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Processo n.º 1281/13
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Assim, importa apreciar se tais requisitos se encontram preenchidos, no presente caso.
(…) Analisada a decisão recorrida, conclui-se que a questão de constitucionalidade, erigida como objeto do recurso – independentemente de qualquer outra apreciação sobre a sua formulação - não corresponde à ratio decidendi da decisão recorrida.
Na verdade, o acórdão proferido, em 13 de novembro de 2013, pelo Supremo Tribunal de Justiça, contém a seguinte fundamentação:
“ Do exame do processo resulta que, após prolação do acórdão deste Supremo Tribunal que rejeitou o recurso de fixação de jurisprudência interposto pelo ora requerente por intempestivo, foi este incorrectamente notificado pela secção nos termos do n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, ou seja, para responder ao parecer emitido pelo Ministério Público (fls. 112), quando é certo que deveria ter sido notificado do acórdão proferido.
Sucede, porém, que com a respectiva nota de notificação não foi enviado ao ora requerente o parecer que o Ministério Público emitiu nos autos, antes cópia do acórdão deste Supremo Tribunal que rejeitou o recurso interposto pelo mesmo (cota de fls. 122), cópia que uma vez mais lhe foi enviada quando a secção deu conta do lapso em que incorreu ao notificá-lo nos termos do n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal.
Feito este esclarecimento prévio, apreciando a arguição de nulidade apresentada, cumpre observar que a inobservância do disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal não constitui nulidade, sendo susceptível de constituir mera irregularidade. Com efeito, em processo penal vigora em matéria de nulidades o princípio da legalidade, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular – n.º 1 do artigo 118º do Código de Processo Penal.
Não cominando a lei a sanção da nulidade para a inobservância do n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, certo é constituir mera irregularidade.
As irregularidades só determinam a invalidade do acto a que se referem e dos termos subsequentes que possam afectar quando tiverem sido arguidas pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado – n.º 1 do artigo 123º do Código de Processo Penal.
O recorrente A., conquanto incorrectamente notificado pela secção nos termos do n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, a verdade é que com a nota dessa notificação tomou conhecimento do acórdão deste Supremo Tribunal que rejeitou o recurso de fixação de jurisprudência por si interposto, o que se verificou no dia 9 de Outubro, posto que notificado por via postal registada enviada no dia 4 de Outubro, tendo-se a notificação por feita no terceiro dia posterior ao do envio (n.º 2 do artigo 113º do Código de Processo Penal).
Certo é que o requerimento de arguição de nulidade ora apresentado foi enviado a juízo no dia 21 de Outubro, ou seja, doze dias após o ora requerente ter tomado conhecimento do acórdão deste Supremo Tribunal que rejeitou o recurso de fixação de jurisprudência por si interposto, a significar que a eventual irregularidade cometida se encontra sanada.
Consignado se deixa, porém, que em recurso de fixação de jurisprudência, ao contrário do sustentado pelo recorrente Couto dos Santos, não há lugar à notificação do parecer do Ministério Público elaborado ao abrigo do n.º 1 do artigo 440º do Código de Processo Penal, posto que aquele recurso obedece a tramitação própria na qual não está incluída essa notificação.”
Resulta, pois, que o fundamento decisório do acórdão assentou na qualificação da inobservância da notificação do parecer do Ministério Público, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, como uma mera irregularidade, que se encontra sanada por não ter sido tempestivamente arguida.
Refere a decisão recorrida que, tendo a Seção procedido à notificação do recorrente, nos termos do referido artigo 417.º, n.º 2, – embora incorretamente – enviando cópia do acórdão que rejeitou o recurso interposto, só poderia o recorrente reagir, arguindo a “eventual irregularidade” nos três dias seguintes a contar daquele em que foi notificado para qualquer termo do processo, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Não o tendo feito, “a eventual irregularidade cometida” encontra-se “sanada”.
Na lógica argumentativa do acórdão em análise, a afirmação da desnecessidade de notificação do parecer do Ministério Público, elaborado ao abrigo do n.º 1 do artigo 440.º do Código de Processo Penal, não integra o fundamento jurídico decisivo para a solução do caso, correspondendo a um obiter dictum, conforme resulta, aliás, da utilização da expressão “[c]onsignado se deixa, porém” (itálico nosso), em introdução de tal afirmação.
Nestes termos, encontrando-se a solução dada ao caso ancorada em critério normativo que não coincide com o objeto do recurso, fica prejudicada a admissibilidade do mesmo.
De facto, a exigência de coincidência entre a ratio decidendi e o objeto do recurso prende-se com o caráter ou função instrumental do recurso de constitucionalidade, que se traduz na possibilidade de o julgamento da questão de constitucionalidade se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto. Tal possibilidade efetiva-se quando a decisão sobre a questão de constitucionalidade é suscetível de alterar o sentido ou os efeitos da decisão recorrida, implicando uma reponderação da solução dada ao caso, pelo tribunal a quo. Ao invés, inexiste tal possibilidade quando a decisão sobre a questão de constitucionalidade seja insuscetível de se projetar no caso concreto, por se reportar a critério normativo não convocado como fundamento decisório pela decisão recorrida.
Pelo exposto, atenta a demonstrada não verificação de um dos pressupostos de admissibilidade do recurso, face à natureza cumulativa dos mesmos, mostra-se ociosa a apreciação dos restantes, concluindo-se, desde já, pela inadmissibilidade do recurso e consequente não conhecimento do seu objeto.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. Manifesta o reclamante a sua discordância, relativamente ao teor da decisão sumária, referindo que a questão principal, na decisão recorrida – ao contrário do que refere a decisão reclamada - se prende com “o entendimento perfilhado de que ao recorrente não assiste o direito de se pronunciar sobre o parecer do M.P.”
Defende o reclamante que tal entendimento deve ser perspetivado como fundamento essencial para a rejeição do recurso.
Para sustentar tal posição, alega que, não obstante a decisão recorrida referir que a omissão de notificação do parecer do Ministério Público apenas poderia consubstanciar irregularidade, estando esta sanada por não ter sido tempestivamente arguida, a questão da sanação não é decisiva, porquanto da decisão recorrida resulta claramente que, ainda que tivesse existido arguição de tal vício, a mesma teria sido indeferida, por se considerar não assistir ao recorrente o direito de ser notificado para se pronunciar sobre o aludido parecer. Assim, de acordo com o reclamante, a questão principal não é a da sanação da irregularidade, mas o entendimento erigido como objeto do presente recurso, cuja constitucionalidade é questionada.
Conclui, pelo exposto, pugnando pelo provimento da reclamação e consequente admissão e conhecimento do objeto do recurso.
4. O Ministério Público, respondendo à reclamação, manifesta a sua concordância com a decisão reclamada.
Refere, em síntese, que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que a não notificação ao recorrente do parecer emitido pelo Ministério Público, ao abrigo do artigo 440.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, constituiria uma mera irregularidade – e não uma nulidade – encontrando-se sanada por não ter sido tempestivamente invocada. A referência à interpretação do preceito, conducente à desnecessidade de tal notificação, não integra a ratio decidendi do acórdão, consubstanciando apenas uma referência para conhecimento.
Pelo exposto, conclui pelo indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade – como se refere na decisão reclamada - resulta do acórdão recorrido que o fundamento da solução dada ao caso assentou na qualificação da inobservância da notificação do parecer do Ministério Público, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, como uma mera irregularidade, que se encontra sanada por não ter sido tempestivamente arguida.
Na estrutura do referido acórdão, é esta argumentação jurídica que dita o sentido da decisão, conforme se explica na decisão sumária proferida.
Não assiste, pois, razão, ao reclamante.
Sempre se dirá, porém, que ainda que se adotasse a perspetiva do reclamante, - quanto à configuração da afirmação constante do penúltimo parágrafo da decisão recorrida como “questão principal” – o recurso seria igualmente inadmissível, porquanto o que releva, para efeito de admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não é – como parece pressupor o reclamante – a circunstância de a linha argumentativa, que convoca o critério normativo questionado, ser principal ou, de alguma forma, secundária ou subsidiária. Decisivo, neste contexto, é sim saber se o sentido ou os efeitos da decisão recorrida se manteriam intocados, por o julgamento da questão de constitucionalidade ser insuscetível de nos mesmos se repercutir.
Na verdade, nos casos em que o tribunal a quo fundamenta a decisão em duas argumentações alternativas conducentes ao mesmo resultado – independentemente de assumir a preferência por uma e reputar a outra de secundária ou subsidiária – fica prejudicada a admissibilidade do recurso de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, quando este abrange critério normativo integrante de apenas uma das linhas argumentativas, exatamente porque, mesmo que tal critério venha a ser julgado inconstitucional, sempre se manterá incólume a outra linha trilhada pela decisão recorrida, garantindo o mesmo sentido decisório.
Por tudo quanto fica exposto, sendo certo que a fundamentação aduzida na decisão reclamada merece a nossa concordância, damos a mesma por reproduzida e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação.
III - Decisão
6. Assim, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 30 de dezembro de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 26 de fevereiro de 2014. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.