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Proc. nº 393/97
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., solteira, vendedora ambulante, foi detida juntamente com um filho, em Lisboa, pela Polícia de Segurança Pública, em 26 de Julho de 1996, na sequência do cumprimento de um mandado de busca à sua residência e por terem sido encontradas aí produtos estupefacientes. Presente ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa no dia seguinte, promoveu a Magistrada do Ministério Público que a detida fosse restituída à liberdade, por não resultar indiciada, com segurança, a participação dela na prática dos factos criminosos participados. Por despacho judicial da mesma data foi determinado que a arguida fosse restituída à liberdade, ficando sujeita apenas à prestação de termo de identidade e residência (cópia do despacho a fls. 70 e 71 dos presentes autos), mantendo-se em prisão preventiva o outro arguido.
Encerrado o inquérito, veio o Ministério Público deduzir acusação contra a arguida A., seu filho e mais dois co-arguidos, imputando aos quatro um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art. 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro. Foi acusado ainda o filho da arguida da prática do crime de detenção de arma proibida.
Em 22 de Janeiro de 1997, o agente do Ministério Público promoveu que os três arguidos em liberdade aguardassem os ulteriores trâmites processuais em prisão preventiva. Distribuído o processo à 6ª Vara Criminal de Lisboa, foi marcada data para julgamento e ordenada nesse despacho a prisão preventiva da arguida A. e dos outros dois co-arguidos. Todavia, apenas foram presos os dois co-arguidos, não tendo sido localizada a arguida, nem notificada da data de julgamento.
Adiado de novo o julgamento, veio depois a ser localizada a arguida, sendo detida e recolhendo a estabelecimento prisional em 6 de Maio de 1997.
Em 20 de Maio de 1997, a arguida A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho que ordenou a prisão preventiva, suscitando na motivação a questão da inconstitucionalidade das normas dos arts. 61º, nº 1, alínea b), 202º, 203º, 204º, alínea b), e 193º, nº 2, do Código de Processo Penal, tal como tinham sido interpretadas naquele despacho.
Na pendência deste recurso, foi proferido acórdão condenatório da arguida, tendo-lhe sido aplicada a pena de prisão de seis anos e seis meses
(acórdão de 27 de Maio de 1997, certificado a fls. 329 a 344 dos presentes autos). Deste acórdão interpôs a mesma arguida recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em 12 de Junho de 1997, tendo apresentado a respectiva motivação. Este recurso foi admitido por despacho certificado a fls. 371. Nesse despacho determinou-se manutenção da situação da arguida no tocante à medida de coacção a que se encontrava sujeita, por não se terem alterado os fundamentos que a justificaram. Notificado o mesmo à recorrente, dele não interpôs recurso.
Através de acórdão proferido em 15 de Julho de 1997, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso do despacho que ordenou a prisão preventiva da arguida A..
Inconformada com este acórdão, a arguida interpôs recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, indicando que, no despacho recorrido, ao ser ordenada a prisão da recorrente, se havia feito uma interpretação inconstitucional dos arts. 61º, nº 1, alínea b), 202º, 203º, 204º, alínea b), e 193º, nº 2, do Código de Processo Penal.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 415.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
A recorrente apresentou alegações onde formulou as seguintes conclusões:
'1. Ao ordenar, do modo como ordenou (sem respeitar o comando do art. 61º nº 1 alínea b) do CPP) a prisão da recorrente, o Mº Juiz «a quo» fez, com o devido respeito, interpretação claramente restritiva e «contra legem» do mencionado preceito. No caso concreto, tal interpretação mostra-se também claramente inconstitucional, por violação do disposto no art. 32º nº 1 da Lei Fundamental e, ainda assim, por violação dos arts. 27º nº 1 e 32º nº 2 da Constituição. Na verdade, no caso dos autos, a estipulada «presunção de inocência» deu lugar a uma verdadeira, ilegal e notoriamente inconstitucional «presunção de culpa», pois de outro modo se não pode conceber a ordenada prisão da recorrente, a quem um outro Magistrado apenas havia sujeito, meses antes, à prestação de simples T.I.R.
2. O Mº Juiz recorrido, ao ordenar, como ordenou, a prisão da recorrente, fez uma clara aplicação/interpretação inconstitucional do disposto no art. 202º do CPP. Como se sabe, tal norma apenas possibilita ao Mº Juiz lançar mão da prisão preventiva se, «in casu», considerar inadequadas ou insuficientes qualquer uma das outras medidas de coacção. Ora, como bem se vê do teor do douto despacho então prolatado, nem sequer se justifica a prisão da recorrente com a eventual inadequação ou insuficiência de outra das medidas de coacção elencadas no CPP! Por isso dizemos ter sido violado o comando do art. 28º nº 2 da Lei Fundamental e por isso também se entende que a interpretação da instância viola o disposto nos arts. 13º, 27º, nº 1, 2 e 3, 32º, nº 1 e 2 da Constituição da República.
3. O sintético despacho judicial ora em crise que lestamente decretou a necessidade de cadeia para a arguida (mãe com seis filhos a cargo) mostra-se claramente inconstitucional por ter operado interpretação inconstitucional dos arts. 203º e 204º do CPP. Na verdade, como os autos espelham, com brilho ofuscante, a recorrente jamais violou qualquer obrigação, pela simples e comezinha razão de que após o primeiro interrogatório judicial, não foi sujeita a outra medida de coacção que não o TIR! Violada foi pois a norma contida no art. 32º nº 1 e 2 da Constituição da República ao se presumir «tout court» a culpabilidade da recorrente, sem sequer se averiguar «in casu» da existência de algum dos requisitos contidos no art. 204º do CPP!' (a fls. 452-453 dos autos)
O Ministério Público, por seu turno, formulou na sua resposta as seguintes conclusões:
'1º- Estando em causa no presente recurso a apreciação da constitucionalidade de normas aplicadas no despacho judicial que, no momento em que se designou dia para julgamento determinou a prisão preventiva da arguida, carece o mesmo de utilidade pelo facto de, entretanto, a arguida já haver sido julgada e ter sido proferido, após prolação do acórdão condenatório, um novo e autónomo despacho, determinando que a mesma aguardasse os ulteriores termos em processo de prisão preventiva.
2º- A regra do contraditório, aflorada no artigo 61º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, tem de ser compaginada, no que se refere à aplicação de medidas de coacção de natureza provisória e cautelar, com o preceituado no nº 2 do artigo 194º, segundo o qual o respectivo decretamento poderá não ser precedido do contraditório do arguido, quando tal não for possível ou conveniente.
3º- Não constitui interpretação inconstitucional de tais normas o facto de o juiz, no caso dos autos, ter optado por dispensar tal contraditório prévio, já que os riscos de continuação da actividade criminosa que conduziram à prisão preventiva da arguida, na fase de julgamento, poderiam implicar a frustração daquela medida cautelar, se a mesma tivesse sido antecipadamente anunciada à arguida.
4º- Não constitui interpretação inconstitucional do preceituado nos artigos
193º, nº 2, e 202º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal a circunstância da arguida a quem vinha imputado o cometimento do crime de tráfico de estupefacientes, punido com a pena máxima de 12 anos de prisão, [ter sido sujeita a prisão preventiva] com fundamento na existência, em concreto, do sério risco de continuação da actividade criminosa.
5º- Termos em que deverá improceder o presente recurso, no caso de se considerar que a apreciação do mesmo conserva ainda algum interesse residual.' (a fls. 445 a 447)
Face à suscitação da questão prévia da inutilidade superveniente do recurso de constitucionalidade, foi ordenada a notificação para se pronunciar sobre a mesma. Decorrido o prazo legal, nada veio dizer aos autos.
3. Foram dispensados os vistos.
Importa, assim, apreciar a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
II
4. Como resulta do atrás referido, a ora recorrente foi detida, na sequência de uma busca ao seu domicílio, mas veio a ser restituída à liberdade, quando apresentada ao juiz de instrução, por falta de suficientes indícios de prática do acto criminoso. Concluído o inquérito e face à acusação contra ela deduzida, o Ministério Público promoveu que lhe fosse aplicada a medida de coacção prisão preventiva, o que veio a ser deferido no despacho de marcação do julgamento. Depois de presa, e em tempo, a arguida impugnou por recurso o despacho ordenatório desta medida de coacção. Passados escassos dias foi condenada por acórdão do tribunal criminal competente e, tendo interposto recurso desta decisão final, não reagiu, através de recurso, contra o despacho que reapreciou a medida de coacção que lhe fora imposta e a manteve.
Face a esta situação sustenta o Ministério Público que carece de utilidade a apreciação do presente recurso, visto que o despacho impugnado através desse recurso se acha 'consumido' por ulterior despacho, não impugnado pela arguida.
Assistirá razão ao Ministério Público, quando suscita esta questão prévia?
5. Desde o acórdão nº 90/84 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., págs. 267 e seguintes) está firmado o entendimento jurisprudencial de que, em casos de detenção ou prisão preventiva, mantém interesse o recurso de constitucionalidade interposto da decisão ordenatória de privação da liberdade, ainda que no subsequente desenrolar do processo de extradição ou criminal se venha a confirmar ou modificar essa medida de privação de liberdade. Como se escreveu nesse acórdão, existindo o direito fundamental a pedir uma indemnização contra o Estado em caso de prisão ilegal (art. 27º, nº 5, da Constituição), se o Tribunal Constitucional viesse a abster-se de conhecer do recurso, por considerar este inútil, 'estaria afinal a precludir o exercício pelo recorrente [...] do direito que lhe é reconhecido por aquele preceito constitucional'.
Importa, por isso, analisar se existe algum 'interesse residual' no conhecimento do presente recurso, utilizando a formulação constante das alegações do Ministério Público.
Ora, encarada a situação dos autos, não são claramente aplicáveis os fundamentos daquela jurisprudência ao presente recurso.
Com efeito, o Código de Processo Penal impõe o reexame oficioso da subsistência dos pressupostos da medida de coacção prisão preventiva em prazos curtos, podendo o juiz determinar a manutenção, substituição ou revogação da própria medida (art. 213º, nº 1). Por outro lado, de todas as decisões que aplicarem ou mantiverem medidas de coacção cabe recurso, a julgar no prazo máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos foram recebidos (art.
219º). Com estas soluções, 'o legislador pretendeu acentuar que as medidas aplicadas não devem manter-se para além do necessário e, por isso, disciplinar a reapreciação da situação dos arguidos sujeitos a medida de coacção, impondo-a periodicamente nos casos mais graves e permitindo-a sempre, quer oficiosamente, quer a requerimento' (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág. 252).
No caso sub judicio, a recorrente impugnou o despacho ordenatório da prisão preventiva em 20 de Maio de 1997, foi condenada a pena de prisão por acórdão de 27 do mesmo mês e ano, mas não impugnou o despacho que manteve essa medida de coacção em 12 de Junho de 1997.
Resulta daqui que a recorrente renunciou ao seu direito de impugnação do novo despacho, abstendo-se de interpor recurso em tempo, embora não tivesse desistido do presente recurso, alegando mesmo após a última data indicada.
Na presente situação não pode, por isso, deixar de considerar-se que a ora recorrente se acabou por conformar com a medida de coacção que foi mantida após a condenação em primeira instância, não se vendo que interesse prático atendível poderá justificar a prossecução do presente recurso quanto a uma decisão que já foi 'consumida' por decisão judicial subsequente não impugnada de forma autónoma, não podendo de forma plausível supor-se que a arguida pretende ainda exercer qualquer direito de indemnização contra o Estado por força da prisão preventiva que lhe foi aplicada após a remessa dos autos ao tribunal criminal competente, dada a aceitação da ulterior manutenção da mesma medida de coacção, isto é, quando mostrou que não o pretende fazer a partir do momento em que foi condenada em primeira instância, não obstante não se ter conformado com a decisão condenatória. A falta de resposta à questão prévia suscitada é igualmente coerente com o referido comportamento processual.
6. Procede, assim, a questão prévia suscitada.
III
7. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide o Tribunal Constitucional conceder atendimento à questão prévia suscitada, julgando extinto o presente recurso, por inutilidade superveniente.
Lisboa, 23 de Dezembro de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa