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Processo n.º 631/97 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. H... impugnou contenciosamente o despacho do SECRETÁRIO DE ESTADO PARA OS ASSUNTOS FISCAIS (de 17 de Novembro de 1989), que, em processo disciplinar, lhe aplicou a pena de reforma compulsiva por infracções cometidas enquanto soldado da extinta Guarda Fiscal.
Não tendo obtido ganho de causa, recorreu para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, alegando, inter alia, que 'o artigo 31º da LPTA, na parte em que impõe ao particular o ónus de requerer notificação da fundamentação do acto, como meio de suspender o prazo de recurso contencioso, é materialmente inconstitucional, por ofensa do [ ...] n.º 3 do artigo 268º da Lei Fundamental'.
O Supremo Tribunal Administrativo, pelo acórdão de 1 de Outubro de 1997, concluiu que o mencionado artigo 31º, tal como fora interpretado na decisão que então se impugnava, 'não fere a Constituição da República'; e, por isso, negou provimento ao recurso.
2. É deste acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 1 de Outubro de 1997, que agora recorre, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma que se contém no artigo 31º, n.º 2, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos
(LPTA), 'com a interpretação [ ...] de que o interessado tem o ónus de requerer a notificação ou certidão dos elementos omitidos em anterior acto de publicação ou notificação como meio de diferir o início da contagem do prazo de interposição do recurso contencioso'.
Neste Tribunal, alegou o recorrente, formulando as seguintes conclusões:
1. A norma do n.º 2 do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, prevê uma mera faculdade, que o interessado poderá ou não utilizar, e cujo não exercício não acarreta para o mesmo quaisquer consequências.
2. Com a Revisão Constitucional operada pela Lei n.º 1/89, e com a nova redacção dada ao n.º 2 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa (actual n.º
3), os actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, têm que ser obrigatoriamente notificados aos interessados
3. Nos termos da mesma norma constitucional tais actos carecem de fundamentação expressa, resultando do texto daquela norma que a fundamentação deve constar do próprio acto de notificação.
4. Não constando da notificação a fundamentação integral do acto, verifica-se incumprimento da norma constitucional vertida no artigo 268º, n.º 3, directamente aplicável e vinculativa das autoridades administrativas nos termos do artigo 18º da Constituição da República, vício determinante da ilegalidade do próprio acto de notificação e da ineficácia deste.
5. Consagrando o artigo 268º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa um verdadeiro direito fundamental do administrado à notificação e fundamentação contextual, não pode a lei ordinária ser interpretada no sentido de caber ao administrado na hipótese de notificação desacompanhada da fundamentação integral do acto, o ónus de requerer a notificação desta em prazo determinado, sob pena de preclusão do direito de recurso contencioso.
6. A interpretação efectuada pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão recorrido de que o n.º 2 do citado artigo 31º do Decreto-Lei n.º 267/85 contém um ónus para o interessado, é, assim, contrária ao disposto no artigo 268º, n.º
3, da Constituição da República, na versão dada pela Revisão de 1989 (e na actual), que consagra para o interessado um direito fundamental à notificação acompanhado da fundamentação e impõe à Administração o correlativo dever de notificar o acto e a respectiva fundamentação.
7. A mesma norma do citado n.º 2 do artigo 31º do referido diploma legal, ao estabelecer que o prazo do recurso contencioso se contará da notificação ou da entrega de certidão contendo a fundamentação, caso o interessado tenha recorrido esta no prazo de um mês, é materialmente inconstitucional, por ofensa do citado artigo 268º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, já que deste preceito resulta para a Administração a obrigação de notificação quer do acto quer da fundamentação integral deste e para o administrado o direito correspondente.
8. Por força da imposição constitucional contida no artigo 268º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, que obriga a Administração a notificar o acto conjuntamente com a fundamentação, só existe notificação válida e eficaz quando esta é acompanhada da fundamentação integral do acto.
9. Revestindo o direito à notificação carácter instrumental em relação ao direito ao recurso contencioso previsto no n.º 4 do citado artigo 268º, só a notificação acompanhada da fundamentação integral do acto determina o início de contagem do prazo de recurso contencioso, não recaindo sobre o particular, na hipótese de notificação incompleta, qualquer ónus de requerer a notificação dos elementos em falta.
10. Termos em que, dando-se provimento ao recurso, deverá ser julgada materialmente inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 31º do Decreto-Lei n.º
267/85, com a interpretação efectuada pelo acórdão recorrido, de que sobre o recorrente recai o ónus de requerer no prazo de um mês, a notificação da fundamentação em falta do acto, como meio de diferir o início do prazo de recurso contencioso, interpretação contrária ao imperativo constitucional contido no artigo 268º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa a partir da Revisão de 1989.
O MINISTRO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA concluiu a sua alegação, dizendo que 'a norma do n.º 2 do artigo 31º, conjugada com as normas dos artigos 28º, n.º 1,
29º, 30º, n.º 1, e 85º, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, está em plena conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 268º da Constituição República Portuguesa, não padecendo, por isso, do vício de inconstitucionalidade'.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir. II. Fundamentos:
4. A norma sub iudicio: A Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (aprovada pelo Decreto-Lei n.º
267/85, de 16 de Julho) - depois de, no artigo 28º, estabelecer os prazos de recurso contencioso de actos anuláveis; e de, no artigo 29º, fixar o dies a quo desse prazo - dispunha, no artigo 30º (revogado, entretanto, pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro), que, 'para efeitos de recurso', a notificação devia indicar 'o autor do acto' e 'o sentido e a data da decisão', e conter 'os fundamentos' desta.
O artigo 31º do mencionado diploma legal dispõe:
1. Se a notificação [ ...] não contiver a fundamentação integral da decisão e as demais indicações a que se refere o artigo anterior, pode o interessado, dentro de um mês, requerer a notificação das que tenham sido omitidas ou a passagem de certidão que as contenha.
2. Se o interessado usar da faculdade concedida no número antecedente, o prazo para o recurso conta-se a partir da notificação ou da entrega da certidão que tenha sido requerida.
3. A apresentação do requerimento previsto no n.º 1 pode ser provada por duplicado do mesmo, com o registo de entrada no serviço que promoveu a [ ...] notificação, ou por outro documento autêntico.
O acórdão recorrido considerou que, para a existência de 'uma real notificação',
é essencial apenas a indicação do autor do acto, da sua data e do sentido da decisão. 'Existindo [ esses] elementos essenciais, mas não constando da notificação os fundamentos da decisão, o acto é oponível desde logo, mas a lei confere ao interessado a faculdade de diferir o termo a quo do recurso contencioso, que porventura pretenda intentar dele, para o momento em que lhe for entregue pela Administração uma notificação regular ou a certidão, entretanto requeridas ao abrigo do n.º 1 do artigo 31º'. Neste entendimento da lei, se, ao notificar-se um acto administrativo, apenas se indica aos interessados a autoria, o sentido e a data desse acto, mas não se cumpre o dever (imposto pelo n.º 2 do referido artigo 30º) de lhes comunicar os fundamentos da decisão tomada, a notificação é inteiramente válida e eficaz. O interessado pode, porém, requerer, dentro de um mês, a notificação desses fundamentos ou a passagem de certidão que os contenha (cf. artigo 31º, n.º 1). Se o fizer e quiser impugnar contenciosamente o acto que assim lhe foi notificado, o prazo para o recurso conta-se a partir da notificação da fundamentação ou da entrega da certidão requerida (cf. artigo 31º, n.º 2). Caso o interessado não requeira, dentro de um mês, a notificação da fundamentação em falta ou certidão que a contenha, o prazo para impugnar contenciosamente o acto administrativo conta-se da data da notificação feita com omissão dessa fundamentação (cf. artigo 29º, n.º 1, conjugado com o artigo 31º, n.º 2).
A norma que o recorrente tem por inconstitucional e que o acórdão recorrido aplicou é a que se contém no n.º 2 (conjugado com o n.º 1) do dito artigo 31º, que impõe ao interessado o ónus de requerer, no prazo de um mês, a notificação da fundamentação em falta do acto, como meio de diferir o início do prazo de recurso contencioso.
É esta questão de constitucionalidade que há que decidir.
5. A questão de constitucionalidade:
5.1. Este Tribunal, no seu acórdão n.º 489/97 (publicado no Diário da República, II série, de 18 de Outubro de 1997), julgou inconstitucional - por violação do artigo 268º, nº 4 (conjugado com o nº 3), da Constituição da República Portuguesa - a norma do artigo 29º, nº 1, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, interpretada no sentido de mandar contar o prazo para o recurso contencioso de actos administrativos sujeitos a publicação obrigatória da data dessa publicação.
Nesse aresto, houve oportunidade de escrever o seguinte: A notificação visa dar conhecimento pessoal aos interessados dos actos administrativos susceptíveis de afectar a sua esfera jurídica. Dispõe, por isso, o artigo 268º, nº 3, da Constituição (revisão de 1989) que 'os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei'. Este preceito constitucional é interpretado por J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 935) no sentido de que nele se impõe à Administração 'um dever de dar conhecimento aos interessados, mediante comunicação oficial e formal', dos actos administrativos que lhes respeitem. Os actos administrativos que devem ser notificados aos interessados - prescreve o artigo 66º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) - são os que
'decidam sobre quaisquer pretensões por eles formuladas'; os que 'imponham deveres, sujeições ou sanções, ou causem prejuízos'; e os que 'criem, extingam, aumentem ou diminuam direitos ou interesses legalmente protegidos, ou afectem as condições do seu exercício'. Após a revisão constitucional de 1989 (cf. o citado artigo 268º, nº 3) - contrariamente ao que sucedia no texto de 1982, em que apenas se exigia a notificação quando os actos não devessem ser obrigatoriamente publicados -, os actos administrativos devem ser sempre notificados aos interessados, mesmo quando tenham que ser oficialmente publicados (cf. neste sentido, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. e loc. cit.). E isto, porque - como pondera o Magistrado do Ministério Público - a notificação é um 'elemento essencial para o exercício, em tempo útil, do recurso contencioso ou dos demais meios procedimentais admitidos no âmbito da jurisdição administrativa'. Sendo a notificação do acto administrativo essencial para o efectivo conhecimento pelos interessados dos actos da Administração susceptíveis de os atingir na sua esfera jurídica, seria irrazoável e claramente excessivo contar o prazo para o recurso contencioso da publicação de tais actos, quando esta seja obrigatória, em vez de tal contagem se fazer a partir da notificação. Tal significaria, na verdade, impor aos interessados na eventual impugnação contenciosa dos actos administrativos lesivos dos seus direitos ou interesses um
ónus que poderia tornar particularmente oneroso o acesso à justiça administrativa (recte, o exercício do direito ao recurso contencioso). De facto, esse modo de contagem do prazo obrigá-los-ia a manterem-se atentos à publicação desses actos, se não quisessem correr o risco de ver caducar o direito à impugnação contenciosa. E isso, sem que se descubra qualquer interesse público nesse modo de contagem, pois que - repete-se - a notificação é, hoje, constitucionalmente obrigatória.
5.2. Sendo a notificação do acto administrativo essencial para o efectivo conhecimento pelos interessados dos actos da Administração susceptíveis de os atingir na sua esfera jurídica, só se cumpre a imposição feita pelo artigo 268º, n.º 3, da Lei Fundamental ('os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei'), quando se dá conhecimento ao interessado da decisão tomada em toda a sua integralidade; ou seja, quando se lhe comunica não apenas o autor do acto, o sentido da decisão adoptada e a data em que o foi, como também as razões (de facto e de direito) -
é dizer: os fundamentos - por que assim se decidiu. Só assim, com efeito, o interessado se pode dizer esclarecido em termos de, conscienciosamente, poder aceitar a decisão ou reagir contra ela. Uma notificação assim - uma notificação que inclua a fundamentação do acto administrativo notificado - é elemento essencial para o exercício esclarecido do direito de recurso contencioso ou de outros meios de impugnação.
Não se compreenderia, de resto, que a norma constitucional em referência - que, a mais de impor a notificação dos actos administrativos aos interessados, obriga
à sua 'fundamentação expressa e acessível' quando, como no caso acontece,
'afectem direitos ou interesses legalmente protegidos' - dispensasse a Administração de comunicar essa fundamentação a esses mesmos interessados.
É esta também a interpretação que do preceito constitucional fazem J.J.GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 935), quando escrevem: A notificação respeita ao acto administrativo globalmente considerado, pelo que, no caso de ele dever ser fundamentado, deve incluir também a fundamentação, que dele deve fazer parte integrante. O cidadão tem o direito de conhecer, do mesmo passo, o teor da decisão e a respectiva fundamentação, não tendo de requerer esta posteriormente a fim de avaliar o alcance integral da decisão e poder decidir do recurso a quaisquer meios de impugnação.
Quando, pois, se notificar um acto administrativo ao respectivo interessado, essa notificação deve incluir a fundamentação desse acto. Isso mesmo resulta do que dispõe o artigo 68º do Código de Procedimento Administrativo.
Mas, o que ora importa decidir é o seguinte: se a Administração, em vez de cumprir cabalmente essa sua obrigação, notifica ao interessado apenas o sentido da decisão tomada, a data em que o foi e quem a tomou, violar-se-á a Constituição, quando, como faz a norma sub iudicio, se impõe àquele o ónus de ser ele a requerer, no prazo de 1 mês, que se lhe notifiquem os fundamentos do acto administrativo ou que se lhe entregue certidão que os contenha, sob pena de, não o fazendo, ver correr o prazo para o recurso contencioso a partir da data da notificação deficiente?
Entende o Tribunal que, no caso, não ocorre violação da Constituição De facto, desde logo, a norma em causa não dispensa a Administração de notificar integralmente o acto administrativo ao respectivo interessado; apenas, prevenindo a hipótese de tal não ter sido feito, manda contar o prazo para o recurso contencioso da data em que o interessado tomar, efectivamente, conhecimento da fundamentação do acto. É para isso que lhe impõe que, no prazo de 1 mês contado da notificação deficiente, requeira que a fundamentação lhe seja notificada ou certificada. Depois, com a imposição desse ónus, cujo cumprimento não torna o exercício do direito ao recurso particularmente difícil ou oneroso, o que se pretende é evitar que o acto administrativo fique aí
'dependurado', ou seja, indefinidamente sujeito a ser impugnado. Ora, isso – há-de convir-se -, tendo como alternativa contar o prazo para o recurso da própria notificação deficiente, é motivo que, no plano constitucional, não pode deixar de legitimar a referida solução legislativa.
É que a certeza é um valor não despiciendo nos quadros do Estado de Direito. E ela não existe, enquanto o acto administrativo for susceptível de ser impugnado.
5.3. Conclusão: a norma que se contém no n.º 2 (conjugado com o n.º 1) do artigo
31º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, ao fazer recair sobre o interessado o ónus de requerer, no prazo de um mês, a notificação da fundamentação em falta do acto, como meio de diferir o início do prazo de recurso contencioso, não viola qualquer norma ou princípio constitucional; designadamente não viola o artigo 268º, n.º 3, da Constituição da República.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide negar provimento ao recurso; e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Abril de 1999 Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida