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Processo n.º 54/14
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. A. inconformado com a Decisão sumária n.º 223/2014, que não conheceu do objeto do recurso de inconstitucionalidade por ele interposto, vem da mesma reclamar, invocando os seguintes fundamentos:
“1 . º
O presente recurso de inconstitucionalidade de normas aplicadas ou afastadas que deveriam ter tido aplicação vem decidido sumariamente com muito sucinta âncora em que, em súmula, “(…)não apresenta no seu objeto as características de “normatividade” indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade.”, tendo por especial fundamentação que “(…)o problema trazido à apreciação do Tribunal Constitucional encontra-se de tal modo imbrincado com os factos concretos em discussão nos autos recorridos que é incompreensível fora do seu contexto(…)”.
2 .º
Ora, a vexata quaestio apresentada nesta sede resume-se a saber da conformidade à lei Fundamental e aos direitos, liberdades e garantias nela plasmados das teses que sustentam as decisões ordinárias no sentido de que “(...)a narração dos factos imputados ao arguido no requerimento de abertura de instrução não se basta com a menção de uma determinada qualificação jurídica atribuída na queixa apresentada, em relação à qual não é possível a formulação de qualquer juízo de verdade, mas exige que se narrem os factos denunciados não só para se poder aferir da sua relevância criminal, como também da sua falsidade e da consciência dessa falsidade por parte do agente.”, e também no que tange à matéria de falta de certidões probatórias omissas no inquérito, interpretado como que só no inquérito poderão ser autuadas as certidões requeridas como prova complementar dos factos acusados ao arguido, abstrato ele, cabendo apenas reclamação hierárquica nos termos do art.º 278.ºdo Código de Processo Penal da recusa da sua admissão e junção.
3.º
E assim ficou taxativamente expresso pelo ora reclamante no item 2 do seu requerimento de interposição do presente recurso, porque foi este o entendimento que logrou fazer da interpretação dada pelas instâncias percorridas às normas dos art.ºs 283.º, n.º 3, alínea b), 286.º, n.º 1, 287.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, expressamente aplicadas nessas decisões que, por outro lado, não consideraram a aplicação da do art.º 303.º, n.º 1, da mesma lei adjetiva.
4.º
Assim é manifesto que o recorrente elencou a teoria jurídica tal como a entendera da leitura atenta das decisões sucessivamente recorridas, sendo qualquer outro elemento que transpareça nesse texto recursivo mera ilustração, muito ténue, do modo como se chegara a esta perceção doutrinária, naquilo que não estivesse textualizado.
5 .º
E se uma tal ilustração concreta pode aparecer, será tão somente nas conclusões do recurso ante a Veneranda Relação a quo porquanto da letra do sobredito item 2 do requerimento aqui em análise, referência alguma é feita a qualquer facto concreto dos que atravessam os autos, como bem se alcança da parte do texto transcrito supra, a artigo 2.º.
6.º
Data venia, nem sequer nas teses jurídicas resumidas nas cinco alíneas do item 5 do recurso sub judice se descortina qualquer elemento mais concreto que crie o fundamento com os factos dos autos que os confunda, sendo doutrina pura o que dali se alcança, a saber:
a) a recolha de prova, em inquérito ou instrução, que não seja expressamente proibida pela lei, permite a admissão e atendimento segundo os critérios do juiz de instrução nos termos consagrados nas normas arguidas de inconstitucionalidade na interpretação diversa, até para alteração, substancial ou não, da acusação.
b) o requerimento de abertura de instrução não carece de forma especial exigindo-se-lhe apenas que se submeta às exigências de descrição da discordância e petição de novas diligências, se necessárias.
c) devendo, no entanto, cumprir os formalismos de acusação alternativa.
d) a qual deverá ser validada, ou não, pelo juiz de instrução segundo o critério de substancialidade das eventuais alterações surgidas da prova adquirida em instrução.
e) Sendo esta finalidade complementar de prova uma das justificações da existência da fase de instrução, para também da discussão do Direito aplicável.
8.º
E nesta súmula de teses se colhe a exclusiva e indispensável dimensão normativa das questões controvertidas à luz do Direito Constitucional, na humilde opinião do reclamante.”
2. A decisão reclamada, no que ora releva, tem o seguinte teor:
“5. Analisa-se de seguida a questão relativa à ausência de objeto normativo.
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem natureza estritamente normativa, não contemplando a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida. O recurso de constitucionalidade delineado pela Constituição não prevê o «recurso de amparo» ou «queixa constitucional».
Em conformidade, os recursos de constitucionalidade interpostos de decisões de outros tribunais apenas podem ter por objeto «interpretações» ou «critérios normativos» identificados com caráter de generalidade, e nessa medida suscetíveis de aplicação a outras situações, independentemente, pois, das particularidades do caso concreto. A respetiva admissibilidade depende, assim, da identificação da interpretação ou critério normativos - uma regra abstratamente enunciável vocacionada para uma aplicação para lá do caso concreto – cuja desconformidade constitucional se suscita.
6. Cabia ao recorrente precisar a concreta dimensão normativa aplicável ao caso que extrai dos preceitos invocados e considera inconstitucional. Ora, tal não ocorre no presente recurso.
O recorrente indica, no requerimento, que as normas cuja constitucionalidade pretende ver fiscalizada são as «contidas nos artigo 283.º, n.º 3, alínea b), 286.º, n.º 1, 287.º, n.ºs 2 e 3, e 303.º, n.º 1, do Código do Processo Penal (…) com a interpretação que delas é feita (…) de que “(…) a narração dos factos imputados ao arguido no requerimento de abertura de instrução não se basta com a menção de uma determinada qualificação jurídica atribuída na queixa apresentada, em relação à qual não é possível a formulação de qualquer juízo de verdade, mas exige que se narrem os factos denunciados não só para se poder aferir da sua relevância criminal, como também da sua falsidade e da consciência dessa falsidade por parte do agente”, como também no que tange à matéria de falta de certidões probatórias omissas no inquérito, interpretado como que só nele poderão ser autuadas, pelo que subsistiria apenas ao recorrente o direito de requerer a intervenção hierárquica prevista no artigo 278.º do Código do Processo Penal» (cfr. requerimento de interposição do recurso, fls. 276-277).
Ora, sob a capa de uma formulação supostamente geral e abstrata, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional sindique a constitucionalidade da própria decisão do tribunal recorrido – de não revogação da decisão de não abertura de instrução – e não a norma por este aplicada. Pretende, assim, o recorrente que se sindique a própria decisão do tribunal a quo de confirmar a rejeição do requerimento de abertura de instrução por considerar que este se limitava a conter «a menção de uma determinada qualificação jurídica (…) em relação à qual não é possível a formulação de qualquer juízo de verdade (…) como também no que tange à matéria de falta de certidões probatórias omissas no inquérito». Ora, tal decisão, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, não apresenta uma formulação da questão de constitucionalidade a apreciar com grau de generalidade e abstração inerentes a uma interpretação normativa independente do circunstancialismo estrito dos factos do caso concreto. Assim, o recorrente faz inelutável apelo a um momento da decisão que concretizou a mera aplicação da norma às circunstâncias do caso concreto, desta forma eliminando a invocação de um critério genérico. O problema trazido à apreciação do Tribunal Constitucional encontra-se de tal modo imbricado com os factos concretos em discussão nos autos recorridos que é incompreensível fora do seu contexto, não logrando alcançar uma natureza normativa.
Ora, ao Tribunal Constitucional apenas cabe a apreciação de conformidade constitucional de normas ou critérios normativos, não de decisões proferidas por outros tribunais.
Deve-se, portanto, concluir que o recurso não apresenta no seu objeto as características de “normatividade” indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade.
Termos em que não é possível conhecer do recurso.”
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso, por inidoneidade do seu objeto.
Na reclamação ora apresentada, o recorrente, discordando da decisão proferida de não conhecimento do recurso não indica, todavia, qualquer fundamento que infirme as razões pelas quais na decisão reclamada se concluiu que o recurso não tem objeto normativo, designadamente, a falta de generalidade e abstração da questão enunciada perante a sua indissociabilidade das particularidades do caso.
Confirmando-se a falta de verificação do requisito de admissibilidade do recurso de inconstitucionalidade indicado na decisão reclamada, impõe-se o indeferimento da reclamação.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 6 de maio de 2014. – Maria de Fátima Mata-Mouros – João Caupers – Maria Lúcia Amaral.