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Proc. n.º 562/97
1ª Secção Cons. Vítor Nunes de Almeida (Consª Fernanda Palma
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. – A... e mulher, AL... propuseram contra B... e mulher AS... uma acção de despejo na forma sumária com fundamento na realização de obras no arrendado com a finalidade de aumento do número de locais arrendáveis.
Realizado o julgamento, foi proferida, em 29 de Novembro de 1996, uma sentença pela qual se julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, se reconheceu aos Autores o direito de realizar as obras mencionadas e condenou os Réus a despejarem o prédio arrendado no termo da renovação contratual subsequente ao trânsito em julgado da sentença, contra o recebimento pelos Réus a pagamento dos Autores da quantia de 250.800$00, ou a despejarem-no no prazo de três meses a contar do trânsito em julgado da decisão, caso os Réus optem pela ocupação da habitação tipo T2 do 3º andar recuado que lhes é destinado, contra o recebimento, pelos Réus, da quantia de 50.160$$00.
Os Réus, notificados desta decisão, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando nas respectivas alegações a inconstitucionalidade do artigo 69º, n.º1, alínea b), do RAU, aprovado pelo Decreto - Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro e dos artigos 1º, 3º e 5ºda Lei n.º
2088, de 3 de Junho de 1957, enquanto permitem o despejo sem que esteja garantida ao inquilino um habitação alternativa, nomeadamente durante o tempo de construção, por violação do artigo 65º da Constituição da República Portuguesa.
2. – A Relação, por acórdão de 18 de Setembro de 1997, decidiu julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Quanto à questão de constitucionalidade suscitada pelos Réus, a Relação afastou-a por considerar que as normas questionadas não são inconstitucionais pois a denúncia do contrato tem como finalidade o aumento do número de locais arrendados – aspecto também protegido pelo artigo 65º da Constituição – tendo o inquilino não só o direito a ocupar no futuro uma habitação no edifício modificado mas também direito de ser indemnizado pela suspensão do arrendamento.
Não se conformando com o assim decidido, os Réus interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a conformidade à Lei Fundamental do 'artigo 69º, n.º1, alínea b) do RAU e os artigos 1º, 3º e 5º da Lei n.º 2088, de 3 de Junho de 1957'.
Neste Tribunal, os recorrentes apresentaram alegações em que formularam as seguintes conclusões:
'1ª - Ao permitir a denúncia do contrato e o despejo dos recorrentes sem que a estes esteja garantida uma habitação alternativa, designadamente, durante o tempo da construção do projectado edifício, os artigos 69º, n.º1, alínea b) do RAU e os artigos 1º, 3º e 5º da Lei n.º 2088, de 3 de Junho de 1957 são materialmente inconstitucionais por violarem o disposto no artigo 65º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa.
2ª - Esta norma é de aplicação imediata por força do disposto no n.º1 do artigo
18º do mesmo diploma fundamental.'
Os recorridos também alegaram, remetendo as suas razões para o teor do acórdão da Relação, não tendo formulado conclusões.
Entretanto, mas já depois de inscrito o processo em tabela, o mandatário do recorrente veio dar conhecimento do óbito do seu mandante, B...
Nos termos do despacho da Excelentíssima Relatora o processo continuou os seus termos até ser proferido o Acórdão final, de acordo com o preceituado no artigo 277º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Após discussão do projecto apresentado, verificou-se mudança de relator, por vencimento.
Nada obstando a que se conheça do mérito da questão, cumpre apreciar.
II – FUNDAMENTOS:
3. – A questão de constitucionalidade que vem suscitada nos presentes autos é, assim, a da constitucionalidade do artigo 69º, n.º1, alínea b) do RAU e dos artigos 1º, 3º e 5º da Lei n.º 2088, de 3 de Junho de
1957, enquanto não garantem uma habitação alternativa, designadamente durante o tempo de construção do edifício projectado.
As normas questionada têm o seguinte teor: Regime do Arrendamento Urbano
'Artigo 69º
(Casos de denúncia pelo senhorio)
1 - Sem prejuízo dos casos previstos no artigo 89º - A, o senhorio pode denunciar o contrato para o termo do prazo ou da sua renovação nos casos seguintes: a)[...]; b)Quando se proponha ampliar o prédio ou construir novos edifícios em termos de aumentar o número de locais arrendáveis.
2 – [...].' Lei n.º 2 088 Artigo 1º
(Denúncia para aumento da capacidade do prédio)
O senhorio pode requerer o despejo para o fim do prazo do arrendamento com fundamento na execução de obras que permitam o aumento do número de arrendatários, em conformidade com o projecto aprovado pela Câmara Municipal: a. contra arrendatários de prédio urbano, a fim de proceder à sua ampliação, alteração ou substituição; b. [...].
§ único – Observar-se-á, em relação a cada inquilino, o regime estabelecido para a alteração ou para a ampliação do edifício, conforme as obras projectadas modifiquem ou não o local por ele ocupado.
........................................................... Artigo 3º
(Requisitos de admissibilidade do despejo)
O despejo com o fundamento indicado no artigo 1º só é admissível se concorrerem os seguintes requisitos:
1º O número de locais arrendados deve aumentar num mínimo de metade, mas não poderá ficar inferior a sete em Lisboa e quatro nas restantes terras do País, não se contando para o efeito os locais tipo apartamento.
2º O edifício novo ou o alterado devem conter os locais destinados aos antigos inquilinos, correspondendo aproximadamente aos que eles ocupavam; mas quando, por virtude da extensão ou importância destes últimos locais, a atribuição de outros, aproximadamente correspondentes, na obra em projecto, tornar esta economicamente inviável, será dado aos arrendatários o direito a reocupar até dois locais no edifício ou o de receber a indemnização estabelecida nesta lei, acrescida de percentagem, a fixar pelo tribunal, não superior a 50%. Em qualquer caso serão assinalados no projectos, locais destinados aos diversos arrendatários;
......................................................' Artigo 5º
(Direito de reocupação ou de indemnização)
O inquilino sujeito a despejo nos termos da alínea a) do artigo 1º terá o direito de:
1º - Reocupar as dependências que tinha no edifício simplesmente ampliado ou ocupar as que lhe são destinadas no edifício alterado ou construído de novo e receber, em qualquer dos casos, uma indemnização pela suspensão do arrendamento; ou
2º - Receber uma indemnização pela resolução do arrendamento.
§ 1º - A indemnização pela suspensão do arrendamento será igual a duas vezes a renda anual à data da sentença de despejo;
§2º - A indemnização pela resolução do arrendamento será igual a dez vezes a renda anual à data da sentença de despejo.
§3º - Aos montantes determinados nos termos dos parágrafos anteriores acrescerá um vigésimo por cada ano completo de duração do arrendamento até à sentença de despejo, com o limite máximo de vinte anos.'
A redacção dos §§ 1º e 2º foi introduzida pelo artigo
42º da Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, sendo a redacção da versão originária do seguinte teor : '§1 – A indemnização pela suspensão do arrendamento será igual a uma ou duas vezes a renda anual à data da sentença de despejo, conforme se trate de arrendamento para habitação ou para comércio, indústria ou profissão liberal'. '§2ºA indemnização pela resolução do arrendamento será igual a cinco ou dez vezes a renda anual à data da sentença de despejo, consoante se trate de arrendamento para habitação ou para comércio, indústria ou profissão liberal.'
Importa salientar que, embora os recorrentes indiquem que todo o artigo 3º deve ser apreciado, o certo é que nada questionam relativamente aos requisitos de admissibilidade do despejo nele referidos: limitam-se apenas a questionar a falta de garantia de fornecimento de uma habitação condigna durante o tempo das obras. Porém, transcreve-se o n.º 2 do artigo 3º por nele se referir um agravamento da indemnização, num caso particular, que não deve ficar sem atenção, ainda que não pareça muito relevante para o caso em apreço.
4. – Vem, portanto, questionada a constitucionalidade do regime legal de denúncia do contrato de arrendamento para aumento da capacidade do prédio, regime este que, de acordo com o artigo 73º do RAU, 'é objecto de legislação especial'.
Esta legislação consta da Lei n.º 2088, de 3 de Junho de
1957, alterada pela Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro (além dos §§ 1º e 2º do artigo 5º atrás transcrito, foi também alterado pelo artigo 43º da Lei 46/85, o artigo 7º, que estabelece as rendas a fixar, as quais, nesta nova redacção 'não podem exceder as que resultarem da aplicação do regime de renda condicionada aos fogos destinados a antigos inquilinos').
Este regime legal ainda em vigor teve como seu antecedente o fixado no artigo 69º, alínea c), da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, nos termos da qual se estabelecia como fundamento para requerer o despejo para o fim do prazo do arrendamento ou da renovação o propor-se o senhorio ampliar o prédio ou substitui-lo totalmente, sempre por forma a resultar aumento do número de inquilinos ou fazer construções novas, prevendo a lei, para o arrendatário despejado, uma indemnização correspondente ao quíntuplo da renda anual à data do despejo ou ao décuplo se se tratar de arrendamento para comércio, indústria ou profissão liberal. No caso de habitação que pague uma renda mensal inferior a 50$, a indemnização será do décuplo, mas só será devida se o senhorio não facultar ao inquilino casa correspondente à que ocupava.
O arrendatário podia também, em vez de receber aquela indemnização, ocupar a parte do novo prédio que substituir a que ocupava, mediante uma renda a fixar pela comissão permanente de avaliação, para o que devia notificar o senhorio em 15 dias após licença de ocupação; mas, neste caso, o arrendatário tinha direito a uma indemnização correspondente à renda que pagava anteriormente e ao tempo que a desocupação durou. Se o senhorio não iniciasse as obras, dentro de três meses a contar da efectivação do despejo, era obrigado a facultar a reocupação do prédio sem restituição da indemnização; se as não terminasse dentro de 12 meses, pagaria por cada ano que demorasse a construção, 10% da indemnização já satisfeita.
Constata-se que o regime da Lei n.º 2088, a seguir sinteticamente referido, veio desenvolver pormenorizadamente o regime inicial, mas sempre procurando fazer um balanceamento entre a finalidade de fomentar a iniciativa dos proprietários e a de assegurar que esse objectivo se não transformasse em expediente para ‘furar’ as garantias concedidas pela lei aos inquilinos.
Nos seus traços essenciais, o regime do despejo para aumento do número de lugares arrendáveis, tal como resulta, na parte relevante, da legislação citada, é o seguinte: o o senhorio pode pedir o despejo para o termo do contrato com fundamento em execução de obras para aumentar o número de arrendatários; o este pedido de despejo pode visar tanto arrendatários de prédios urbanos (para proceder à ampliação, alteração ou substituição do prédio), como de prédios rústicos; (artigo 1º da Lei n.º 2088); o o pedido de despejo deve respeitar certos requisitos cumulativos: número mínimo de locais arrendáveis, novo edifício com locais de área aproximadamente correspondente à anterior, com agravamento da indemnização no caso em que tal requisito levasse à inviabilidade da obra em projecto (artigo
3º); o os inquilinos sujeitos ao despejo atrás previsto têm direito de reocupar o local que lhes é destinado no edifício alterado ou ampliado ou construído de novo e de receber uma indemnização pela suspensão do arrendamento ou de receber uma indemnização pela resolução do arrendamento (artigo 5º); o A indemnização pela suspensão do arrendamento será igual a duas vezes a renda anual e a devida pela resolução do arrendamento será igual a dez vezes aquela renda no momento da sentença de despejo (§§ 1º e 2º, do artigo 5º); o Os montantes atrás referidos serão acrescidos de um vigésimo por cada ano completo de duração do arrendamento até à sentença, com o máximo de 20 anos
(§ 3º do artigo 5º); o Quanto à renda, se se tratar de mera ampliação, a renda será a mesma que era paga ao tempo da sentença de despejo; nos outros casos, as rendas devem ser fixadas antecipadamente por uma Comissão Permanente de Avaliação perante cópia do projecto (artigo 7º); o No caso do antigo inquilino vir a ocupar o edifício alterado, de começo não deverá pagar renda superior à vigente ao tempo da sentença de despejo acrescida de 50%. A diferença entre este valor e o valor fixado pela Comissão, a existir, deveria ser satisfeito por sucessivos aumentos de 20% dessa diferença em cada um dos semestres seguintes(§1º do artigo 7º); o No caso de arrendamentos para habitação, as rendas fixadas pela Comissão Permanente de Avaliação, de acordo com o artigo 7º da Lei n.º 2088, não podem exceder as que resultarem da aplicação do regime de renda condicionada aos fogos destinados aos antigos inquilinos (artigo 43º, da Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro). Será este regime materialmente inconstitucional, por violação do preceituado no artigo 65º da Constituição, na medida em que não garante uma habitação alternativa durante o tempo de construção do edifício projectado?
Vejamos.
5. – O artigo 65.ºda Constituição dispõe como segue:
'1 - Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto, e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
2 - Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado: a) Programar e executar um política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social; b) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e autoconstrução; c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria.
3 - O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
4 - O Estado e as autarquias locais exercerão efectivo contrôlo do parque imobiliário, procederão às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias e definirão o respectivo direito de utilização.'
Reconhece-se, com esta norma, o direito fundamental de todos os cidadãos poderem dispor de uma morada decente, para si e para a sua família; uma morada que seja adequada ao número dos membros do respectivo agregado familiar, por forma a que seja preservada a intimidade de cada um deles e a privacidade da família no seu conjunto; uma morada que permita a todos viver em ambiente fisicamente são e que ofereça os serviços básicos para a vida da família e da comunidade.
Para a efectivação de um tal direito, a Constituição comete ao Estado as seguintes tarefas: a) «Programar e executar uma política de habitação», devidamente articulada com uma «adequada rede de transportes e de equipamento social»; b) «Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações», que visem «resolver os respectivos problemas habitacionais» e
«fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução»; c) «Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria» [cf. artigo 65.º, n.º 2, alínea a), b) e c)].
De acordo com este preceito, o Estado deve também
«adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar» (cf. artigo 65.º, n.º 3); e, juntamente com as autarquias locais, deve exercer um «efectivo controlo do parque imobiliário», procedendo
«às expropriações dos solos que se revelem necessárias» e definindo «o respectivo regime de utilização» (cf. artigo 65º, n.º 4).
6. - O «direito à habitação». ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, integrado nos
«Direitos e deveres económicos, sociais e culturais» da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicados nos n.º 2 e 4 do artigo 65.º da Constituição (cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, pp. 680-682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretizarão e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada «reserva do possível» (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicas e sociais [cf., J.J.Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora,
1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia», 1984, Coimbra, 1939, p. 26, e J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, pp. 199 e segs. e 343 e segs.] – cf. neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 151/92, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º Vol., pág. 647).
O direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cf. J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 205-209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável, nem exequível por si mesmo.
O direito à habitação tem, assim, o Estado - e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios - como único sujeito passivo - e não, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só ganha consistência depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos fixados pela lei emitida para dar execução às tarefas cometidas ao Estado pelo nº 2 do artigo 65º da Constituição.
Em suma: o direito fundamental à habitação, considerando a sua natureza, não é susceptível de conferir por si mesmo ao arrendatário um direito, jurisdicionalmente exercitável, que permita impor ao senhorio, no caso de precisar de denunciar o contrato de arrendamento quando necessitar de realizar obras no prédio para aumento do número de locais arrendáveis, a obrigação de fornecer ao inquilino uma habitação alternativa enquanto durarem as obras, se o arrendatário optar por permanecer no edifício renovado ou reconstruído.
Daí que a lei, ao reconhecer o direito do senhorio de despejar o arrendatário com fundamento na execução de obras para aumento dos locais arrendáveis, tenha tutelado os direitos do arrendatário não só através do reconhecimento do direito a uma indemnização mas também do direito a (re)ocupar no edifício renovado ou reconstruído um espaço de habitação aproximadamente correspondente ao que antes ocupava.
O direito à referida indemnização tem uma medida diferente consoante ela corresponde à resolução do contrato de arrendamento ou apenas à sua suspensão: quando o contrato cessa definitivamente, o seu valor é igual a dez vezes o valor da renda anual na data do despejo.
Compreende-se a diferença entre este valor e o fixado no caso de despejo para habitação do senhorio: em ambos os casos existe um conflito entre o direito de propriedade do senhorio e o direito de habitação do inquilino; a indemnização no caso de despejo para a habitação do senhorio é de dois anos e meio de renda (artigo 72º, n.º1 do RAU) e no caso de despejo para obras é de dez vezes o valor anual da renda (artigo 5º, n.º2, § 2º, da Lei n.º
2088), acrescido de um vigésimo do valor anual da renda até ao máximo de vinte anos (§ 3º do artigo 5º da Lei n.º 2088).
Esta diferença justifica-se pelo facto de, no primeiro caso, o interesse do senhorio ser de natureza idêntica ao interesse do arrendatário e a preferência legal assentar certamente no facto de o seu direito
à habitação se poder estribar no direito de propriedade, enquanto que o direito do arrendatário decorre do próprio contrato de arrendamento : perante uma tal situação, compreende-se que a indemnização seja de valor mais reduzido do que num caso em que o interesse do senhorio é meramente patrimonial – aumento do número de locais arrendáveis e maior rendimento da sua propriedade. Aqui, a resolução do contrato de arrendamento não pode deixar de ser mais fortemente penalizada pelo pagamento de uma maior indemnização.
De forma similar, compreende-se a diferença do montante indemnizatório no caso de despejo «temporário», isto é, no caso em que o inquilino optou pela ocupação do local que lhe foi destinado no novo edifício ou no edifício renovado ou reconstruído, mas, por virtude da obras teve de ser despejado até poder ocupar aquelas novas ou renovadas instalações. Aqui, o valor da indemnização pelo despejo corresponde a duas vezes o valor da renda anual, acrescido de um vigésimo do valor da renda anual até ao máximo de 20 anos por cada ano completo de duração do arrendamento.
Compreende-se que neste caso o valor indemnizatório de base seja inferior ao previsto para o caso de despejo para habitação do senhorio: trata-se de uma indemnização que visa reparar a privação temporária de habitação do inquilino; no caso de despejo para habitação do senhorio a privação
é permanente.
Sendo assim, justifica-se perfeitamente que a indemnização seja referida à renda paga no momento em que o despejo é decretado: com efeito, é a renda que representa, para ambas as partes do contrato, a contrapartida da concessão do direito de utilização do prédio, o valor económico e corrente do arrendado.
Assim, as normas do artigo 69º, n.º1, alínea b) do RAU e dos artigos 1º, 3º, n.º2 e 5º da Lei n.º 2088, de 3 de Junho de 1957 não enfermam da inconstitucionalidade arguida.
III – DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucionais as normas do artigo 69º, n.º1, alínea b), do Regime de Arrendamento Urbano e dos artigos 1º, 3º, n.º2 e 5º da Lei n.º 2088, de 3 de Junho de 1957, na redacção da Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, e, em consequência, negar provimento ao recurso de constitucionalidade interposto, confirmando, na parte impugnada, a decisão recorrida. Lisboa, 8 de Junho de 1999 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Declaração de voto
Tendo sido a relatora inicial do presente processo, votei vencida a decisão pelas razões que passo a expor:
1. A questão em apreciação no presente recurso de constitucionalidade é a de saber se a norma contida no artigo 5º da Lei nº 2088, de 3 de Junho de 1957, na redacção da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, articulada com as normas que consagram o direito do senhorio a despejar o imóvel por motivo de obras, é ou não compatível com o direito à habitação consagrado no artigo 65º, nº 1, da Constituição.
A indemnização pela suspensão do arrendamento visa, a título principal, possibilitar aos inquilinos que se vêem temporariamente privados da sua habitação um realojamento satisfatório durante o tempo de realização das obras.
A solução consagrada em 1985 baseava-se na adequação de dois anos de rendas para custear uma solução de privação de habitação durante um período que seria, em média, o tempo de duração das obras.
No caso dos autos, os recorrentes pretendem optar pela ocupação de andar no novo prédio com a indemnização por suspensão. Porém, o montante desta
(esc. 50.160$00) não assegura minimamente a finalidade da norma. Com efeito, o valor atribuído não permite o realojamento de um casal durante o período previsível de duração das obras de demolição e construção de um novo edifício.
É verdade que tal insuficiência não resulta da solução normativa considerada em abstracto, mas sim da conjugação desta com o valor das rendas devidas nos contratos de arrendamento mais antigos. Por outro lado, também é certo que a situação de desnivelamento actualmente existente no mercado de arrendamento é, em parte, um produto de políticas estatais de congelamento duradouro das rendas seguidas de medidas de liberalização destas.
Tendo em conta tais factores, poder-se-ia dizer que a insuficiência da indemnização resulta de forma imediata da situação de rendas baixas, da qual o arrendatário também beneficiou. Nesta linha de raciocínio, afirmar-se-ia que a indemnização atribuída neste momento da vida do contrato seria efeito directo de uma vantagem auferida pelo inquilino anteriormente. No entanto, supondo que estas considerações traçam o retrato económico e socialmente válido da situação contratual, ainda seria, sem dúvida, questionável se uma fragilização do direito à habitação por tais normas será justificada pelos efeitos de um estado de coisas que, na sua génese, não é imputável nem ao senhorio nem ao inquilino. E, por outro lado, ainda será questionável se, na análise da situação económica gerada pelo despejo para obras, não têm de ser considerados factores como os custos económicos para os inquilinos do despejo e as vantagens económicas para os senhorios da possibilidade juridicamente excepcional do despejo para obras. O plano dos custos e benefícios não conduz, assim, inequivocamente, a uma justificação da solução legal. Mas, não será certamente decisivo o plano de uma proporcionalidade de custos/benefícios independentemente da sua conexão com a relevância constitucional do direito à habitação.
2. O direito à habitação, tal como é constitucionalmente consagrado, traduz-se, na dimensão tradicional da estrutura defensiva e negativa dos direitos (cuja consideração é especialmente relevante nestes casos), no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação e de não ser impedido de conseguir uma habitação, assumindo, nesta dimensão, a configuração de um direito de defesa que determina um dever de abstenção, quer do Estado quer de terceiros
(cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1995, pp. 344 e 345).
A tutela do inquilino conferida pelo Regime do Arrendamento Urbano, nomeadamente no que respeita à estabilidade e à duração do contrato, reflecte, necessariamente, a relevância do referido direito consagrado na Constituição. É essa relevância que justifica a rigidez contratual do arrendamento e a limitação dos fundamentos da cessação do contrato.
A possibilidade de despejo para a realização de obras (ainda que temporário) consubstancia uma excepção à aludida rigidez contratual, justificável por outros interesses socialmente importantes: o interesse do proprietário e, devido ao aumento do número de fogos arrendáveis, a promoção do mercado de habitação. A questão que se coloca é a de saber se há uma prevalência sem limites desses interesses sobre o direito à habitação ou se, dada a excepcionalidade do despejo na vida do contrato do arrendamento, num caso em que não se verificou qualquer 'patologia' de relação contratual, haverá que observar rigorosamente uma proporcionalidade, com critérios qualitativos que preserve o núcleo essencial do direito à habitação. Ora, no caso dos autos, os critérios de compensação previstos na norma para o despejo por motivo de obras, em função do dobro do valor das rendas de um ano, não protege, minimamente, o direito à habitação, durante o tempo necessário para as obras.
Apesar de os interesses do proprietário terem relevância constitucional (artigo 62º da Constituição), o facto de o direito à habitação ser condição imprescindível da realização e desenvolvimento da dignidade da pessoa humana, impede uma negação, ainda que temporária, do núcleo essencial dos interesses subjacentes. A relevância de tais interesses impõe uma tutela efectiva e eficaz, incompatível com qualquer solução normativa que negue em absoluto, ou limite insuportavelmente, ainda que apenas durante um período limitado, a satisfação mínima das necessidades habitacionais dos recorrentes.
3. Assim, sendo a possibilidade de despejo para realização de obras uma excepção à rigidez do contrato de arrendamento para habitação, as consequências de tal excepção para o inquilino não se poderão traduzir numa total desprotecção da sua situação. Com efeito, a repercussão no regime do arrendamento urbano da tutela constitucional do direito à habitação (que se entrevê até na consagração da possibilidade de opção pela ocupação de uma fracção do prédio a construir) impõe a consagração de um critério de proporcionalidade incompatível com a compressão absoluta de tal direito.
Concluo, portanto, que as normas sub judicio, na medida em que permitam o despejo por motivo de obras sem assegurarem, devido ao tipo de critério utilizado, uma compensação adequada à efectivação do direito à habitação do arrendatário durante o período do despejo, são inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 65º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição. José Manuel Cardoso da Costa