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Processo n.º 251/14
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos vem A. reclamar da não admissão no Tribunal da Relação de Lisboa, com fundamento em extemporaneidade, do recurso de constitucionalidade que, com base no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida simplesmente como “LTC”) interpôs do acórdão proferido por aquele tribunal em 28 de novembro de 2013. Neste último foi apreciado um recurso interposto pelo Ministério Público da decisão de primeira instância pela qual o arguido, ora reclamante, fora condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de dois anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova. Em resultado de tal apreciação, foi decidido agravar uma das penas parcelares e não suspender a execução da pena única, nos seguintes termos:
«1. Concedendo provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público [revoga-se] a decisão recorrida condenando o arguido A. pela prática, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. art.º 21.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 15/93 de 22.01 com referência à tabela I-C, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; e em cúmulo jurídico com a pena de 6 meses de prisão respeitante ao crime de detenção de arma proibida, condenam o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão.»
Com o recurso de constitucionalidade pretende o ora reclamante ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, conforme do teor do respetivo requerimento de interposição de recurso:
«[Foi] declarada efetiva, a pena de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, por decisão de 28 de Novembro de 2013, e por entender que a vedação de recurso à matéria de direito para instância superior, está ferida de inconstitucionalidade.
[….]
2.º
Foi o ora recorrente condenado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em pena de prisão efetiva, que alterou a decisão de suspensão de pena, aplicada em 1.ª instância.
3.º
Por considerar justa a pena aplicada em 1.ª instância, aceitando-a, não contestou a decisão objeto de recurso por parte da Digníssima Procuradora, que promoveu a prisão efetiva.
4.º
Vê-se agora privado, de solicitar a reapreciação pelo Doutíssimo Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que a pena ora aplicada de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, é inferior aos cinco de mínimo exigidos, pelo disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 432.º do Código de Processo Penal.
5.º
A referida norma, impede-o de, expondo as suas razões lógicas e legítimas à matéria de direito, não beneficiar da justíssima suspensão de pena, em que foi condenado.
6.º
Este preceito legal, salvo o devido respeito e melhor opinião, está ferido de inconstitucionalidade, pois vai de encontro ao espírito do n.º 1 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa, em que se afirma, que “o processo penal, assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
7.º
E a mesma norma fere os princípios de igualdade perante a Lei, pois faz a distinção entre as possibilidades jurisdicionais de apelo a Instâncias Superiores, fazendo depender do cômputo da pena o recurso para o S.T.J.
[...]
Assim sendo, vem solicitar a V. Exªs, se digne declarar inconstitucional o referido nº1 do artº32º da Constituição da República Portuguesa, com todas as consequências legais daí decorrentes, facultando ao ora recorrente, a possibilidade de apelar à matéria de direito para o Doutíssimo S.T.J.»
2. Por despacho de 27 de janeiro de 2014, decidiu o relator no Tribunal da Relação de Lisboa não admitir o recurso de constitucionalidade, pelas razões seguintes:
« O acórdão proferido nesta Relação é de 28 de novembro de 2013, tendo sido notificado por carta de 29 de novembro, considerando-se o mandatário do arguido notificado no 3.º dia útil posterior ao envio.
O requerimento de interposição de recurso para o T.C. data de 13 de janeiro de 2014 (vd fls 2128 [a que corresponde fls. 78 da presente reclamação], sendo certo que o prazo para recorrer é de 10 dias (vd artº 75.º da Lei do Tribunal Constitucional).
Pelo exposto, encontra-se manifestamente excedido o prazo para recorrer, pelo que não admito o recurso interposto nos termos do disposto no art.º 76.º n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional […].»
3. Na reclamação do despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade, o ora reclamante invocou que:
«2.º
O requerimento deu entrada, em 13 de janeiro último, vindo a sofrer despacho de não admissão, proferido em 23 de janeiro do mesmo mês.
3.º
Acontece, porém, que à data de interposição do recurso para esse Altíssimo tribunal, ainda se encontrava em decurso o prazo de trinta dias, para o Douto Supremo Tribunal de Justiça, pelo que a decisão proferida no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, não se encontrava transitada.
4.º
Podendo ou não recorrer para o S.T.J., o prazo para tal, ainda não havia precludido, não havendo decisão de indeferimento.
5.º
E se o tivesse feito, à data de interposição de recurso para o T.C., ainda poderia fazê-lo pelo facto da decisão não haver transitado em julgado.
6.º
Assim sendo, o prazo de dez dias a que alude o artº 75º da L.T.C., só começaria a contar depois do trânsito em julgado da decisão.
7.º
E assim parece que entende o legislador, por extensão do espírito do nº 2 do artº 75º da Lei supra referida, “in fine”.»
4. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, por se verificar que o critério normativo sindicado no requerimento do recurso de constitucionalidade não constituiu ratio decidendi do acórdão recorrido.
5. Notificado o reclamante, ao abrigo do princípio do contraditório, para, querendo, se pronunciar sobre este último fundamento de não admissibilidade do recurso de constitucionalidade que interpusera, o mesmo nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. Há uma falha evidente no raciocínio do reclamante e que é indiciada pela sistemática utilização dos verbos no condicional: o recorrente poderia ter optado por interpor um recurso do acórdão da Relação de 28 de novembro de 2013 para o Supremo Tribunal de Justiça; mas factualmente não foi isso que fez, ou seja, o reclamante não recorreu.
Ora, ao omitir tal recurso, o reclamante não questionou junto do Tribunal da Relação de Lisboa o disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal (nem quaisquer outras normas de processo penal impeditivas da recorribilidade de decisões das relações para o Supremo Tribunal de Justiça). Deste modo, o tribunal recorrido limitou-se a aplicar a lei vigente, a qual não admite o recurso para o Supremo em casos como o dos autos. Na perspetiva daquele tribunal, o seu acórdão de 28 de novembro de 2013, à data em que foi apresentado o requerimento do recurso de constitucionalidade – 13 de janeiro de 2014 – já há muito que não era suscetível de recurso ordinário ou de reclamação, devendo assim considerar-se transitado em julgado (cfr. o artigo 628.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente – artigo 4.º do Código de Processo Penal).
O reclamante não pode invocar um prazo que, de acordo com a lei, não se encontra a correr e que o próprio reclamante também não pôs em causa antes de se tentar dirigir diretamente ao Tribunal Constitucional. A iniciativa recursória do ora reclamante aparece como contraditória nos seus próprios termos: assume a impossibilidade legal de recurso para o Supremo e, simultaneamente, pretende prevalecer-se do respetivo prazo. E, por isso, é aqui aplicável a seguinte jurisprudência do Tribunal Constitucional: «é entendimento reiterado deste Tribunal que a errónea e indesculpável dedução de um incidente legalmente inexistente não tem a virtualidade de interromper ou suspender o prazo de dez dias legalmente estabelecido para a interposição do recurso de constitucionalidade (cf., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 640/2011, 95/2012 e 75/2014, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, o prazo relevante de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias (cfr. a primeira parte do artigo 75.º, n.º 1, da LTC). Não há que considerar qualquer interrupção de prazo para a interposição de um recurso para o Supremo, uma vez que de acordo com a lei e os termos da atuação processual do recorrente, no caso concreto não cabe tal recurso da decisão proferida pelo Tribunal da relação de Lisboa.
Nestas circunstâncias também não se pode falar de «renúncia implícita», nomeadamente em virtude de ter deixado terminar o prazo para a interposição de um dado recurso ordinário (cfr. o artigo 70.º, n.º 4, da LTC), uma vez que inexiste o objeto de tal renúncia. Para renunciar ao recurso ordinário, deixando decorrer o respetivo prazo, é necessário que tal recurso seja legalmente admissível. Ou então, pretendendo-se questionar a inconstitucionalidade da omissão legal de tal previsão, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC – como sucedeu in casu - há que provocar a aplicação da norma legal impeditiva do recurso e suscitar a questão da respetiva inconstitucionalidade.
7. Sem prejuízo do que antecede, é igualmente procedente – e também decisiva quanto ao indeferimento da presente reclamação – a argumentação deduzida pelo Ministério Público no seu visto.
Como mencionado, o ora reclamante pretende com o recurso para o Tribunal Constitucional ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal. Ora, o acórdão recorrido, proferido pela Relação em 28 de novembro de 2013, que se limitou a apreciar o mérito do recurso, concedendo provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e condenando o arguido em pena efetiva, não aplicou, nem podia aplicar a norma indicada pelo recorrente.
Efetivamente, tendo a constitucionalidade a ver com a admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, apenas a decisão que se pronunciasse sobre a admissibilidade desse recurso, poderia aplicar tal norma. E essa decisão só poderia ser proferida se o recorrente tivesse interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e o mesmo não tivesse sido admitido, por aplicação da norma a que é imputada a inconstitucionalidade.
Não se verifica, pois, esse requisito de admissibilidade (cfr. o artigo 70.º, n.º 1, alínea b), em conjugação com o artigo 79.º-C, ambos da LTC). Consequentemente, apesar de o requerimento de interposição do recurso não conter todos os elementos legalmente exigidos - designadamente a alínea do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto – qualquer convite ao suprimento não seria suscetível de sanar tal deficiência.
Com efeito, em sede de fiscalização concreta, tratando-se de formular um juízo que tem por objeto uma norma, ou interpretação normativa, tal como foi aplicada num caso concreto, é pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão de constitucionalidade suscitada seja suscetível de produzir algum efeito sobre a decisão de que se recorre (cfr., entre muitos, os Acórdãos n.ºs 463/94, 366/96, 687/2004, 447/2012). Atento o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar a reforma dessa decisão.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 8 de abril de 2014. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.