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Proc. n.º 370/98
2ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional: I. Relatório:
1. J. L. e mulher instauraram acção contra J. Lm. e mulher e M. Lm. e mulher, pedindo, além de uma indemnização por perdas e danos, que os demandados fossem condenados a reconhecer aos autores o direito de usar e fruir o prédio rústico identificado na petição, mantendo-se o contrato de arrendamento que vigorava com os anteriores proprietários do prédio, bem como a reconhecer o direito de passagem sobre um outro prédio identificado na petição. O juiz do processo, no despacho saneador, julgou procedente, após resposta dos autores, a excepção de nulidade do contrato de arrendamento invocada pelos réus e, em consequência, declarou extinta a instância. Inconformados, interpuseram os demandantes recurso de agravo para o Tribunal da Relação do Porto que, por Acórdão de 23 de Outubro de 1997, decidiu negar provimento ao agravo e confirmar a decisão recorrida, visto que:
'No caso concreto, os AA., ora agravantes, não só não juntaram o necessário exemplar do invocado contrato de arrendamento, como nem sequer alegaram que a falta fosse imputável à parte contrária – ‘in casu’ os RR. Deste modo, ao julgador apenas se impunha – e impõe – declarar as previstas consequências legais: extinção da instância.(...)'. Dessa decisão reclamaram os agravantes para a conferência, visando 'pedir o respectivo aclaramento e arguir nulidades'. O Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 18 de Dezembro de 1997, decidiu,
'não havendo qualquer aclaração a fazer ou nulidade a suprir', indeferir esse mesmo pedido de aclaração, 'por impertinente'.
2. Interpuseram então os ora reclamantes recurso para o Tribunal Constitucional,
'ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1, do artigo 70º e nos artigos 75º e
75º-A, da Lei n.º 28/82', invocando para tanto que:
'1 – A mera declaração de extinção da instância, na perspectiva do disposto no artigo 5º, do DL n.º 385/88, de 25/10, apenas poderá ser entendida nos exactos termos que daquela disposição resultam, não se podendo daí concluir que a declaração de extinção da instância resulta do facto de o contrato ser declarado nulo.
2 - Interpretado o disposto no n.º 5 do artigo 35º do Dl n.º 385/88, de 25/10, no sentido de que a declaração de extinção da instância pressupõe a nulidade do contrato de arrendamento, viola os Princípios do Estado de Direito e do Acesso ao Direito consagrados nos artigos 2º, 20º, da Constituição e viola ainda o disposto nos artigos 205º, n.º 2 e 208º, n.º 2, da mesma Lei fundamental.' Por despacho do juiz relator no Tribunal da Relação do Porto, de 12 de Fevereiro de 1998, tal recurso não foi admitido, com o seguinte fundamento:
'acontece que nas decisões referidas pelo recorrentes não foi rejeitada ou recusada, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação do conteúdo ou do regime jurídico de qualquer norma jurídica, até porque em tais decisões não se faz alusão a qualquer inconstitucionalidade, muito menos se concretiza qualquer norma jurídica que tenha sido desaplicada por inconstitucionalidade. Tendo, porém, em atenção as aludidas considerações dos requerentes, a propósito da 'admissibilidade do recurso' afigura-se-nos que, quando as fizeram,, estariam a pensar, não na hipótese prevista na alínea a) do art. 70º n.º 1 referida, mas na da alínea b), que prevê o 'recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.' É que os requerentes mencionaram expressamente a norma do n.º 5 do art. 35º do Dec.-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, norma esta que foi, efectivamente, aplicada não só na decisão recorrida ()1ª instância) como também no Acórdão desta Relação, de 23-10-1997, a fls. 67 e segs. Acontece, todavia, que os ora requerentes apenas falaram em (eventual) inconstitucionalidade do n.º 5 do artigo 35º aludido, no requerimento em que, a fls. 25-26 dos autos, vêm pedir o ‘aclaramento e arguir nulidades’ do mencionado Acórdão de 23.10.1997. Sendo assim, como é, temos de convir que os ora requerentes não suscitaram a inconstitucionalidade da referida norma (n.º 5 do artigo 35º aludido) ‘durante o processo’ como se exige no mencionado artigo 70º, n.º1, alínea b).'
3. É deste despacho que vem deduzida a presente reclamação, na qual se repete a argumentação que já tinha sido aduzida no requerimento por intermédio do qual os reclamantes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, e se acrescenta que
'só aquando do requerimento de aclaração e arguição de nulidade é que os reclamantes tomaram conhecimento, pela primeira vez, do sentido interpretativo do n.º 5 do artigo 35º do DL n.º 385/88, de 25/10 (veja-se a este propósito o Ac. N.º 644/97, proferido neste Tribunal, no processo n.º 250/97, 2ª Secção)'.
4. Em vista do processo, o Ministério Público pronunciou-se pela manifesta improcedência da reclamação, já que 'o recurso interposto carece de qualquer fundamento enquanto estruturado na alinea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82', e que, se se fundasse na alínea b) da mesma disposição, 'o recorrente não suscitou, durante o processo – isto é, antes da prolação da decisão recorrida – podendo perfeitamente fazê-lo, a questão de inconstitucionalidade a que veio reportar o recurso', notando-se ainda que na decisão recorrida 'as normas questionadas não foram manifestamente aplicadas com o sentido ou interpretação invocados pelo ora reclamante.' Cumpre, agora, apreciar e decidir. II. Fundamentos:
5. Os reclamantes pretenderam interpor recurso para o Tribunal Constitucional do referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Outubro de 1997 ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(Lei do Tribunal Constitucional). Segundo esta alínea, cabe recurso para o Tribunal Constitucional, das decisões dos tribunais 'que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade.' Ora, lendo o acórdão do Tribunal da Relação, logo se vê que neste não se recusou a aplicação de qualquer norma, como exige a alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, antes se aplicando o artigo 35º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro. Aliás, tal decisão não contém qualquer referência, expressa ou implícita, a uma questão de constitucionalidade. Assim, temos de concluir que o despacho reclamado decidiu bem, quando não admitiu o recurso com fundamento no artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional.
6. Tendo em atenção, todavia, as considerações feitas no requerimento de interposição do recurso - que se referem à alegada inconstitucionalidade da norma do artigo 35º n.º 3 do citado Decreto-Lei n.º 385/88, aplicada no processo
-, o despacho reclamado admitiu a hipótese de os ora reclamantes terem querido antes referir-se à alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. E, efectivamente, na reclamação para este Tribunal pode ler-
-se que
'os recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional de dois Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo do disposto na al. B) do n.º
1 do artigo 70º e nos artigos 75º e 75º-A da Lei 28/82, com fundamento em terem aplicado a norma do n.º 5 do artigo 35º do DL n.º 385/88, de 25/10, numa interpretação violadora dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao Direito, consagrado nos artigos 2º e 2º da Constituição e ainda do disposto nos artigos 205º, n.º 2 e 208º, n.º 2 da mesma Lei Fundamental.' Mesmo admitindo que a referência, no requerimento de interposição do recurso, à alínea a) do n.º 1 do artigo 70º, tenha ficado a dever-se a mero lapso material dos recorrentes (resultando das considerações feitas para justificar o recurso que pretendiam referir-se antes ao recurso da alínea b)), ainda assim não se podem considerar verificados os requisitos para o recurso ao abrigo dessa alínea b). Na verdade, os ora recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade do artigo 35º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, na interpretação segundo a qual a declaração de extinção da instância aí prevista pressupõe a nulidade do contrato de arrendamento. Dispõe este artigo
35º, n.º 5:
'Nenhuma acção judicial pode ser recebida ou prosseguir, sob pena de extinção da instância, se não for acompanhada de um exemplar do contrato, quando exigível, a menos que logo se alegue que a falta é imputável à parte contrária.' Ora, o Acórdão da Relação de que os reclamantes pretenderam recorrer para o Tribunal Constitucional limita-se a verificar que os autores não só não juntaram o exemplar a que se reporta o n.º 5 do artigo 35º como não alegaram logo que a falta fosse imputável aos réus. O Tribunal da Relação não se pronunciou, aliás, sobre a questão de saber se a declaração de extinção da instância pressupõe ou não a declaração de nulidade do contrato de arrendamento, nem respondeu implicitamente a essa questão, limitando-se a verificar que os reús não estavam, nem estão, impedidos de invocar a nulidade resultante da falta de redução a escrito do alegado contrato de arrendamento. E isto mesmo foi repetido na decisão do pedido de aclaração, formulado pelos recorrentes. Sendo assim, logo se vê que a interpretação do artigo 35º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 385/88, impugnada pelos recorrentes, não constitui verdadeira ratio decidendi para esse Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que se limitou a aplicar aquele artigo 35º, n.º 5. Não pode, pois, dizer-se que tal interpretação tenha sido aplicada por este Tribunal, não se verificando o correspondente pressuposto para o recurso de constitucionalidade.
7. Acresce que os ora reclamantes apenas suscitaram a questão da constitucionalidade do artigo 35º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 385/88 – na referida interpretação, segundo a qual a extinção da instância pressupõe a nulidade do contrato -, no pedido de aclaração do Acórdão da Relação. Todavia, como se decidiu no Acórdão nº 352/94 (publicado no Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), deve entender-se a exigência de suscitação da inconstitucionalidade durante o processo, 'não num sentido meramente formal
(tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão', 'antes de esgotado o 'poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita'. É este o único sentido do dito requisito que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado (ver também o Acórdão n.º
155/95, publicado no Diário da República, II série, de 20 de Junho de 1995). Assim, 'porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença, e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura e ambígua, há-
-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade.' Esta orientação, como também se salientou no Acórdão n.º 352/94, 'sofre restrições apenas em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final'. Mas não é este, manifestamente, o caso dos autos, não procedendo a alegação dos recorrentes de que teriam tomado conhecimento, pela primeira vez, dessa interpretação do n.º 5 do artigo 35º do Decreto-Lei n.º 385/88, aquando do requerimento de aclaração e arguição de nulidade.
É que, como se disse, essa interpretação não foi sequer aplicada pelo Tribunal da Relação. Este limitou-se a reconhecer, por um lado, que os réus não estavam impedidos de, por via de excepção, invocar a nulidade do contrato de arrendamento, e a, por outro lado, confirmar a decisão de extinção da instância por os autores não terem junto o exemplar do contrato de arrendamento exigido pelo artigo 35º, n.º 5, nem invocado logo a imputabilidade da sua falta à parte contrária. Ainda, portanto, que se admitisse que o recurso havia sido interposto ao abrigo da alínea b) (e não a)) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Cosntitucional, e que os restantes requisitos para ele exigidos estivessem verificados, nunca poderia ser admitido, por falta de suscitação da alegada inconstitucionalidade durante o processo. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação, manter o despacho reclamado de não admissão do recurso e condenar o reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta. Lisboa,23 de Junho de 1998 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa