Imprimir acórdão
Proc. n.º 618/99
1ª Secção Cons.º Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL I – RELATÓRIO
1. – M... veio constituir-se assistente no processo de inquérito que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa contra MR..., requerendo a passagem de guias para pagamento do imposto de justiça.
2. - Por despacho, de 29 de Setembro de 1998, do magistrado do Ministério Público daquela Comarca, foi determinado o arquivamento dos autos de inquérito, com fundamento no preceituado no artigo 277º, n.º1, do Código de Processo Penal (CPP).
Notificada deste despacho, M... veio requerer a abertura de instrução, o que foi deferido. Concluída a instrução, foi proferido um despacho que não pronunciou o arguido e determinou o 'oportuno arquivamento dos autos'. Seguidamente, proferiu um despacho sobre a questão da condenação do assistente em taxa de justiça no termo da instrução, do seguinte teor:
'O artº 83º n.º2 do C.C.J. impunha a condenação do assistente em taxa de justiça no final da instrução. Contudo, por se entender este Art. inconstitucional não se aplicará. Com efeito, a condenação que pode ir até 10 Ucs. da assistente ou do assistente que requereu a instrução e não obteve vencimento de causa contrasta flagrantemente e em violação do princípio da igualdade com a inexistência de qualquer condenação em taxa de justiça no final da instrução requerida pelo arguido. O assistente, tal como o arguido, que requerem a abertura de instrução têm de pagar o preparo do artigo 83º, n.º1 do CCJ. Acontece, porém, que se o arguido não for pronunciado por todos ou alguns dos crimes constantes do requerimento do assistente, o assistente é condenado na taxa prevista no artigo 515º, n.º1, al. a) do CPP e no artigo 85º, n.º3, al. e) do novo CCJ. Mas mais: para alguns, essa taxa nada tem a ver com a fixada no artigo 83º, n.º2 do CCJ e é com ela cumulável, pelo que o assistente teria de suportar ambas (assim, Salvador da Costa, Código das Custas Judiciais, 1977, p.281 e 282)! Ou seja, a sanção do assistente no caso de não pronúncia (parcial ou total) podia elevar-se a 15 Ucs, isto é, 210.000$00, e o arguido, no caso de pronuncia, não seria pura e simplesmente tributado! Tão gritante discriminação vai totalmente ao arrepio da filosofia do Código de Processo Penal, que atribui relevo especial à figura da vítima e ao exercício dos seus direitos no processo e não é minimamente justificada aos olhos da nova lei de custas movida pelo 'princípio da causalidade', isto é, as custas devem ser suportadas por quem ficou vencido na lide', como consagra o preâmbulo do novo CCJ.'
3. - É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público o presente recurso obrigatório de constitucionalidade, para apreciar a conformidade à Lei Fundamental do artigo 83º, n.º2 do Código das Custas Judiciais (CCJ).
Neste Tribunal apenas alegou o Ministério Público, que concluiu as suas alegações pela forma seguinte:
'1º - Por força do princípio constitucional das garantias de defesa, não vigora no domínio do processo penal um princípio de estrita e formal parificação de todos os sujeitos processuais, que permita formular um juízo de inconstitucionalidade, com base na violação do princípio da igualdade, relativamente a todos os regimes adjectivos que comportem um tratamento diferenciado (e aparentemente mais favorável) para o arguido.
2º - Não viola os princípios da igualdade e da proporcionalidade a interpretação normativa do n.º2 do artigo 83º do Código das Custas Judiciais que se traduz em
– subsumindo a tal norma a dedução pelo assistente do requerimento de abertura de instrução – lhe cominar o pagamento da taxa de justiça devida por tal fase processual, sempre que o arguido não venha a ser pronunciado – e podendo o juiz adequar, em termos de proporcionalidade, o montante das custas por aquele devidas.'
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS:
4. – A questão de constitucionalidade que vem suscitada no presente recurso assenta na recusa de aplicação da norma do artigo 83º, n.º2 do Código das Custas Judiciais (CCJ) que impõe ao assistente que requereu a abertura de instrução e vem a decair nesse pedido (pela não pronúncia do arguido) o pagamento de uma taxa de justiça pelo decaimento.
A recusa de aplicação da referida norma vem fundamentada nos termos que ficam transcritos nos dois primeiros parágrafos da decisão recorrida, invocando-se a discriminação, não justificada, entre a situação do assistente que requereu a abertura de instrução e não viu o arguido pronunciado por todos ou alguns dos crimes que lhe eram imputados e a situação do arguido que, tendo requerido a abertura de instrução vem a ser pronunciado: o assistente
é condenado em taxa de justiça e o arguido não.
Acresce também que, segundo a decisão recorrida, o assistente pode vir a ser condenado para além da taxa de justiça prevista no n.º2 do artigo 83º do CCJ, na taxa de justiça constante do artigo 85º, n.º3, alínea e) do mesmo Código, que se refere à taxa de justiça devida na 1ª instância e prevê o pagamento de uma taxa entre um quarto de UC e 5 UC, 'nos casos de desistência da queixa, abstenção injustificada de acusar e rejeição da acusação do assistente (...)', o que tornaria a desigualdade mais flagrante.
A norma cuja constitucionalidade vem questionada tem a seguinte redacção:
'Artigo 83º
(Taxa de Justiça devida pela instrução)
1.Pela abertura da instrução é devida taxa de justiça correspondente a 1 UC.
2. Se o arguido não for pronunciado por todos ou alguns crimes constantes da acusação que haja deduzido ou com que se haja conformado, é devida a taxa de justiça pelo assistente, fixada pelo juiz no final da instrução entre 1 UC e 10 UC.'
Do teor do preceito (n.º2) resulta com clareza que, se o arguido não vier a ser pronunciado por todos ou alguns dos crimes constantes da acusação ( deduzida pelo assistente ou pelo Ministério Público com a qual se conformou o assistente), deve o mesmo assistente ser condenado no pagamento de uma taxa de justiça, em razão do seu decaimento
5. – A recusa de aplicação normativa constante da decisão recorrida derivou assim do entendimento expresso no sentido de que o assistente, no caso de não pronúncia (parcial ou total), é condenado em custas, enquanto que o arguido no caso de pronúncia, não seria pura e simplesmente tributado, o que envolveria violação do princípio da igualdade face a uma injustificada discriminação de tratamento em matéria de custas.
De acordo com uma jurisprudência constante, o Tribunal Constitucional circunscreve a aplicação do princípio da igualdade ao controlo de um limite externo do poder de conformação do legislador, traduzido na proibição do arbítrio, que se identifica, em geral, com a ausência de fundamento material bastante para o tratamento diferenciado, existindo, porém, casos em que as diferenciações são positivamente justificadas segundo critérios objectivos constitucionalmente relevantes. Também o Tribunal tem entendido que a proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo que permite censurar os casos de flagrante e intolerável desigualdade.
Assim, a falta de razoabilidade e de coerência com o sistema decorrentes da inexistência de justificação material bastante torna inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, qualquer medida legislativa, enquanto que uma medida criadora de diferenciação tem de ser materialmente justificada.
6. – A Constituição não impõe que a prestação do serviço de administração da justiça seja gratuita, sendo conforme à Constituição a exigência do pagamento de uma prestação pecuniária – a taxa de justiça – como contrapartida daquele serviço (Acórdão n.º 412/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º Vol., pág. 1187).
Havendo que pagar custas, compreende-se que o legislador tenha optado pelo princípio da correspondência entre as custas e a actividade processual dos sujeitos processuais que decaem nas suas pretensões. E é razoável que o mesmo legislador preveja, em processo penal, que o assistente tenha de pagar os custos da actividade processual por ele provocada em ordem à prossecução da acusação, mas que resultou infundada pois o arguido não chegou a ser pronunciado por qualquer crime, podendo considerar-se que houve decaimento da sua posição processual.
Uma tal situação não pode ser comparada – como o faz a decisão recorrida – com a situação do arguido que requer a abertura da instrução, mas vem a ser pronunciado. Desde logo, as situações não são iguais, uma vez que a abertura da instrução pelo arguido se integra no âmbito do seu direito de defesa e, depois, como se escreveu no Acórdão n.º 214/2000, da 1ª Secção (ainda inédito): 'Seria manifestamente atentatório dos direitos de defesa em processo penal a exigência de pagamento de taxa de justiça nos casos em que a instrução conduzisse a uma decisão de pronúncia do arguido pelos factos que constavam da acusação. O receio da condenação na taxa de justiça correspondente
à instrução poderia constituir uma inibição quanto ao exercício de tal direito.'
Acresce que não existe no processo penal uma verdadeira
«igualdade de armas» entre a acusação e a defesa, na medida em que a garantia da efectivação do direito de defesa, enquanto tutela do indivíduo contra eventuais abusos do poder punitivo do Estado, torna razoável uma diferenciação entre os direitos do arguido e os do assistente (neste sentido, veja-se o Acórdão n.º194/2000, da 2ª Secção, ainda inédito)
Assim, a norma cuja conformidade à Constituição vem questionada não viola o princípio da igualdade, uma vez que se justifica e não é desrazoável a diferenciação estabelecida quanto á condenação em custas do arguido e do assistente que decai quanto ao pedido de abertura de instrução. III – DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 83º, n.º2 do Código das Custas Judiciais e, em consequência, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada em conformidade com o presente julgamento de constitucionalidade.
Lisboa, 3 de Maio de 2000 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa