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Processo n.º 103/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO junto do 1ª Juízo Cível da comarca de Lisboa interpôs o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho do Juiz, de 29 de Janeiro de
1999, que indeferiu liminarmente a petição de execução instaurada ao abrigo do disposto no artigo 1º do Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro, por C...-BANCO..., SA, contra J... e R..., para cobrança da quantia de 136.723$00
(134.803$00, valor da livrança subscrita pelos executados, de que o Banco é portador; 1.847$00 de juros vencidos; 74$00 de imposto de selo sobre os juros vencidos) e dos juros vincendos. O recurso foi interposto em 4 de Fevereiro de 1999 e admitido por despacho de 15 de Julho de 1999, sendo remetido a este Tribunal, em 14 de Fevereiro de 2000.
Pretende o recorrente que este Tribunal aprecie a constitucionalidade da norma constante daquele artigo 1º do Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro, a que o despacho recorrido recusou aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade. O PROCURADOR-GERAL ADJUNTO em funções neste Tribunal apresentou alegações, que concluiu como segue:
1º. O regime constante do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro, ao mandar aplicar à execução para pagamento de quantia certa, de valor não superior à alçada dos tribunais de 1ª instância, mesmo que fundada em título extrajudicial, e em que não sejam penhorados imóveis ou estabelecimento comercial, o regime estabelecido no Código de Processo Civil para a execução de sentença condenatória, não viola, em termos desproporcionados e constitucionalmente ilegítimos, o princípio do contraditório, ínsito no direito de acesso aos tribunais, afirmado pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
2º. O diferimento do contraditório do executado para momento ulterior à realização da penhora – permanecendo esta como provisória até julgamento da oposição eventualmente deduzida na sequência da notificação pessoal do executado, nos termos do artigo 926º do Código de Processo Civil – ditado por prementes razões de celeridade e eficácia na efectivação prática e em tempo útil do direito do credor, não viola o referido princípio constitucional, atento o regime globalmente traçado para a tramitação de tal acção executiva.
3º. Na verdade – e para além de o próprio título executivo ser um documento que certifica ou indicia necessariamente, em termos julgados bastantes, a existência do débito – cumpre ao juiz, antes de ordenar a penhora, proferir despacho liminar, nos termos dos artigos 925º e 811º-A do Código de Processo Civil, devendo indeferir o requerimento executivo nos casos previstos nesta disposição legal, e sendo subsequentemente facultada ao executado, na sequência de notificação pessoal, nos termos do artigo 926º, o pleno contraditório, quanto à própria execução, ao despacho determinativo da penhora e à realização desta
(artigos 926º, n.º 3, 863º-A e 815º do Código de Processo Civil).
4º. E podendo o credor, que haja instaurado de forma temerária ou negligente execução com base em crédito inexistente ou já extinto, ser responsabilizado por todos os danos que tenha causado ao executado em consequência do desapossamento dos bens penhorados, nos termos dos artigos 456º e 457º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
5º. Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.
OS RECORRIDOS não alegaram.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio. A reforma do processo civil operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, reduziu o processo executivo a duas formas apenas: processo ordinário e processo sumário - excepção feita, claro é, às execuções especiais a que se refere o n.º 4 do artigo 466º do Código de Processo Civil. As formas do processo executivo (ordinária ou sumária) variam em função da natureza do título executivo, e não em função do valor. Assim, seguem a forma sumária as execuções fundadas em decisão judicial condenatória (ainda que pendente de recurso com efeito meramente devolutivo), salvo se a sentença carecer de liquidação nos termos do artigo 806º e seguintes (cf. artigos 45º,
46º, 465º, n.º 2, e 924º do Código de Processo Civil ); e seguem a forma ordinária as execuções fundadas em título executivo extrajudicial e, bem assim, as execuções de sentença em que a obrigação exequenda careça de ser liquidada pelo tribunal ou por árbitros nos termos do artigo 806º e seguintes [cf. artigos
45º, 46º, 465º, alíneas a) e b), do mesmo Código).
O Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro, veio, porém, ampliar o campo de aplicação do processo sumário de execução, pois manda que sigam essa forma de processo certos casos de execução de títulos extrajudiciais que, de acordo com o critério fixado pelo mencionado artigo 465º, deveriam seguir a forma ordinária.
É o que sucede, sempre que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
(a). destinar-se a execução ao pagamento de quantia certa;
(b). não ser o valor da execução superior ao valor da alçada do tribunal de 1ª instância (presentemente, 750.000$00: cf. artigo 24º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de
13 de Janeiro);
(c). recair a penhora sobre bens móveis ou direitos (com excepção do estabelecimento comercial) que não tenham sido dados de penhor.
Isto é o que resulta da norma aqui sub iudicio, que é o artigo 1º do referido Decreto-Lei n.º 274/97. Preceitua ele como segue: Artigo 1º (Execução para pagamento de quantia certa) A execução para pagamento de quantia certa, baseada em título que não seja decisão judicial condenatória, segue, com as necessárias adaptações, os termos do processo sumário, desde que se verifiquem os seguintes requisitos: a). ser a execução de valor não superior ao fixado para a alçada do tribunal de
1ª instância; b). Recair a penhora sobre bens móveis ou direitos que não tenham sido dados de penhor, com excepção do estabelecimento comercial.
A disciplina constante deste Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro – que entrou em vigor no dia imediato ao da sua publicação, não se aplicando, contudo,
às execuções que, nessa data, se encontravam pendentes (cf. artigo 4º) – justificou-a o legislador do seguinte modo: depois de referir que 'a recente reforma do Código de Processo Civil ampliou o elenco dos títulos executivos'; e que, para surtir efeito, essa medida 'tem de ser acompanhada da revisão mais profunda do processo de execução'; sublinhou afigurar-se-lhe 'indispensável uma intervenção pontual nesse domínio que simplifique e abrevie significativa parcela de execuções, as que têm por fim o pagamento de quantia certa até determinado montante': é que – ponderou – 'não pode aceitar-se que a duração média das acções executivas continue a oscilar entre 18 meses em 1990 e 17 meses em 1996' (cf. o respectivo preâmbulo). Foi com vista a dar corpo ao desígnio de simplificar e abreviar uma parcela significativa de execuções, que o legislador decidiu fazer aplicar 'aos demais títulos, com as adaptações necessárias, o regime do processo sumário estabelecido nos artigos 924º e seguintes do Código de Processo Civil, até agora privativo das execuções fundadas em decisão judicial condenatória, desde que o valor da execução não exceda o fixado para a alçada dos tribunais de 1ª instância (...) e a penhora recaia sobre bens móveis ou direitos, de que se exceptua o estabelecimento comercial' – lê-se no mesmo preâmbulo. 'Em tais casos- acrescentou-se – defere-se ao exequente o direito de nomeação de bens, sem prejuízo da cooperação do tribunal'; e, complementarmente, 'elimina-se a convocação de credores, passando a execução a decorrer entre exequente e executado, com dois únicos desvios: o da existência de credores que, no acto da penhora, invoquem direito de retenção sobre os bens penhorados e o dos credores, no caso de penhora de bens sujeitos a registo, que disponham ou venham a dispor de garantia real registada'. Disse-se mais: 'salvaguarda-se ainda a situação de pluralidade de execuções sobre os mesmos bens, prevista no artigo 871º daquele diploma'.
No artigo 2º do mesmo Decreto-Lei n.º 274/97 - cuja epígrafe é exclusão da reclamação de créditos - prescreve-se:
1. Nas execuções para pagamento de quantia certa, baseadas em qualquer título, em que se verifiquem os requisitos constantes do artigo anterior não é admitida a reclamação de créditos.
2. Exceptuam-se do disposto no número anterior: a). Os créditos que gozem de direito de retenção sobre os bens penhorados, desde que o titular o invoque no acto da penhora; b). Os créditos que sobre os mesmos bens gozem de garantia real, com registo anterior ou posterior ao registo da penhora.
3. O preceituado no n.º 1 não prejudica ainda o disposto no artigo 871º do Código de Processo Civil.
4. Os titulares dos créditos referidos na alínea b) do n.º 2 que tenham registo anterior ao da penhora são citados nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo
864º do mesmo Código.
5. Os titulares dos créditos referidos na alínea b) do n.º 2 que registem a garantia real depois do registo da penhora podem reclamá-los, independentemente de citação, no prazo de 15 dias, contado da junção aos autos da certidão a que se refere o n.º 1 do artigo 864º do Código de Processo Civil.
De acordo com o que se dispõe neste artigo 2º, qualquer que seja a natureza do título executivo (sentença judicial condenatória ou título executivo extrajudicial), verificando-se os requisitos previstos no artigo 1º do mesmo diploma legal (a saber: execução para pagamento de quantia certa, cujo valor não exceda o da alçada do tribunal de 1ª instância e em que apenas se vão penhorar bens móveis ou direitos não onerados por penhor, com excepção do estabelecimento comercial), a fase da convocação de credores e reclamação de créditos com garantia real é, em princípio, dispensada. Já, porém, assim não será, havendo, então, a fase da reclamação de créditos, quando, sobre os móveis ou direitos penhorados, incidirem garantias reais susceptíveis de registo, direito de retenção invocado no acto da penhora ou garantia emergente de penhora ulterior noutra execução (cf. os nºs 2 a 5 do citado artigo 2º).
É esta uma especialidade da tramitação deste tipo de processo sumário, a acrescentar às peculiaridades que são próprias do próprio processo sumário de execução.
As peculiaridades do processo sumário de execução são as seguintes: A primeira delas traduz-se em caber exclusivamente ao exequente o direito de nomear bens à penhora (cf. artigo 924º); A segunda peculiaridade consiste em a penhora ser ordenada e efectuada sem que o executado seja citado (cf. artigos 925º). Isso, obviamente, não dispensa o juiz de exercer o poder, que é simultaneamente um dever, de apreciar as questões referidas nos artigos 811º-A e 811º-B. Ao invés, exige dele um particular cuidado nessa apreciação. Ou seja: o juiz não fica dispensado de indeferir, liminarmente, o requerimento executivo no caso de se verificar alguma das seguintes situações:
(a). ser manifesta a falta ou a insuficiência do título executivo;
(b). ocorrerem excepções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso;
(c). ou, tratando-se de título executivo negocial, ser manifesta a inexistência da obrigação exequenda, por resultar dos autos a inexistência do respectivo facto constitutivo ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da mesma, que seja lícito ao juiz conhecer (cf. artigo 811º-A). Enfermando o requerimento executivo de irregularidades que não impliquem o seu indeferimento liminar, deve o juiz determinar o seu aperfeiçoamento (cf. artigo
925º). A terceira peculiaridade é esta: o contraditório sobre a admissibilidade da própria execução é diferido para momento posterior à realização da penhora (cf. artigo 926º, n.º 1) Na verdade, só depois de notificado do requerimento executivo e, simultaneamente, do despacho que ordenou a penhora e da realização desta – notificação que é pessoal, aplicando-se-lhe as disposições referentes à realização da citação (cf. artigo 926º, n.º 4) - pode o executado defender-se. Ou seja, só então pode:
(a). deduzir oposição à execução mediante embargos, caso se verifique algum dos fundamentos enunciados no artigo 813º ou, tratando-se de execução instaurada ao abrigo do Decreto-Lei n.º 274/97, no artigo 815º (cf. artigo 926º, n.º 1);
(b). deduzir oposição à penhora, caso se verifique algum dos fundamentos enunciados no artigo 863º-A (cf. artigo 926º, n.º 1);
(c). ou, no caso de a decisão executada não ter ainda transitado em julgado, requerer a substituição dos bens penhorados por outros de valor equivalente (cf. artigo 926º, n.º 2).
Caso o executado se defenda por embargos e deduza oposição à penhora, cumular-se-ão estes dois meios de defesa (cf. o n.º 3 do artigo 926º).
Ao processo sumário de execução regulado no Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro, aplica-se o disposto no Código de Processo Civil 'em tudo o não estiver regulado nos artigos anteriores' – dispõe o artigo 3º do mesmo diploma legal. Por isso, caso se verifique algum dos fundamentos de indeferimento liminar do requerimento executivo (a saber: manifesta falta ou insuficiência do título executivo; ocorrência de excepções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso; ou, tratando-se de título executivo negocial, manifesta inexistência da obrigação exequenda, por resultar dos autos a inexistência do respectivo facto constitutivo ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da mesma, que seja lícito ao juiz conhecer); mesmo que, no despacho liminar, não tenha havido indeferimento liminar da execução, por não terem sido apreciadas as questões que o podiam fundamentar; e ainda que o executado não tenha deduzido embargos; o juiz pode, ao abrigo do que preceitua o artigo 820º, rejeitar, oficiosamente, a execução, até ao despacho que ordene a realização da venda ou das outras diligências destinadas ao pagamento.
Vista a norma, que o Juiz recorrido teve por inconstitucional, no quadro legal em que se inscreve – e conhecido, assim, o seu exacto sentido e alcance -, vejamos se o juízo de inconstitucionalidade é ou não fundado.
4. A questão de constitucionalidade.
4.1. Sustenta o Juiz recorrido que a norma sub iudicio viola o princípio do contraditório.
É que – diz em síntese -, 'é admissível [...] que nas acções executivas para pagamento de quantia certa com processo sumário os autos se iniciem com a penhora dos bens nomeados pelo aí exequente, porquanto o demandado teve oportunidade de se defender das pretensões contra si deduzidas pelo demandante na acção declarativa que terminou com a sentença condenatória que constitui o título executivo', 'mas já o não é quando o executado não teve a possibilidade de, através do due process of law, apresentar as suas razões contra os factos que motivam o pedido do exequente'.
4.2. O direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada das partes poder aduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras [cf. o acórdão n.º 86/88 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 11º, páginas 741 e seguintes)].
É que – sublinhou-se no acórdão n.º 358/98 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no acórdão n.º
249/97 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997) – o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder expor as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que 'a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'.
A ideia de que, no Estado de Direito, a resolução judicial dos litígios tem que fazer-se sempre com observância de um due process of law já, de resto, o Tribunal a tinha posto em relevo no acórdão n.º 404/87 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 10º, páginas 391 e seguintes). E, no acórdão n.º 62/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 18º, páginas 153 e seguintes) - depois de se sublinhar que o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório 'possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do princípio do Estado de Direito' - acrescentou-se que, por outro lado, esses princípios constituem 'directas emanações do princípio da igualdade'.
As partes num processo têm, pois, direito a que as causas em que intervêm sejam decididas 'em prazo razoável' e 'mediante um processo equitativo' (cf. o n.º 4 do citado artigo 20º).
É que - como se sublinhou no acórdão n.º 1193/96 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 35º, pagina 529 e seguintes) -, a prontidão na administração da justiça é fundamental para que o direito à tutela judicial tenha efectiva realização, pois, quando a sentença é tardia, corre-se o risco de já não se fazer justiça. 'Vencer o pleito, mas só tarde e a más horas – adverte MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1956, página
372) – equivale, em certa medida, a não o vencer. Vitória tardia é meia vitória. Para o próprio vencido, a demora na decisão pode significar um sacrifício acrescido, pela prolongação do estado de incerteza consequente do litígio'. Portanto, o direito de acesso aos tribunais também se concretiza através do direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas – acentuou-se no acórdão n.º 223/95 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 30º, páginas 1.027 e seguintes).
A prontidão na administração da justiça reclama celeridade processual, embora – advertiu-se no acórdão n.º 646/98 (publicado no Diário da República, II série, de 3 de Março de 1999) – não possa exagerar-se nessa preocupação de celeridade, pois uma rapidez excessiva, que se traduzisse num 'ritmo processual trepidante', prejudicaria a ponderação das partes e a do próprio tribunal, podendo comprometer o acerto da decisão. Ora, a preocupação primeira no processo deve ser fazer justiça. De todo o modo, a celeridade processual deve ser uma preocupação não apenas do juiz, mas também do legislador. E, por isso – como se decidiu no mesmo acórdão n.º 646/98 – ela justifica a adopção de mecanismos que desencoragem as partes de adoptar comportamentos capazes de conduzir ao protelamento indevido do processo.
Tal como se sublinhou no citado acórdão n.º 1193/96, a ideia de processo equitativo e leal (due process of law) exige, não apenas um juiz independente e imparcial – um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência – como também que as partes sejam colocadas em perfeita paridade de condições, por forma a desfrutarem de idênticas possibilidades de obter justiça. Criando-se uma situação de 'indefensão', a sentença só por acaso será justa. Com razão observava LOISEL: 'brief juge, folle sentence'.
Registe-se ainda que o princípio do contraditório se acha consagrado no artigo
3º do Código de Processo Civil, que preceitua:
1. O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2. Só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3. O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4. Às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência preliminar ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
Como o processo civil tem uma estrutura dialéctica ou polémica, revestindo a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), o juiz não pode, em regra, tomar qualquer providência contra determinada pessoa, sem que ela seja previamente ouvida. Excepcionalmente, porém, pode o juiz diferir a audição do requerido para momento ulterior ao decretamento da providência peticionada. Necessário é, contudo, que o diferimento da audição se possa justificar materialmente por razões de eficácia e de celeridade, e não limite ou restrinja, de forma intolerável, o direito de defesa. Este é o sentido do princípio do contraditório, tal como a lei o recorta.
O Código de Processo Civil consagra também princípio da igualdade das partes, ao prescrever no artigo 3º-A que 'o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais'.
4.3. Expostos estes princípios e fazendo aplicação dos mesmos à norma que aqui está em apreciação, há que anotar, antes de mais, que, no sistema do Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro, o executado não fica numa situação de 'indefensão'. De facto, ele pode defender-se, opondo-se não só à execução, como também à penhora. Apenas sucede que somente pode exercer o direito de defesa, depois de efectuada a penhora – ou seja: depois de ser desapossado dos bens ou direitos penhorados (móveis, títulos de crédito, abonos, vencimentos, depósitos bancários, etc.). É o que claramente resulta do preceituado no artigo 926º conjugado com os artigos 848º, 856º, 857º, 860º, 860º-A, 861º, 861º-A e 862º do Código de Processo Civil. Antes de ser desapossado dos bens ou direitos penhorados, não é dada ao executado oportunidade de apresentar razões, nem provas destinadas a demonstrar a inadmissibilidade da execução ou da penhora.
O que, pois, se verifica é que o funcionamento da regra do contraditório é diferido para momento posterior ao da efectivação da penhora. O contraditório é observado na execução, mas só depois de feita a penhora; não antes do desapossamento que esta implica. Algo de semelhante sucede nos procedimentos cautelares, onde o juiz também pode tomar providências contra o requerido sem prévia audição deste (cf. artigo 385, nºs 1 e 3, 394º e 408º, n.º 1, do citado Código). E, quanto a estes – recte, quanto ao arresto, que é decretado sem audiência da parte contrária (cf. o citado artigo 408º, n. 1) – o Tribunal, no seu acórdão n.º 337/99 (publicado no Diário da República, II série, de 22 de Julho de 1999), já decidiu não haver violação do direito de acesso aos tribunais, em virtude de 'a defesa contra o despacho judicial que decreta o arresto estar sempre assegurada, seja por recurso, seja por oposição de embargos, nos termos conjugados dos artigos [...]
384º, n.º 3, 388º e 392º' do referido Código' [cf. também os acórdãos nºs 739/98 e 598/99 (publicados no Diário da República, II série, de 8 de Março de 1999 e de 20 de Março de 2000 respectivamente)].
A razão, num caso e noutro, é, de resto, idêntica: trata-se de assegurar a efectiva realização dos direitos do autor ou do exequente, que poderia ficar comprometida pela demora na realização da citação, se a providência ou a penhora houvessem de ser decretadas (e efectuadas) só depois de a citação ser levada a efeito.
É que - e considerando agora apenas o caso da execução -, para além de a demora na efectivação da citação, em si mesma, ser susceptível de fazer perigar a conservação dos bens, não é de excluir a hipótese de o executado, sabendo da execução, os pôr a salvo da penhora. Por outro lado, também se não pode pôr de parte a possibilidade de o executado se furtar à citação, demorando ainda mais a sua efectivação, desse modo avolumando aqueles riscos. Finalmente, procura-se evitar que, com a dedução de oposições manifestamente infundadas, se prolongue indevidamente o procedimento executivo, frustrando-se ou, ao menos, retardando-se a realização do direito do exequente.
São, pois, razões de eficácia, a exigir celeridade processual, que fundamentam o apontado desvio à regra da audição prévia, pois, como se sublinhou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 274/97, procurou-se simplificar e abreviar uma 'significativa parcela de execuções' -'as que têm por fim o pagamento de quantia certa até determinado montante' -, uma vez que 'não pode aceitar-se que a duração média das acções executivas continue a oscilar entre 18 meses em 1990 e 17 meses em
1996'. Trata-se de razões idênticas às que estão na base do artigo 838º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável à acção ordinária de execução, que dispõe que, quando 'a imediata notificação ao exequente do despacho que ordena a penhora for susceptível de pôr em risco a eficácia da diligência, pode o juiz determinar que a notificação apenas se realize depois de efectuada a penhora'.
Ora, já atrás se viu que a prontidão na administração da justiça reclama celeridade processual. E esta (a celeridade processual) justifica a adopção de mecanismos que desencoragem as partes de adoptar comportamentos capazes de conduzir ao protelamento indevido do processo ou que impossibilitem ou dificultem injustificadamente a realização do direito que ele tem por objecto. As providências que, nos procedimentos cautelares e no processo sumário de execução, o juiz adopta sem prévia audiência do requerido têm, de resto, natureza provisória. De facto - e atendo-nos, agora, à penhora -, ela pode vir a ser levantada (e, assim, a ficar sem efeito): basta, como se viu acima, que o executado, depois de notificado nos termos do citado artigo 926º, n.º 4, deduza oposição (à execução ou à penhora) e convença o tribunal de que não há título executivo ou de que ele
é insuficiente; de que o débito sob execução não existe; ou de que a penhora é ilegal ou excessiva (cf. os citados artigos 813º, 815º, 863º-A e 863º-B, conjugados com o artigo 926º, nºs 1 e 3). Dizer isto é sublinhar que, se o executado convencer o juiz de que, não obstante a existência de um título executivo inculcar o contrário, o crédito reclamado na execução não existe, cessa imediatamente a agressão patrimonial que a penhora significou.
Caso isso suceda, impor-se-á, naturalmente, a condenação do exequente como litigante de má fé, nos termos dos artigos 456º e 457º do Código de Processo Civil, responsabilizando-o pelos prejuízos que causou ao executado, ao promover, com dolo ou negligência, uma execução infundada ou temerária, dando azo à penhora de bens ou direitos deste. Ora, há-de convir-se que a possibilidade desta condenação contribui para refrear a eventual tentação de se promoverem execuções sem fundamento – o que, naturalmente, serve para aliviar a debilitação das garantias de defesa do executado que o diferimento do funcionamento do contraditório, obviamente, implica.
Acresce ainda um outro motivo, não despiciendo, capaz de, nas execuções com processo sumário instauradas ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 274/97, de
8 de Outubro, conferir fundamento racional ao diferimento do contraditório. É o seguinte: tais execuções fundam-se em títulos que certificam, com um razoável grau de certeza, a existência da quantia exequenda. E, por isso, nada há de excessivo que, à semelhança do que sucede com as execuções fundadas em sentença condenatória, esses títulos sejam dados à execução imediatamente, isto é, sem prévia citação do executado. A razoabilidade desta solução ganha ainda maior consistência quando se tiver em conta que ela só vale para as dívidas de pequeno valor (têm que conter-se dentro da alçada dos tribunais de 1ª instância), que estejam documentadas por título administrativo ou por escrito assinado pelo devedor - ou seja: por escritos que, com um grau de grande probabilidade, levam a acreditar na existência do crédito. E quando se considere, bem assim, que o decretamento da penhora não é automático, pois, como se viu, o juiz deve indeferir liminarmente o requerimento executivo, sempre que se verifique algum dos fundamentos previstos nos citados artigos 811º-A, n.º 1, e 815º; e, se o não tiver feito, nem o executado, no momento próprio, deduzir oposição, o juiz pode ainda, oficiosamente, rejeitar a execução (cf. o citado artigo 820º).
4.4. Argumentar-se-á, ex adverso, que, de todo o modo, tais títulos executivos, porque de documentos extrajudiciais se trata, não têm a credibilidade das sentenças condenatórias, essas sim a justificar que se ordene a penhora sem prévia citação do executado, já que a sua prolação foi precedida de uma fase declaratória, que decorreu com observância do contraditório.
Não pode deixar de reconhecer-se o acerto desta observação. Simplesmente, convém também lembrar que a existência de uma sentença condenatória apenas garante que, no momento em que a mesma foi proferida, a dívida existia; já não garante que tal dívida exista na data em que a execução é instaurada, pois pode ter ocorrido, entretanto, algum facto que a tenha extinguido. Vale isto por dizer que a existência de uma sentença condenatória, cuja execução imediata ninguém questiona, também não coloca o executado completamente a coberto do risco de ver os seus bens (ou direitos) penhorados para pagamento de uma dívida que, entretanto, se extinguiu.
Trata-se, certamente, de um risco menor do que aquele que o executado corre quando se dá à execução um título executivo extrajudicial ao abrigo da norma aqui sub iudicio. Mas – como sublinha o Ministério Público na sua alegação – a diferença entre uma situação e outra não é 'de natureza, mas tão-somente de grau: havendo sentença condenatória, a execução ‘abusiva’ apenas se poderá fundar em factos extintivos posteriores à prolação daquela; não havendo sentença declaratória do direito, poderá estar em causa, não apenas a possível extinção da obrigação, posteriormente a certa data, mas a própria inexistência do débito exequendo'.
Seja como for, tendo em conta as garantias de defesa, que o quadro legal em que se inscreve o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro, oferece ao executado, o diferimento do contraditório, nas execuções instauradas ao abrigo do disposto em tal normativo, não limita, nem restringe, de forma intolerável ou demasiadamente acentuada, o direito de defesa do executado. Ao que acresce que existem razões, designadamente de eficácia e celeridade, capazes de justificar esse diferimento.
4.5. Em conclusão: a norma sub iudicio (ou seja: a norma que consta do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro) - que manda aplicar o regime estabelecido no Código de Processo Civil para a execução de sentença condenatória à execução para pagamento de quantia certa, de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância, mesmo que fundada em título extrajudicial, desde que, aí, não sejam penhorados imóveis, estabelecimento comercial ou móveis onerados por penhor - não é inconstitucional. Ela não atinge designadamente, em termos desproporcionados e constitucionalmente ilegítimos, o princípio do contraditório, ínsito no direito de acesso aos tribunais (consagrado no artigo
20º da Constituição).
Tal norma – assim se decidiu nos acórdãos nºs 162/2000 e 227/2000 (ambos por publicar) – também não viola o direito de propriedade, nem o princípio da proporcionalidade, pois que 'não afecta intolerável e desproporcionadamente o direito do executado, na medida em que a penhora não implica privação do direito de propriedade sobre o bem penhorado'.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). conceder provimento ao recurso;
(b). em consequência, revogar o despacho recorrido no que concerne ao julgamento de inconstitucionalidade, a fim de ser reformado em conformidade com o aqui decidido sobre a questão.
Lisboa, 2 de Maio de 2000 Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta) José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa Declaração de voto
Votámos vencidos, no essencial, pelas seguintes razões:
1. O princípio do contraditório é, não só, um princípio fundamental do Processo Civil (cfr., em especial, o artigo 3º do Código de Processo Civil), mas um princípio constitucionalmente tutelado, enquanto integrante do princípio do Estado de direito democrático e do acesso à justiça e aos tribunais
(respectivamente, artigos 2º e 20º Constituição), como o Tribunal Constitucional afirmou por diversas vezes (ver, por exemplo, os acórdãos nºs 47/90, nº 337/90 ou nº 284/91, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional , 15º vol., pág.
177 e segs., 17º vol., pág. 307 e segs. e 19º vol., pág. 395 e segs.).
2. A primeira e mais elementar exigência do princípio do contraditório é o reconhecimento, àquele contra quem se formula uma pretensão, do direito de se defender antes de o tribunal a apreciar. Só em casos excepcionais em que a defesa prévia poderia inutilizar a medida solicitada é legítimo (e necessário) admitir que a decisão a preceda; é o que pode suceder, como se sabe, no domínio da justiça cautelar.
3. Com a reforma do Código de Processo Civil operada pelos Decretos-Leis nºs
329-A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro, entrada em vigor a 1 de Janeiro de 1997, foram reduzidas a duas as formas de processo executivo comum, explicando o legislador no preâmbulo do primeiro que se 'operou(...) uma fundamental diferenciação entre a execução de sentença, por um lado, e a execução de qualquer outro título executivo ou de decisão condenatória que careça de ser liquidada em plena fase executiva, e reservando-se para a primeira
– qualquer que seja a dilação temporal entre a data em que foi proferida a sentença e o momento da instauração da execução – o figurino da actual execução sumaríssima, traduzido na desnecessidade de citação inicial do executado, com imediata realização da penhora e concentração, em momento anterior a esta, da reacção à admissibilidade, quer da própria execução, quer da penhora efectuada'. Elegeu-se, assim, como critério fundamental de delimitação a natureza – judicial ou extra-judicial, ou seja, resultante de processo onde o executado foi já citado e condenado, ou não – do título executivo; e apontou-se como diferença também fundamental das duas formas de processo a inexistência ou existência de citação do executado antes da realização da penhora. Mais não fez o legislador, aliás, do que respeitar o que afirma, em diversas passagens do mesmo preâmbulo, sobre a relevância do princípio do contraditório, em obediência ao qual introduziu diversas alterações ao longo do Código.
4. A verdade, todavia, é que o formalismo do processo comum ordinário de execução não se mostra adequado à execução de dívidas de baixo valor; rapidamente se verificou que o regime anterior era, neste ponto, preferível. Aprovou-se, então, o Decreto-Lei nº 274/97, de 8 de Outubro, sem, todavia, se alterar expressamente o Código de Processo Civil. Contrariando o critério de delimitação antes escolhido, o novo diploma veio permitir a utilização da forma sumária para a execução de títulos extra-judiciais – que, note-se, podem ser simples escritos particulares sem qualquer força probatória no que toca à respectiva autoria (cfr. nova redacção da al. c) do artigo 46º do Código de Processo Civil). Poder-se-ia sustentar que, mandando o artigo 1º do referido Decreto-Lei nº
274/97 aplicar as regras do processo sumário 'com as necessárias adaptações' que, entre elas, se contaria a citação inicial do executado, anterior, portanto,
à determinação da realização da penhora, que é, sem dúvida, um acto particularmente agressivo do património do executado. Não foi, todavia, nesse sentido que, neste caso, o juiz interpretou tal norma, antes pressupôs a impossibilidade de citação inicial. E, assim sendo, votámos vencidos a decisão de a julgar não inconstitucional, não por ocorrer violação dos artigos 18º, nºs 1 e 2 e 62º, nº 1 da Constituição, mas por se verificar uma infracção do princípio do contraditório.
5. Diga-se, a terminar, que nem sequer se afigura necessária tal infracção para alcançar o objectivo da celeridade obviamente pretendido pelo Decreto-Lei nº
247/97. Com efeito, sempre haverá citação do executado (cfr. nºs 1 e 4 do artigo
926º do Código de Processo Civil); não se vê, portanto, que tal finalidade ficasse comprometida se a citação precedesse a penhora e se, quanto ao mais, se aplicassem as regras da execução sumária.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito