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Proc. nº 392/97
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. e B. vieram a ser julgados com outros co-arguidos na 10ª Vara Criminal de Lisboa, tendo-lhes sido aplicadas, por acórdão de 30 de Abril de 1997, as penas de 12 e 13 anos de prisão, respectivamente, pela prática de um crime de associação criminosa e de um crime de tráfico de estupefacientes.
Embora tivessem sido ambos detidos e o Ministério Público houvesse apenas promovido a medida de coacção prisão preventiva para o segundo, o Juiz de Instrução Criminal ordenou a restituição à liberdade destes dois arguidos, com prestação de termo de identidade e residência (despacho de 9 de Fevereiro de
1996). No despacho de pronúncia os arguidos ficaram sujeitos à medida de coacção de apresentação periódica, tendo assim, aguardado o julgamento em liberdade.
Logo após a leitura do acórdão e a apreciação de uma reclamação contra o mesmo, ambos os arguidos interpuseram, através de requerimento ditado para a acta, recurso da decisão condenatória. Na mesma altura requereram que fosse mantida a sua situação processual, por se não terem alterado os pressupostos que tinham determinado anteriormente a medida de coacção de apresentações semanais, invocando que tinham cumprido 'religiosamente todas as obrigações' que lhes haviam sido impostas pelo Tribunal, sendo prova cabal de tal a circunstância de os mesmos se terem apresentado na leitura do acórdão. Nessa ocasião, o mandatário dos arguidos fez referência a um acórdão da Relação de Lisboa que censurara uma anterior decisão do mesmo Colectivo que proferira a presente condenação e que, em outro processo, ordenara a prisão preventiva de diferentes arguidos, após a leitura do acórdão que os condenara também a penas de prisão. O agente do Ministério Público opôs-se a esse requerimento e requereu a aplicação da medida de coacção prisão preventiva aos dois arguidos.
Foi então proferido despacho a revogar o estatuto de liberdade provisória, ordenando-se a imediata sujeição a prisão preventiva dos arguidos. Para tal fundamentou-se esse despacho do seguinte modo:
'... Sem olvidar o princípio constitucional da presunção de inocência de qualquer arguido até ao trânsito em julgado da decisão final a proferir no processo, em função da limitação dos poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça ao reexame da matéria de direito, previsto no art. 433º do CPP, com a ressalva aí expressa, temos por certo haver substancial alteração da factualidade indiciada, pela positiva, porquanto, não se verificando quaisquer das circunstâncias previstas no art. 410º, nº 2 do mesmo diploma, a factualidade considerada apurada em primeira instância, ter-se-á por fixada.
Tanto basta, na perspectiva deste Tribunal, para fundar juízo de alteração dos pressupostos que presidiram, no caso, no despacho de pronúncia, fundado em meros indícios, de sujeição dos arguidos tão-só ao regime de liberdade provisória, louvando-se então o Exmº. Magistrado subscritor, fundamentalmente, na circunstância de aqueles arguidos se haverem apresentado regularmente aos actos processuais para que foram convocados.
De harmonia com o preceituado nos arts. 54º, nº 1, do DL 15/93, de 22/1, 209º, nºs. 1 e 2, alíneas a) e d), do CPP haverá agora, face àquelas alterações, de tecer juízo justificativo da não sujeição dos mesmos arguidos a prisão preventiva, que se nos afigura juridicamente inexistente.
Ao invés, inculca-se do acórdão ora publicado, até em função da extrema gravidade dos comportamentos apurados, receio de eximição à acção de justiça e de continuação ou/e reiteração da actividade delitiva ora conhecida ...'
(certificado a fls. 64 dos autos)
Inconformados com este despacho, dele interpuseram recurso os arguidos, tendo suscitado nas alegações a questão da inconstitucionalidade do art. 203º do Código de Processo Penal, considerando que a interpretação desta norma pelo Tribunal a quo, no sentido de que a publicação da decisão condenatória constitui alteração para efeitos de aplicação da medida mais gravosa, era 'inequivocamente inconstitucional por violação do artigo 28º da C.R.P.' (a fls. 6).
O recurso interposto veio a ser rejeitado em conferência pela Relação de Lisboa, através de acórdão proferido em 24 de Junho de 1997, por se considerar que o mesmo era manifestamente improcedente. Nesse acórdão afirmou-se que não apenas o agravamento das circunstâncias justificava o agravamento das medidas de coacção, bastando que a aplicação da nova medida de coacção obedecesse às correspondentes exigências legais:
'5.4. Nada impedirá, por isso, que, reconhecendo-se - com o evoluir do processo
- a insuficiência ou inadequação da medida de coacção em vigor, se aplique ao arguido, desde que se verifiquem os respectivos pressupostos, uma medida de coacção, ainda que mais gravosa, melhor adequada «às exigências cautelares que o caso requerer» e melhor proporcionada «à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas».
5.5. É frequente, aliás, que o juiz de pronúncia e o juiz de julgamento perspectivem as correspondentes «exigências cautelares» sob ópticas diferentes, limitando-se aquele, muitas vezes, a acautelar a presença do arguido nos ulteriores termos do processo (maxime, no julgamento) e vendo-se este - ante a comprovação da prática pelo arguido de crime(s) grave(s), a sua condenação em pena elevada e a cessação das exigências cautelares, se entretanto satisfeitas, de presença do arguido em julgamento - na necessidade de reequacionar, agora com vista a garantir o cumprimento das penas aplicadas, a «adequação» e a
«suficiência» da anterior medida de coacção [...].
5.7. A confrontação do tribunal de julgamento com a confirmação (praticamente insindicável, no âmbito da matéria de facto, pelo tribunal de recurso) da comparticipação do arguido num crime de «associação criminosa» e noutro de
«tráfico agravado de estupefacientes» (ambos «punidos com pena de prisão de máximo superior a oito anos») terá, imperiosamente, que o concitar para o eventual desajustamento entre a medida de coacção em vigor e a declarada preferência da lei (cfr. arts. 209º da CPP e 54.1 do dec. lei 15/93) quando o crime imputado for um daqueles, pela medida de coacção prisão preventiva.' (a fls. 94-95)
De novo, na conclusão final, é feita referência ao art. 209º do Código de Processo Penal, norma 'que ostensivamente prefere e genericamente propõe «a medida de prisão preventiva» (de qualquer das restantes)' (ibidem).
Notificado deste acórdão, dele interpuseram recurso de constitucionalidade os arguidos indicando como objecto a questão da inconstitucionalidade do art. 203º do Código de Processo Penal 'com o sentido de que com a publicação do acórdão de 1ª instância, se condenatório, se alteram os pressupostos que ditaram a aplicação da medida de coacção ao tempo imposta - Liberdade', mostrando-se violado o art. 28º da Constituição (a fls. 98). O recurso foi admitido por despacho de fls. 104.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações recorrentes e recorrido.
Nas suas alegações, os recorrentes formularam conclusões sobre a inconstitucionalidade do art. 203º do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida pelas instâncias, sustentando nomeadamente que:
' 1- Não pode o artigo 203º do C.P.P. sofrer interpretações consoante seja distribuída na Secção A ou B, pois o que está em causa é a liberdade do cidadão.
2- O único preceito no nosso sistema penal que permite a alteração das medidas de coacção é o artigo 203º do C.P.P.
3- Sendo assim é com base na sua interpretação que se deverá ponderar a alteração ou [não] dos pressupostos de aplicação de uma medida de coacção.
4- [D]a interpretação literal deste preceito resulta claro que a imposição de uma medida de coacção mais gravosa apenas o poderá ser no caso de o arguido violar as obrigações que lhe forem aplicadas.
5- Ora, não resulta do douto acórdão de que se recorre a violação das obrigações impostas.
6- Aliás, o douto tribunal «a quo» socorre-se, para alterar as medidas de coacção, da condenação dos arguidos ainda que sem trânsito em julgado.
7- Entendemos, pois, que a interpretação assim dada ao artigo 203º o fere de inconstitucionalidade por violação das normas constitucionais - artigos 28º e
32º [...].' (a fls. 108-109)
O Ministério Público, por seu turno, concluiu do seguinte modo:
' 1º A decisão recorrida não fundou o decidido, no que à situação prisional do arguido se refere, na aplicação da norma constante do artigo 203º do Código de Processo Penal - que, segundo ele, integraria o objecto do recurso -, condicionando irremediavelmente os poderes cognitivos deste Tribunal.
2º Na verdade, tal decisão - e porque não estava em causa nos autos a ocorrência de qualquer violação das obrigações cautelarmente impostas ao arguido - fundou-se, de modo explícito, na invocação das normas constantes dos artigos
198º, 204º, 209º e 212º do Código de [P]rocesso Penal e 54º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, cuja constitucionalidade não foi questionada pelo recorrente.
3º Termos em que não deverá conhecer-se do presente recurso.' (a fls. 126-127)
Face à questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público, foram notificados os recorrentes para a ela responderem, tendo sustentado, na resposta, a sua improcedência. Nessa resposta, admitindo que não tinham suscitado a questão da inconstitucionalidade das normas aplicadas na decisão recorrida, consideraram que estas normas 'têm por base o artigo 203º do CPP', não relevando a circunstância de o tribunal a quo não ter ostensivamente indicado esse normativo, pois, de outro modo, estaria encontrado o modo de os tribunais se eximirem à censura do Tribunal Constitucional.
3. Foram dispensados os vistos legais.
Importa, assim, apreciar a questão prévia suscitada.
II
4. Para resolver a questão prévia suscitada, importa analisar a questão de saber se o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão recorrido, aplicou, de modo implícito, o art. 203º do Código de Processo Penal, como sustentam os recorrentes.
Dispõe este art. 203º, subordinado à epígrafe 'violação das obrigações impostas':
' Em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra ou outras das medidas de coacção previstas neste Código e admissíveis no caso.'
No despacho proferido em audiência, na 10ª Vara Criminal, nunca foi imputado aos arguidos qualquer comportamento violador das obrigações impostas por aplicação da medida de coacção aplicada pelo juiz de pronúncia, considerando-se que, a partir do apuramento da responsabilidade criminal dos dois arguidos no julgamento, se teria verificado 'substancial alteração da factualidade indiciada', o que fundava um 'juízo de alteração dos pressupostos que presidiram, no caso..., [à] sujeição dos arguidos tão-só ao regime de liberdade provisória'. Este ponto de vista foi retomado no acórdão recorrido, fazendo-se apelo a normas diversas da do art. 203º do Código de Processo Penal para confirmar a aplicação aos dois arguidos da medida de coacção prisão preventiva.
A tese dos ora recorrentes de que foi aplicada a norma do art. 203º do Código de Processo Penal poderá, porém, ser acolhida se for verdade - como sustentam - que o regime de medida de coacção fixado em certo momento processual só pode ser modificado, nomeadamente através de sujeição a regime mais gravoso, por aplicação daquele artigo do Código de Processo Penal.
5. O art. 209º, nº 1, do Código de Processo Penal estatui que,
'sempre que o crime imputável for punível com pena de prisão de máximo superior a oito anos, o juiz deve, no despacho sobre medidas de coacção, indicar os motivos que o tiverem levado a não aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva'. E o nº 2 do art. 209º estabelece que a norma do número anterior 'é correspondentemente aplicável ao caso em que o crime imputado for: [...] d) de produção e tráfico ilícito de drogas'. Na mesma linha de solução, o art. 54º, nº
1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, dispõe que, 'sempre que o crime imputado for de tráfico de droga, desvio de precursores, branqueamento de capitais ou de associação criminosa, é correspondentemente aplicável o disposto no nº 1 do artigo 209º do Código de Processo Penal, devendo ainda o juiz tomar especialmente em conta os recursos económicos do arguido utilizáveis para suportar a quebra de caução e o perigo de continuação da actividade criminosa, em termos nacionais e internacionais'.
Quer a decisão proferida por ocasião do primeiro interrogatório do arguido, quer a proferida no despacho de pronúncia, no tocante a sujeição do arguido a uma medida de coacção, pode ser modificada em momento ulterior do processo.
O art. 212º do Código de Processo Penal prevê a revogação e a substituição das medidas coactivas. O nº 1 estabelece a obrigatoriedade da revogação, sempre que se verificar a sua aplicação 'fora das hipóteses ou das condições previstas na lei' ou a eventualidade de ter deixado de subsistir o circunstancialismo que justificara a sua aplicação. Mas o nº 2 do mesmo artigo admite uma nova aplicação das medidas revogadas, 'sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer', desde que sobrevenham 'motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação'.
Daqui decorre que, como afirma Maia Gonçalves, o disposto no art. 212º deste Código contenha 'um afloramento do princípio de que as medidas de coacção, pelas contínuas variações do seu condicionalismo, estão sujeitas à condição rebus sic stantibus', como decorre, de resto, quanto à prisão preventiva, do disposto no art. 213º. Como refere ainda o mesmo autor, 'o facto de terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a aplicação de uma medida de coacção não obsta, como é óbvio, a que sobrevenham motivos que voltem a justificar aplicação dessa medida, maxime da prisão preventiva (Código de Processo Penal anotado,7ª edição, Coimbra, 1996, pág. 364). Por seu turno, Germano Marques da Silva escreve que, 'se uma medida revogada pode de novo voltar a ser aplicada, não se compreenderia que não pudesse revogar-se uma medida e aplicar outra diferente, ainda que mais grave, se as circunstâncias o justificarem. Aliás, é princípio geral que as medidas de coacção podem ser aplicadas em qualquer fase do processo, até à execução, e por isso que se necessárias nada há que impeça a sua aplicação, ainda que em conjunção com outra ou outras já aplicadas ou em sua substituição [...]' (Curso de Processo Penal, II, Lisboa, 1993, págs. 251-252).
E, no plano jurisprudencial, não obstante a notícia de uma divergência da decisões das Relações que é dada por Maia Gonçalves na obra acima citada, pode dizer-se que é maioritária a orientação que admite a alteração das medidas de coacção durante o processo, nomeadamente o decretamento da prisão preventiva
(cfr. os acórdãos sumariados in M. Simas Santos, M. Leal-Henriques e D. Borges de Pinho, Código de Processo Penal Anotado, 1º volume, Lisboa, 1996, pág. 798).
6. Não está em causa, claro, apreciar a solução adoptada pelo acórdão recorrido, sub specie constitutionis.
As referências à doutrina e à jurisprudência em matéria de processo penal serviram apenas para pôr em causa a tese dos recorrentes de que só o artigo 203º do Código de Processo Penal autorizaria a aplicação de medida de coacção mais gravosa.
Por isso, é manifesto que o acórdão recorrido não aplicou, de forma implícita, o art. 203º do Código de Processo Penal, assistindo razão ao Representante do Ministério Público quando afirma que a decisão recorrida aplicou outro conjunto normativo (o dos arts. 198º, 204º, 209º e 212º do Código de Processo Penal e 54º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93), expressamente invocado no despacho de primeira instância e no acórdão que o confirmou.
7. Tendo os recorrentes impugnado a constitucionalidade de norma não aplicada, de forma expressa ou tácita, no acórdão recorrido, falta o pressuposto de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
8. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional julgar procedente a questão prévia suscitada pela entidade recorrida e, em consequência, não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Dezembro de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa