparece, no pedido de intervenção principal, a convocação daquele artigo 84º por aplicação analógica, 'como melhor dispõe o douto acórdão do Tribunal Constitucional de 9 de Julho de 1991, que declarou inconstitucional o assento do STJ de 23 de Abril de 1987'. A uma primeira leitura parecia, assim, desenhar-se o inconformismo da recorrente tendo por base uma questão de interpretação normativa. No entanto, considerando, designadamente, as alegações apresentadas, passou a configurar-se a hipótese do não conhecimento do objecto do recurso, não estando em causa o controlo normativo de constitucionalidade da norma do artigo 84º citado – na medida em que não se considerou a mesma aplicável analogicamente às uniões de facto – mas sim a impugnação da própria decisão judicial, em si considerada. Deste modo, ouviu-se a recorrente, a qual, em resposta, manifesta a sua convicção no sentido da correcta configuração do objecto do recurso, afirmando, como consta de folhas 161, que 'o objecto do recurso é exactamente a sindicância da desaplicação da norma' (do artigo 84º do R.A.U.) 'por fazer o julgador uma interpretação restritiva do preceito e nessa medida violadora do texto constitucional' (artigo 36º n.º1), concluindo estar convicta de que 'o objecto do seu recurso está correctamente configurado, designadamente por cumprir com o requisito enunciado pela alínea a) do artigo 70º/1 da Lei 28/82'. Cumpre decidir.
II
Constitui jurisprudência reiterada, impressiva e uniforme do Tribunal Constitucional que os recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da sua Lei Orgânica, como é o caso dos presentes autos, só são admissíveis se congregarem necessariamente alguns pressupostos, um dos quais consiste na suscitação da questão de constitucionalidade pelo recorrente durante o processo e o que subentende a aplicação da norma impugnada como ratio decidendi, pela decisão recorrida. Desde logo, o recurso de constitucionalidade não visa a apreciação de constitucionalidade de uma decisão judicial qua tale, reportando-se o sistema de fiscalização a normas jurídicas, como é pacífico: não se discute a constitucionalidade da decisão, uma vez que só interessa para o julgamento da causa o juízo que na decisão se contenha sobre a constitucionalidade da norma.
No caso dos autos, como já se deixou antever, a recorrente não suscitou, na verdade, uma questão de constitucionalidade normativa, antes o seu inconformismo reside no facto de a decisão recorrida não ter aplicado analogicamente a norma do artigo 84º do R.A.U., que ela recorrente entende dever ser aplicada à sua situação face à matéria de facto que descreve nas conclusões da alegação de recurso, primeiro, para a Relação e, depois, para o Tribunal Constitucional.
Com efeito, tanto a estrutura como o teor das alegações da recorrente neste tribunal, maxime das conclusões, visam sindicar a decisão recorrida - a recorrente dedica as sete primeiras conclusões a descrever a matéria de facto, a oitava ao enquadramento jurídico que reclama para o seu caso, a nona a pedir o deferimento da sua pretensão, que já havia formulado na
1ª instância (ser deferido o pedido de intervenção principal) e termina afirmando que o tribunal, assim não tendo decidido, violou o artigo 36º, n.º1 da Constituição.
Deste modo, ainda que inicialmente se tenha considerado que a alegada 'recusa de aplicação' da norma do artigo 84º do R.A.U. consubstanciava, em face do requerimento de interposição de recurso, um problema de interpretação normativa - integrável na alínea b) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 - constata-se, agora, pelo teor das conclusões formuladas em sede de alegações, acima transcritas, que - a ter sido assim -, o recorrente abandonou a questão de constitucionalidade normativa, passando a sindicar a própria decisão - imputando-lhe o vício de inconstitucionalidade -, e não o juízo que nesta se contenha sobre a constitucionalidade da norma.
Ora, conforme vem sendo reafirmado por este Tribunal, o requerimento de interposição de recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (cfr. artigo 684º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o nº 1 do artigo
75º-A desta Lei), sem prejuízo de esse objecto, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões das alegações (cfr. citado artigo 684º, nº 3). O que a recorrente não pode fazer é nas alegações (recte, nas suas conclusões) ampliar o objecto do recurso antes definido (neste sentido, cfr. acórdãos nºs. 71/92,
323/93, 10/95, 35/96, 379/96 e 20/97, publicados na II Série do Diário da República, de 18/8/92, 22/10/92, 22/3/95, 2/5/96, 15/7/96 e 1/3/97, respectivamente).
Assim, se a recorrente abandona nas alegações a questão de constitucionalidade relativamente a uma ou algumas das normas indicadas no requerimento de interposição, passando a sindicar a própria decisão – que, como se disse, não cabe no âmbito do recurso de constitucionalidade -, deixa de poder conhecer-se do recurso relativamente a essas normas, e, se a questão normativa agora 'abandonada' era a única suscitada no requerimento de interposição, como sucedeu no caso dos autos, o recurso perdeu o seu objecto.
III
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso. Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário. Lisboa, 17 de Maio de 2000 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida