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Processo n.º 54/99 ACÓRDÃO Nº 270/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. Â. e sua mulher C. recorrem para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação de Lisboa, de 26 de Novembro de 1998.
Pretendem os recorrentes que se aprecie a constitucionalidade das seguintes normas do RAU (Regime do Arrendamento Urbano), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
321-B/90, de 15 de Outubro:
(a). a do artigo 69º, n.º 1, alínea a), 2ª parte, “que contempla na denúncia para habitação os descendentes do 1º grau do senhorio”;
(b). e a do artigo 107º, n.º 1, alínea b), “que aumenta o prazo de 20 anos de permanência no locado do arrendatário para 30 anos”.
O acórdão recorrido julgou procedente o recurso interposto por N. e M., mulher do primeiro, da sentença do juiz de 1ª instância, que tinha julgado improcedente a acção de despejo por eles proposta contra os ora recorrentes, com fundamento na necessidade, para habitação de um seu filho, da casa que arrendaram a estes, em 1 de Março de 1970, e que era a cave do prédio urbano denominado “Vivenda H.”, sito na Rua ..., Alapraia, Estoril. Para assim concluir, o acórdão recorrido entendeu que o mencionado artigo 69º, n.º 1, alínea a), na parte questionada, não é organicamente inconstitucional. E entendeu, bem assim, embora tão-só implicitamente, que também não é inconstitucional o dito artigo 107º, n.º 1, alínea b), interpretado no sentido de abranger os casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga, o tempo de permanência do arrendatário, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio: de facto, escreveu-se aí que “é de aplicar o prazo de 30 anos, ainda que, à data da entrada em vigor do RAU, já tivessem decorrido 20 anos”; e, porque ainda não tinham decorrido 30 anos, mandou-se prosseguir a acção.
Neste Tribunal, os recorrentes apresentaram alegações, onde formularam conclusões, de que interessa destacar as seguintes:
(a). O artigo 69º, n.º 1, alínea a), do RAU já foi declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 55/99;
(b). O artigo 107º, nº 1, alínea b), do RAU, “quando interpretado [...] no sentido de abranger os casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga, o tempo de permanência do arrendatário, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio”, já foi julgado inconstitucional pelo acórdão n.º 259/98;
(c). A norma do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU é também inconstitucional,
“por exceder os limites da autorização legislativa constante da Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto”.
Os recorridos concluíram assim a sua alegação: a) Os arts. 69º, nº 1, al. a), e 107º, nº 1, al. b), do DL 321-B/900, de 15 de Outubro, não violam a Lei de autorização nº 42/90 de 10 de Agosto. b) Não ocorre a pretendida inconstitucionalidade orgânica porque a al. c) da mesma Lei autorizou o Governo a manter os princípios que acautelam a posição dos arrendatários que sejam social, ainda que não individualmente, úteis. c) Aquela Lei não proibiu reajustamentos nas leis do arrendamento, que reponham justiça social no jogo e equilíbrio de interesses entre as duas partes: locador e locatário. d) A Lei não pretendeu a imutabilidade das leis do Código Civil e atinente legislação porquanto autorizou expressa e tacitamente a alteração das mesmas – artigo 3º. e) Considerar que é inamovível o estatuto do arrendatário e que, por isso, não podia sofrer qualquer restrição, configura, essa sim, uma interpretação materialmente inconstitucional da Lei 42/90. f) Defender outro sentido do teor da referida al. c), feria de inconstitucionalidade material a Lei 42/90, por, com isso, serem violados os arts. 13º e 62º da CRP, arguição que, por cautela, se contrapõe.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Quanto ao artigo 69º, n.º 1, alínea a), 2ª parte:
Na pendência deste recurso, este Tribunal, pelo seu acórdão n.º 55/99 (publicado no Diário da República, I série-A, de 19 de Fevereiro de 1999), declarou inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do artigo 168º, n.º
1, alínea h), da Constituição (versão de 1989) -, a norma constante do artigo
69º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano (aprovado pelo Decreto-lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro), na parte em que refere os descendentes em 1º grau do senhorio.
Por isso, agora, só resta fazer aplicação ao caso dos autos desta declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
4. Quanto ao artigo 107º, n.º 1, alínea b):
4.1. Esta norma, na dimensão que aqui está sub iudicio (ou seja: interpretada, como o foi no caso dos autos, no sentido de abranger os casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga, o tempo de permanência do arrendatário, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio), já este Tribunal, embora com uma voz discordante, a julgou inconstitucional - por violação do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa - no acórdão n.º 259/98 (publicado no Diário da República, II série, de 7 de Novembro de 1998).
Não há razão para dissentir desse julgamento: como então se sublinhou, a norma do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU, assim interpretada, “adquire uma dimensão de imprevisibilidade e arbitrariedade contrária às directivas do artigo
2º da Constituição”.
É que, tendo já decorrido integralmente, no domínio da lei antiga (a Lei n.º
55/79, de 15 de Setembro), o tempo de permanência na casa arrendada que, segundo essa lei, obstava ao exercício do direito de denúncia pelo senhorio (20 anos), este deixou de poder despejar o inquilino, com fundamento na necessidade da casa para sua habitação ou dos seus descendentes em 1º grau. E, por isso, o arrendatário adquiriu o direito de permanecer nessa casa sem correr o risco de ver o senhorio invocar, triunfantemente, contra esse seu direito as referidas necessidades de habitação. Não podendo já o senhorio, no momento da entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano, exercer o direito de denúncia do arrendamento, achava-se criada uma situação que - nos dizeres do acórdão n.º 259/98 - representava para o arrendatário “uma mais valia de protecção da sua permanência no local arrendado”. A impossibilidade de o senhorio denunciar o contrato e o direito do arrendatário a permanecer na casa arrendada sem o perigo de ver requerida a denúncia era, assim, para este último, “um dado adquirido”. E, por isso, “o direito do arrendatário a permanecer no local arrendado” passou a ancorar-se, tal como naquele aresto se sublinhou, “no postulado da segurança jurídica que deriva do princípio do Estado de Direito”. Ora, não se descobre fundamento capaz de justificar a eliminação de um tal direito.
Dizer isto é concluir que o mencionado artigo 107º, n.º 1, alínea b), na interpretação feita pelo acórdão recorrido, viola, de forma inadmissível e intolerável, o direito que os arrendatários, com o decurso do tempo, tinham adquirido a permanecer no arrendado, sem o risco de denúncia do contrato. E, com isso, tal norma viola aquele mínimo de certeza e de segurança que os cidadãos devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito: impõe-se, de facto, que este organize “a protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida” (as palavras são do acórdão n.º
330/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas
277 e seguintes).
4.2. Tendo-se concluído que a norma constante do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arredamento Urbano, na interpretação feita pelo acórdão recorrido, viola o artigo 2º da Constituição, desnecessário se torna decidir se viola também (ou não) o disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea h), da Lei Fundamental
(versão de 1989), como se decidiu, mas com três vozes discordantes, no acórdão n.º 70/99 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Abril de 1999).
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). fazer aplicação ao caso dos autos da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do acórdão n.º 55/99 (publicado no Diário da República, I série-A, de 19 de Fevereiro de 1999), tendo por objecto a norma constante do artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano
(aprovado pelo Decreto-lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro), na parte em que refere os descendentes em 1º grau do senhorio;
(b). julgar inconstitucional - por violação do artigo 2º da Constituição - a norma constante do artigo 107º, n.º 1, alínea b), do mesmo Regime do Arrendamento Urbano, interpretada no sentido de abranger os casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga, o tempo de permanência do arrendatário, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio;
(c). em consequência, conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido quanto ao julgamento das questões de constitucionalidade, a fim de ser reformado em conformidade.
Lisboa, 5 de Maio de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida