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Proc. nº 426/97
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. M... e MM... interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 26 de Junho de 1997, com fundamento na inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição), do artigo 1041º, nº 1, do Código do Processo Civil, na interpretação segundo a qual não seria exigível para rejeição dos embargos de terceiro, a prova da má fé do adquirente, diversamente do que sucede para a procedência da impugnação pauliana (artigos 610º e 612º do Código Civil).
2. A referida questão de constitucionalidade foi suscitada pelos recorrentes no recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Novembro de 1996. Este aresto negara provimento ao agravo interposto pelos recorrentes da rejeição dos embargos de terceiro deduzidos pelos mesmos contra a penhora de bens móveis e imóveis, realizada na execução de sentença para pagamento de quantia certa, promovida pelo Banco P..., SA. No seu recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluíram os recorrentes o seguinte: a) A diferenciação entre posse civil e posse real ou efectiva é descabida, porque na realidade elas coincidem uma com a outra. b) Os recorrentes têm a posse jurídica e a posse real ou efectiva dos bens móveis e imóveis que adquiriram onerosamente por contrato, por escrituras de compra e venda e pelo registo; tendo o acórdão recorrido cometido a nulidade prevista na primeira parte da alínea d) do nº 1 do artigo 668º C.P.C. ao não se pronunciar sobre esta questão. c) A posse dos recorrentes é titulada e de boa fé, pública e pacífica, facto que foi desprezado pelas instâncias. d) Os recorrentes são terceiros para efeito dos presentes embargos, porquanto não intervêm no processo executivo nem representam os executados; as aquisições dos imóveis encontram-se definitivamente registadas a seu favor, pelo que, porque não foi ilidida, está de pé a presunção da titularidade do direito prevista no artigo 7º do Código do Registo Predial. e) Os actos de disposição de bens efectuados em data anterior ao registo da penhora e desde que registados prevalecem sobre esta e são oponíveis a terceiros. f) No campo do direito processual civil a lei nova é de aplicação imediata, não só porque versa sobre direito público, mas também por possuir um carácter meramente instrumental. g) O aresto a lavrar neste Tribunal deve, no caso vertente, aplicar o regime jurídico criado pelo D.L. 329-A/95, de 12/12 com as alterações do D.L. 180/96, de 25/9. h) À luz destes diplomas os requisitos da procedência ou não dos embargos de terceiro devem ser sindicados no regime da impugnação pauliana onde, designadamente nas alienações onerosas, se exige a prova da má fé do adquirente. l) Para rejeição dos embargos de terceiro é necessário que se prove não só que os alienantes transmitiram bens para se subtraírem às suas responsabilidades perante credores, mas também que os adquirentes colaborem cientemente nesse propósito, pelo que, ao não decidir assim, ambas as instâncias violaram o disposto no art. 1041º, nº 1, C.P.C.. i) A letra da lei não o refere expressamente, mas temos de fazer apelo ao seu espírito e à unidade do sistema jurídico, sob pena de o subvertermos criando um regime de favor se comparado com o regime análogo da impugnação pauliana. j) Também não se provou nos autos que fosse 'manifesto' por parte dos alienantes o intuito de prejudicar os credores, pois as datas indicados no despacho são muito pouco para preencher o conteúdo daquele adjectivo, tanto mais que existe uma pluralidade de executados. m) Além disso, a intenção de prejudicar credores desacompanhada de um prejuízo real não pode conduzir à rejeição dos embargos e à penhora de bens de terceiro que pelo registo goza de uma presunção de propriedade, até porque não se provou existirem quaisquer prejuízos efectivos para o credor exequente. n) Nos embargos de terceiro porque a prova produzida para a sua admissão ou rejeição é muito sumária, e não são dadas as garantias processuais de defesa de que goza a impugnação pauliana, não deve o julgador pretender criar um juízo certo e definitivo. o) O magistrado deve procurar, porque se trata de uma decisão provisória, decidir com base num juízo de simples probabilidade, dado que se é importante defender o exequente também o é defender o adquirente; porém e perante os factos vê-se que foi utilizado critério inverso. p) O despacho recorrido e mantido pela Relação viola o disposto no art. 8º do C.R.Predial, porquanto o embarcado é que deve impugnar em juízo os factos comprovados pelo registo, não pode ser o julgador a substituí-lo como é o caso. q) No velho regime dos embargos de terceiro a perfilhar-se o entendimento das instâncias não se dão as mesmas garantias de defesa integrantes da impugnarão pauliana, designadamente ao não se exigir, como entende a melhor doutrina, a prova de que o adquirente está de má fé. r) Violando-se não só o princípio da unidade do sistema jurídico, como também o princípio da igualdade previsto no artigo 13º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. s) O regime do artigo 1041º, nº 1 C.P.C. por desrespeitar aquele princípio plasmado na nossa lei fundamental é inconstitucional, porque gera a desigualdade na aplicação da lei a situações análogas e que devem merecer igual tratamento. t) Foram violados ainda os artigos 9º, nº 1, 350º, 819º, 1259º, 1260º, nº 2,
1261º, 1262º do C.Civil; 7º C.R.Predial e 13º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
3. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça considerou que 'a interpretação que vem sendo dada ao nº 1 do artigo 1041º do Código de Processo Civil não é nem ‘arbitrária’ nem ‘irrazoável’, nem ‘materialmente infundada’, fazendo uso das expressões que vêm sendo utilizadas pelo Tribunal Constitucional, designadamente no acórdão de 16 de Abril de 1997, publicado no Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1997'. O Supremo Tribunal de Justiça fundamentou tal conclusão em que, tendo sido os embargos instaurados como meio de defesa da posse dos recorrentes contra a penhora de bens, a referida penhora não poderia obter, 'ao menos de início, registo definitivo em relação aos imóveis, por eles não se encontrarem registados como propriedade de nenhum dos executados'. Deste modo, haveria 'um momento para se apreciar, com eventual recurso a todos os meios de prova, da efectiva bondade dos negócios jurídicos celebrados – se o titular inscrito for citado (assim diz o Código no nº 1 do artigo 119º) para declarar em dez dias se os prédios lhe pertencem e se declarar que sim, o juiz remeterá os interessados para os meios comuns (nº 4) e a conversão ou não do registo em definitivo aguardará'. Por outro lado, 'quanto aos bens móveis, os embargantes poderão fazer valer o seu direito de propriedade, ainda na execução, nos termos previstos nos artigos 910º e 911º do Código do Processo Civil'.
4. O problema de constitucionalidade suscitado é, pois, o de saber se o artigo 1041º, nº 1, do Código do Processo Civil, ao permitir a interpretação segundo a qual a rejeição dos embargos não exigirá a prova da má-fé do adquirente, tratará de modo diverso situação juridicamente idêntica à que serve de base à impugnação pauliana (artigos 610º e 612º do Código Civil). Na figura da impugnação pauliana, a prova da má-fé do adquirente dos bens do devedor é requisito necessário ao êxito da própria impugnação e, consequentemente, a sua prova constitui um ónus do impugnante.
No Tribunal Constitucional, os recorrentes apresentaram alegações que concluíram do seguinte modo: a) Para poderem ser rejeitados os embargos de terceiro, o art. 1041º, nº 1 C.P.C. deve ser interpretado no sentido de que seja manifesto que não só o transmitente fez a transmissão para se subtrair às suas responsabilidades, mas ainda que o adquirente colaborou cientemente nesse propósito do alienante; b) Melhor dito: deve-se provar tanto a má fé do alienante como a do adquirente; c) A letra da lei não contém esta exigência, mas também expressamente dela não prescinde, sendo certo que o espírito da lei e a unidade do sistema jurídico a isso conduzem, depois de analisados os institutos análogos da impugnação pauliana e do embargos de executado; d) Porque a não ser assim o adquirente está mais protegido no regime da impugnação pauliana, onde se tem de provar a sua má fé, do que nos embargos onde se prescinde daquela prova; e) o que ocasionaria a coabitação de dois regimes jurídicos diversos para situações análogas, em clara colisão com o referido princípio da unidade do sistema jurídico, e gerando situações de desigualdade de tratamento; f) Tendo a norma do art. 1041º, nº 1 C.P.C. sido interpretada e aplicada fora do condicionalismo que vimos de referir, mostra-se afectada de inconstitucionalidade material por violação do disposto no art. 13º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, deve tal norma ser julgada inconstitucional, quando interpretada e aplicada em termos de se admitir a rejeição dos embargos de 'terceiro sem que seja feita a prova de que foi manifesto ter o adquirente colaborado cientemente com o alienante que pretendeu com intuito fraudatório subtrair-se às suas responsabilidades,
5. Tudo visto, cumpre decidir.
II Fundamentação
6. Constatando que as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de
12 de Dezembro, remeteram o regime da rejeição dos embargos para o da impugnação pauliana, questionar-se-á se entre os embargos de terceiro e a impugnação pauliana quanto a transmissão onerosa de bens existe alguma analogia inultrapassável que impeça o legislador de estabelecer regimes distintos ou se, inversamente, poderão existir fundamentos que tornem a diferenciação em causa juridicamente sustentável. Isto é, perguntar-se-á se a diversidade de regimes constitui uma preferência legislativa compatível com o princípio da igualdade independentemente da sua conveniência.
7. Respondendo a tais questões, verifica-se que há uma relevante diferença entre as situações que suscitam a dedução dos embargos de terceiro e a impugnação pauliana. Nos embargos de terceiro, preexiste a ordenação de uma diligência judicial que ofende a posse do embargante, enquanto na impugnação pauliana o impugnante acciona um meio de garantia do seu crédito, suscitando-se, só aí, a intervenção judicial. O facto de nos embargos estarmos perante a defesa da posse contra os efeitos de uma diligência judicial confere a este instituto o carácter de recurso contra uma definição de situações jurídicas que adquiriram já uma certa consistência dada a intervenção do poder judicial. Daí que seja justificável, embora eventualmente discutível no plano da política legislativa, a não exigência de prova da má-fé dos adquirentes embargantes para que o tribunal possa rejeitar os embargos.
Assim, há uma pré-definição judicial da situação jurídica em que o embargante quer interferir que distingue os embargos de terceiro da impugnação pauliana. Neste último instituto, o impugnante parte de um estado de coisas pré-judicial, em que as situações jurídicas se desenvolvem normalmente, sem qualquer modelação judicial, no espaço onde domina a livre disponibilidade de bens pelos seus titulares (ainda que devedores em certas relações jurídicas). A impugnação pauliana intromete-se, assim, no livre desenvolvimento da esfera jurídica do devedor, interferindo na livre disposição dos respectivos bens. A sua lógica é a da limitação do espaço da autonomia privada em função de uma responsabilidade anteriormente constituída ou, no que diz respeito ao adquirente, a sua responsabilização por, de má-fé, contribuir para a não preservação das condições patrimoniais do devedor essenciais ao cumprimento das suas obrigações.
Revela-se, deste modo, uma especificidade da impugnação pauliana que justifica a exigência da prova da má-fé do adquirente, na esfera jurídica do qual, alheio à relação de crédito, vai interferir quem se prevalece da impugnação para garantir a efectividade de uma relação obrigacional. A procedência da impugnação pauliana poderá exigir, de modo compreensível, uma prova mais intensa da 'situação ilícita' do que a procedência dos embargos.
8. Por outro lado, os embargos de terceiro apenas acautelam a posse e não se destinam a dirimir o litígio relativo à propriedade dos bens. A própria penhora contra a qual são deduzidos os embargos não permitirá obter um registo definitivo dos bens imóveis quando eles não se encontrarem previamente registados como propriedade de nenhum dos executados, conforme refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. E também quanto aos bens móveis os embargantes poderão fazer valer o respectivo direito de propriedade ainda na execução, conforme se prevê nos artigos 910º e 911º do Código Civil, o que também é salientado pelo acórdão recorrido na fundamentação da decisão dada à questão de constitucionalidade.
Não são, assim, os embargos um meio de defesa de direitos de efeitos tão decisivos na conformação das relações jurídicas subjacentes como o será a impugnação pauliana relativamente ao direito de propriedade do adquirente de bens do devedor (artigo 616º, nº 1, do Código Civil).
Assim, os embargos intervêm apenas num momento executivo e são um mero meio de defesa da posse, enquanto a impugnação pauliana, que pressupõe sempre uma alienação a terceiro, é um meio de defesa de um direito. Isto pode justificar a opção legislativa pela diferenciação dos regimes, sem que se exclua a liberdade de o legislador estabelecer um regime idêntico.
9. A equiparação dos regimes da fundamentação da rejeição dos embargos de terceiro e da impugnação pauliana quanto à exigência de prova de má-fé do adquirente não é, consequentemente, uma decorrência da razão que possa ser imposta à decisão legislativa. É certo que poderão existir razões para uma tal equiparação, relacionadas com o modo de utilização destes institutos jurídicos, bem como com os desígnios de uma especial protecção da posse, no contexto social em que os embargos são habitualmente utilizados. Todavia, tais razões não são de natureza constitucional – não são impostas pelo princípio da igualdade -, inserindo-se antes no espaço de liberdade do legislador ordinário.
III Decisão
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar não inconstitucional a norma do artigo 1041º, nº 1, do Código do Processo Civil, na interpretação segundo a qual não é necessária para rejeição dos embargos a prova da má-fé do adquirente, negando, consequentemente, provimento ao recurso.
Lisboa, 28 de Abril de 1999 Maria Fernanda Palma Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa