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Processo n.º 105/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 143/2013:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e B., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em 12 de julho de 2012 (fls. 3585 a 3593), posteriormente complementado pelo acórdão proferido, em conferência, pelo mesmo Tribunal e Secção, em 29 de novembro de 2012 (fls. 3606 a 3609-verso), que indeferiu arguição de nulidade do primeiro e conheceu de suscitação de inconstitucionalidade relativamente aos artigos 97º, n.º 4, 374º, n.º 2, 379º, n.º 1, alíneas a) e c) e 425º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal (CPP), para que seja apenas apreciada a constitucionalidade, por violação “do princípio da proteção da confiança inscrito no âmbito do art. 2º da CRP, bem como [d]o princípio de um princípio equitativo, como tal consagrado no art. 20º da CRP”, das seguintes interpretações normativas:
i) “[I]nterpretação normativa dada ao art. 474º do C.P.P. no sentido de que cabe ao Tribunal da 1ª instância a competência para decidir da prescrição ou não de procedimento criminal de arguido condenado pelo Supremo Tribunal de Justiça, após acórdão proferido pelo Supremo Tribunal sobre o mérito da causa, quando a invocação dessa prescrição ocorre dentro do prazo em que, em abstrato, o arguido ainda pode arguir nulidades, pedidos de esclarecimentos ou recorrer para o Tribunal Constitucional, mesmo que o Supremo Tribunal tenha determinado a baixa do processo para esse efeito” (fls. 3622);
ii) “[I]nterpretação normativa dada às regras dos arts. 10º, 13º, 14º e 16º do C.P.P., devidamente conjugadas com os arts. 98º e 100º da Lei 3/99, de 3 de janeiro (ou outras que se venham a julgar aplicáveis, designadamente devido a um regime de sucessão temporal), no sentido de que cabe ao Tribunal da 1ª instância – in casu, ao Juiz da Vara Criminal respetiva – a competência para decidir da prescrição ou não de procedimento criminal de arguido condenado pelo Supremo Tribunal de Justiça, após acórdão proferido pelo Supremo Tribunal sobre o mérito da causa, quando a invocação dessa prescrição ocorre dentro do prazo em que, em abstrato, o arguido ainda pode arguir nulidades, pedidos de esclarecimentos ou recorrer para o Tribunal Constitucional, mesmo que o Supremo Tribunal tenha determinado a baixa do processo para esse efeito” (fls. 3622 e 3623);
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo”, proferido a 14 de janeiro de 2013 (cfr. fls. 3626), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que sempre seria forçoso apreciar o preenchimento de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, n.º 2, da LTC.
Sempre que o Relator verifique que não foram preenchidos os pressupostos de interposição de recurso, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Importa começar por notar que este Tribunal apenas dispõe de poderes para conhecer da inconstitucionalidade de normas ou de interpretações normativas que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos (artigo 79º-C da LTC). Ora, nos presentes autos, deve ainda ter-se presente que o recorrente apenas coloca em crise um acórdão proferido (e posteriormente confirmado) pela 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa que, por sua vez, conheceu de recurso interposto de despacho proferido pelo Juiz titular do processo junto da 1ª Vara Criminal de Lisboa, que julgou extinto o procedimento criminal, por prescrição (fls. 3448 a 3450), e não do despacho proferido pelo Juiz-Relator junto da 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 03 de fevereiro de 2013 (fls. 3426), nos termos do qual se determinou a baixa imediata dos autos ao tribunal da primeira instância, para que se conhecesse da questão da prescrição invocada pelo ora recorrido B..
Tendo isto por assente, importa recordar que o referido despacho que deu por extinto o procedimento criminal expressamente afastou a aplicação do artigo 474º do CPP:
«Na verdade, não se encontrando ainda o processo em fase de execução, a invocação do disposto no Art.º 474.º do Código de Processo Penal poderá não fazer muito sentido. Assim, uma questão prévia ou incidental, como a prescrição, encontra-se inserida no âmbito do conhecimento das questões pelo tribunal de recurso, naquilo que decorre do preceituado nos Art.ºs 410.º, n.º 1 e 424.º, n.º 2, ex vi Art.º 368.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal.
Apesar disso, por o despacho acima descrito que determinou a baixa dos autos não foi impugnado, fica este tribunal vinculado a tramitar e a conhecer desta mesma questão pendentes em face do que veio a ser determinado pelo tribunal de última instância em instância de recurso. (…)
Mas a decisão de baixa dos autos não pode deixar de vincular esta 1.ª instância.» (fls. 3448-verso)
Daqui decorre, sem margem para qualquer dúvida, que a decisão de primeira instância – que deu, mais tarde, causa ao acórdão agora recorrido – nunca aplicou efetivamente a primeira interpretação normativa, que constitui agora objeto do presente recurso, pois excluiu a aplicação do artigo 474º do CPP, em função de o processo não se encontrar, então, em fase de execução de sentença condenatória. Pelo contrário, fundou-se no trânsito em julgado de um despacho anteriormente proferido por um tribunal de recurso que, na sua perspetiva, vincularia o tribunal recorrido.
Esse entendimento vem, posteriormente, a ser corroborado pela decisão ora recorrida, proferida pela 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, que afirmou – bem ou mal, não cabe a este Tribunal avaliar, por manifesta carência de poderes para esse efeito –, para que dúvidas não restassem, que:
«E, como bem refere o Arguido recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça, em sede de recurso, decidiu que a competência para conhecer da prescrição pertencia à primeira instância, que, por seu turno, reconheceu e assumiu tal competência. Aquela decisão do Supremo Tribunal de Justiça não foi impugnada e, por isso mesmo, transitou em julgado, tornando-se vinculativa, face ao disposto, i. a., no art. 40º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (…).
Sempre se dirá que nada obsta a que a questão da prescrição seja conhecida por despacho do juiz titular do processo, antes tal procedimento, além de ser o commumente adotado, é o que se adequa às normas adjetivas aplicáveis. Aliás, é o expoente do princípio do JUIZ NATURAL, porquanto o juiz titular do processo é-o em resultado de uma distribuição aleatória do mesmo, feita nos termos legalmente prescritos, o que nem sequer está posto em causa no recurso.» (fls. 3592)
E, de modo ainda mais esclarecedor:
«Porém, e como atrás vem sido explanado, o tribunal a quo em momento algum aplicou ou contrariou o espírito do referido normativo que se não aplicava ao caso.» (fls. 3593, com negrito e sublinhado de origem)
Assim sendo, na medida em que o Tribunal Constitucional não pode conhecer de questões normativas que não tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos (artigo 79º-C da LTC), mais não resta que concluir pela impossibilidade legal de conhecimento do objeto do recurso, quanto à primeira questão normativa.
Por sua vez, quanto à segunda interpretação normativa, importa realçar que o recorrente nem sequer indicou um concreto e específico preceito legal do qual decorresse a interpretação normativa, limitando-se a elencar os vários preceitos da lei processual penal que regulam a matéria da competência dos tribunais criminais. De qualquer modo, na medida em que imputa essa impossibilidade de identificação mais especificada à própria decisão recorrida – que, em boa verdade, também não logra autonomizar um específico preceito legal fundamentador da competência do tribunal de primeira instância – e que, além disso, consegue identificar uma específica interpretação normativa extraída de preceitos legais (ainda que genéricos) que antes identificou, tal não seria obstáculo intransponível para o conhecimento do objeto do recurso, quanto a esta segunda parte. Claro está, caso não subsistisse – como subsiste – outro fundamento que impede o conhecimento do mesmo.
Assim é porque o recorrente admite não ter suscitado previamente a referida questão de inconstitucionalidade normativa, conforme lhe impunha o n.º 2 do artigo 72º da LTC, “porque esse específico entendimento não fora invocad[o] pela decisão da 1ª Vara Criminal, nem por ninguém, não se conhecendo jurisprudência que alguma vez o tenha invocado, nem sendo razoável que se contasse com a possibilidade de tal invocação, razão pela qual não tinha que ser arguida antes do presente requerimento” (fls. 3623).
Não tem razão, porém, o recorrente. Mesmo a admitir-se que a referida interpretação normativa não resulta do despacho proferido na 1ª instância – e tal seria dificilmente sustentável, atenta a similitude do enunciado semântico das primeira e segunda interpretações normativas, que apenas variam quanto aos preceitos legais identificados para suporte das mesmas –, certo é que, após a prolação do acórdão de fundo, em 12 de julho de 2012 (fls. 3585 a 3593), o recorrente teve a oportunidade processual de deduzir arguição de nulidade do mesmo, em 11 de setembro de 2012 (fls. 3599 e 3600). Aliás, através desse mesmo requerimento, o recorrente logrou identificar e suscitar a inconstitucionalidade de uma outra interpretação normativa – desta feita, relativamente a uma alegada omissão de pronúncia e consequente fundamentação deficiente da decisão [cfr. § 5º, a fls. 3600] –, que agora, nos presentes autos de constitucionalidade, optou por deixar cair.
Como tal, se pôde antecipar e suscitar a inconstitucionalidade daquela interpretação normativa, que decorria do acórdão proferido em 12 de julho de 2012, também poderia – e deveria – ter antecipado a inconstitucionalidade da segunda interpretação normativa, que agora escolheu como objeto do presente recurso. Não tem, pois, razão quando afirma não ter tido oportunidade processual de impugnar a inconstitucionalidade dessa segunda interpretação normativa, antes da interposição do presente recurso. Simplesmente, só agora configurou a sua possibilidade, quando devia tê-lo feito em momento anterior.
Em face do não preenchimento dos requisitos processuais que regem o recurso de constitucionalidade, mais não resta que concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso, também quanto à segunda questão de interpretação normativa.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformado com a decisão proferida, o recorrente veio deduzir a seguinte reclamação, cujos termos ora se resumem:
«I. BREVE INTROITO
1. O recorrente denunciou um ato de corrupção dirigido contra ele, como Vereador da Câmara Municipal de Lisboa, e praticado pelo arguido destes autos, através do seu irmão, C., que igualmente logo o denunciou.
2. A denúncia da corrupção efetuada por um titular de um cargo político, em que o próprio denunciante é o visado, é um ato singular na vida cívica portuguesa, que tem custado ao recorrente (bem como ao seu irmão) os maiores incómodos, apenas compensados (tantas vezes se tem estado quase só nessa luta) pela consciência de se ter cumprido um dever.
3. No final de um processo judicial sinuoso, o arguido acabou por ser condenado, pelo crime de corrupção, a uma pena de prisão, suspensa na condição do pagamento ao Estado da quantia de €200.000,00, exatamente o montante que se tinha proposto oferecer ao recorrente.
4. O acórdão condenatório, proferido pelo STJ a 20.01.2012, transitou em julgado (pelo menos do ponto de vista material), já que: i) a arguição de nulidade, que se lhe seguiu, foi desatendida por ter sido considerada manobra dilatória destinada a obstar ao trânsito em julgado; ii) o subsequente recurso para o Tribunal Constitucional não foi admitido.
E tal condenação materialmente transitada em julgado é — pelo menos para o recorrente — o que mais importa.
5. Porém, aconteceu o insólito de a 1ª instância ter vindo a declarar-se competente para conhecer da arguição de uma prescrição suscitada e ocorrida já após a prolação do acórdão do STJ, o que a Relação, através do acórdão recorrido, aceita.
6. Ninguém — com bom senso — pode compreender este absurdo, que, salvo melhor opinião, atinge o princípio da proteção da confiança em que se deve fundar qualquer sistema de justiça.
7. É por isso que o recorrente não baixa os braços e — cumprindo o seu dever até ao fim, mesmo com o risco do pagamento das gravosas custas a que este ato o expõe — apresenta a presente reclamação.
II. CRONOLOGIA DOS ANTECEDENTES PROCESSUAIS
8. Neste item, dá-se por reproduzido o que consta dos números 1 a 16 do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
III. DOS TEMAS DO RECURSO
(…)
10. Na decisão sumária ora sob reclamação, a Exma. Senhora Conselheira Relatora decidiu não conhecer o objeto do recurso, com dois fundamentos distintos:
• Quanto à primeira inconstitucionalidade suscitada, por entender que o TC não pode conhecer de questões normativas que não tenham sido aplicadas pelos tribunais recorridos;
• Quanto à segunda inconstitucionalidade arguida, por ter julgado que a questão poderia ter sido antecipada e suscitada em momento anterior, quando se arguiu a nulidade do acórdão de 12.07.2012, a fls. 3599 e a 3600.
11. Quanto à não tomada de conhecimento da primeira inconstitucionalidade, o recorrente conforma-se com o que foi doutamente decido, reconhecendo a consistência da argumentação (embora dela discordando).
12. Assim sendo, a presente reclamação tem apenas por objeto a decisão tomada quanto à segunda inconstitucionalidade arguida.
IV. DO TEMA DA RECLAMAÇÃO
13. O Tribunal da Relação veio sustentar que a decisão da 1ª instância não se fundaria no artigo 474.° do CPP (ao contrário do que, salvo melhor opinião, decorre do despacho da instância em apreço, que claramente enquadra a questão no âmbito do artigo 474.° do CPP, embora disso discordando, mas fazendo-o porque teria sido o Supremo Tribunal a determinar a baixa dos autos para esse efeito).
14. De qualquer forma, o Tribunal da Relação expressamente afasta a aplicação ao caso dos autos do artigo 474.° do CPP, fundando o juízo que faz acerca da competência do juiz da 1ª instância — competência essa que o recurso do assistente colocara em causa, considerando que a incompetência do tribunal da 1ª instância gera uma nulidade insanável, nos termos do artigo 119.°/al e) do CPP — nas normas adjetivas aplicáveis (que não especifica direta ou indiretamente quais são), sendo aliás o expoente do juiz natural.
15. As “normas adjetivas aplicáveis” só podem ser as que definem a competência material dos tribunais de a instância em matéria penal, as quais constam dos artigos 10.°, 13.°, 14.° e 16.° do CPP e devem ser conjugadas com as regras dos artigos 98.° e 100.° da Lei 3/99, de 13 de janeiro.
16. E foi assim que o recurso para o Tribunal Constitucional também se fundou na inconstitucionalidade da interpretação normativa dada a tais regras — ou outras que se venham a julgar aplicáveis — «no sentido de que cabe ao Tribunal da 1ª instância — in casu, ao Juiz da Vara Criminal respetiva — a competência para decidir da prescrição ou não de procedimento criminal de arguido condenado pelo Supremo Tribunal de Justiça, após acórdão proferido pelo Supremo Tribunal sobre o mérito da causa, quando a invocação dessa prescrição ocorre dentro do prazo em que, em abstrato, o arguido ainda pode arguir nulidades, pedidos de esclarecimentos ou recorrer para o Tribunal Constitucional, mesmo que o Supremo Tribunal tenha determinado a baixa do processo para esse efeito».
17. Na tese do recorrente, tal interpretação normativa viola os princípios constitucionais da proteção da confiança e de um processo equitativo.
18. Mais se disse que a inconstitucionalidade em causa não fora arguida no recurso interposto da decisão da 1ª instância para o Tribunal da Relação, porque «(...) esse especifico entendimento normativo não fora invocada pela decisão da 1ª Vara Criminal, nem por ninguém, não se conhecendo jurisprudência que alguma vez o tenha invocado, nem sendo razoável que se contasse com a possibilidade de tal invocação, razão pela qual não tinha que ser arguida antes do presente requerimento».
19. Na verdade, a decisão da 1ª instância não se fundara em quaisquer normas adjetivas.
20. Só o Tribunal da Relação — quando confrontado com a arguição da incompetência do tribunal da 1ª instância para o efeito, a qual pode ser conhecida e declarada até ao trânsito em julgado da decisão final nos termos do artigo 32.°/nº 1 do CPP, o que geraria uma nulidade insanável, nos termos do artigo 119.°/al. e) do CPP — é que veio com a tese de que tal competência se fundaria nas “normas adjetivas aplicáveis”, as quais, porém, não especifica quais são. O que até se compreende — do ponto de vista psicológico — porque é bastante difícil, senão impossível, encontrar a tal norma adjetiva aplicável.
21. Foi por isso que o entendimento normativo que integra o fundamento da segunda arguição de inconstitucionalidade suscitada não foi colocado em momento anterior, já que, na verdade, se desconhece qualquer jurisprudência que alguma vez o tenha invocado, não sendo razoável que o recorrente devesse contar com a possibilidade de tal invocação, tão surpreendente que é.
22. A decisão sumária, embora sem conceder quanto ao fundo, admite que a inconstitucionalidade poderia vir a ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, mas identifica um obstáculo que a leva a obstar ao conhecimento do objeto do recurso.
É que o recorrente teria tido a oportunidade processual de identificar e suscitar tal inconstitucionalidade quando arguiu a inconstitucionalidade do acórdão de 12.07.2012, altura em que identificou e suscitou a inconstitucionalidade de uma outra interpretação normativa, como consta da seguinte passagem daquela decisão sumária:
«Como tal, se pôde antecipar e suscitar a inconstitucionalidade daquela interpretação normativa, que decorria do acórdão de 12 de julho de 2012, também poderia — e deveria — ter antecipado a inconstitucionalidade da segunda interpretação normativa, que agora escolheu como objeto do presente recurso.».
23. O recorrente tem o maior respeito pela decisão sumária ora proferida e objeto de reclamação, bem como pela Exma. Senhora Juíza Conselheira que a subscreve.
Todavia, não pode deixar de dizer que só por equívoco é que a decisão sumária pode ter entendido que o recorrente poderia ter arguido a inconstitucionalidade ora em pauta aquando da arguição da nulidade do acórdão de 12.07.2012.
Não, não o podia ter feito nessa sede. A não ser que utilizasse — de forma censurável — o expediente de uma nulidade para suscitar uma inconstitucionalidade que não cabia no âmbito de tal arguição.
Na verdade, quando se arguiu essa nulidade, teve-se apenas presente que, na ótica do recorrente, o Tribunal da Relação decidira um dos fundamentos do recurso — o da incompetência da 1ª Vara para apreciar a prescrição —, faltando-lhe pronunciar-se sobre o outro fundamento, que se reportava à ineficácia da arguição da prescrição.
Tal omissão gerava — para o recorrente — uma nulidade, porque o Tribunal da Relação tinha a obrigação de se pronunciar sobre essa questão. E a questão da inconstitucionalidade suscitada nesse requerimento tinha precisamente a ver com o tema objeto da arguição da nulidade, reportando-se à obrigação do Tribunal da Relação apreciar os fundamentos autónomos do recurso.
Assim sendo, é óbvio que o recorrente não podia ter incluído no âmbito dessa arguição de nulidade o tema da inconstitucionalidade ora em pauta, a qual tem a ver com a parte do acórdão da Relação que aprecia a questão da competência da Vara Criminal de Lisboa. E essa parte do acórdão da Relação não é nula. Está é errada (salvo melhor opinião), porque funda a competência da 1ª instância nas normas adjetivas aplicáveis, o que encerra acerca das mesmas um entendimento normativo inconstitucional.
24. Aqui chegados, não podemos deixar de concluir que, se o recorrente tivesse suscitado a inconstitucionalidade ora em apreço no âmbito daquele requerimento de arguição de nulidade, estaria a utilizar, de forma abusiva e censurável, o mecanismo processual em causa para um fim inadequado.
Bem fez pois, em não ter suscitado a inconstitucionalidade no âmbito dessa arguição de nulidade.
Bem fez pois, em a ter suscitado no primeiro momento em que a podia ter suscitado, não sendo razoável que pudesse contar em momento anterior com tão surpreendente entendimento normativo.
25. O país assiste atónito ao arremesso da arma da prescrição ao arrepio do fundamento do instituto da prescrição — que parece que parte da comunidade jurídica já esqueceu —, apenas como instrumento para entorpecer a ação da justiça.
Para o recorrente, sejam quais forem as normas adjetivas aplicáveis é inconstitucional — e ofensivo da consciência jurídica de um homem justo — admitir que a prescrição possa ser decretada pela 1ªinstância, após a condenação proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, quando tal decisão não teve qualquer outro desenvolvimento processual útil (uma vez que, in casu, a arguição de nulidade subsequente foi julgada manobra dilatória e o recurso para o Tribunal Constitucional não foi admitido).
26. Assim, o recorrente cumpre até ao fim o seu dever.»
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou a seguinte resposta:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 143/2013, não se conheceu do objeto do recurso no que respeita às duas questões de inconstitucionalidade que o recorrente, A., assistente no processo, identificara no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
2º
Os despachos proferidos em 31 de janeiro de 2012 (fls. 3404) e em 3 de fevereiro de 2012 (fls. 3426) pelo Senhor Conselheiro Relator no Supremo Tribunal de Justiça, determinaram que a questão da prescrição do procedimento criminal invocada pelo arguido, devia ser apreciada na 1.ª instância, ordenando a remessa dos autos àquele tribunal, para esse efeito.
3º
Os dois despachos referidos foram comunicados a todos os sujeitos processuais, que nada disseram.
4º
Na 1.ª instância, em 29 de fevereiro de 2012, foi proferida decisão que julgou extinto, por prescrição, o procedimento criminal.
5.º
Foram aqueles despachos que fixaram a competência da 1.ª instância para apreciar a questão, despachos que, como salienta a decisão da 1.ª instância, não foram impugnados, não podendo deixar de vincular esse mesmo tribunal.
6.º
Assim, como muito bem se disse na douta Decisão Sumária, a decisão da 1.ª instância “que deu, mais tarde, causa ao acórdão agora recorrido – nunca aplicou efetivamente a primeira interpretação normativa, que constitui agora objeto do presente recurso, pois excluiu a aplicação do artigo 474º do CPP, em função de o processo não se encontrar, então, em fase de execução de sentença condenatória. Pelo contrário, fundou-se no trânsito em julgado de um despacho anteriormente proferido por um tribunal de recurso que, na sua perspetiva, vincularia o tribunal recorrido”.
7.º
Quanto à segunda questão, vendo a decisão proferida em 1.ª instância, o Acórdão da Relação, agora recorrido, e a questão da inconstitucionalidade que vem identificada, parece-nos absolutamente claro que não se está perante uma interpretação anómala, surpreendente ou inesperada, que dispensasse o recorrente do ónus da suscitação prévia.
8.º
Na verdade, o Acórdão da Relação confirmou a decisão da 1.ª instância não se vislumbrando que tivesse acolhido qualquer novo e relevante fundamento.
9.º
Se o recorrente entendesse - como entendia pois suscitou expressamente a primeira das questões de inconstitucionalidade -, que a inconstitucionalidade residia na atribuição de competência ao tribunal de 1.ª instância para conhecer da prescrição e se o tribunal já havia dito que não era aplicável o disposto no artigo 474.º do CPP, podia (devia) perfeitamente ter ancorado a inconstitucionalidade noutras disposições legais, designadamente naquelas que agora refere.
10.º
Assim e sem necessidade, sequer, em nossa opinião, de invocar o facto de que o recorrente na arguição de nulidade do acórdão não ter suscitado esta questão, parece-nos claro que falta o requisito de admissibilidade que consiste na suscitação prévia da questão de constitucionalidade.
11.º
Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
4. Igualmente notificado para o efeito, o recorrido B. apresentou a seguinte resposta:
«A reclamação em resposta não tem a mínima sustentação nem fundamento e não cumpre outra função senão a de manter ”ligado à máquina” um processo que o Recorrente continua a Instrumentalizar à sua agenda pessoal, política e mediática.
A douta decisão sumaria é claríssima e irrespondível:
- a norma acossada de inconstitucional não foi aplicada por nenhuma das decisões proferidas, muito menos pela que foi objeto de recurso;
- o Recorrente não suscitou, como devia, a questão de constitucionalidade que pretende submeter ao conhecimento do Tribunal Constitucional;
- não estão reunidos os requisitos processuais indispensáveis ao conhecimento do recurso.»
5. Na medida em que a resposta do Ministério Público continha um novo fundamento de não conhecimento do objeto do recurso, relativamente à segunda interpretação normativa, a Relatora proferiu despacho, em 14 de maio de 2013 (fls. 3678), nos termos do qual convidou o recorrente a pronunciar-se sobre aquele mesmo fundamento. Respondendo afirmativamente ao convite, o recorrente veio pronunciar-se no seguinte sentido:
«I - QUANTO À RESPOSTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
1. O Ministério Público entende que — independentemente do argumento da falta de arguição de nulidade (onde tivesse sido arguida a inconstitucionalidade ora em pauta), no qual se sustenta a decisão sumária — o recurso não pode ser admitido por faltar o requisito da suscitação prévia da questão da inconstitucionalidade.
2. O Ministério Público funda-se em dois argumentos:
• Por um lado, teriam sido os despachos do Conselheiro Relator do STJ a fixar a competência da 1ª instância para apreciar a questão da prescrição, o que não podia deixar de vincular tal tribunal;
• Por outro lado, a questão da inconstitucionalidade ora em causa na reclamação não consubstanciaria “uma interpretação anómala, surpreendente ou inesperada, que dispensasse o Recorrente do ónus da suspensão prévia”.
3. Quanto à circunstância do Senhor Conselheiro Relator do STJ ter determinado que o incidente de eventual prescrição do procedimento criminal só poderia ser apreciado na 1ª instância e não pelo STJ — “pois só competem ao tribunal de recurso, nesta fase, as questões incidentais de aplicação de amnistia e de outras medidas de clemência (cfr. art. 474° n° 2, do C.P.P.)” —, isso não tem, por si só, o “condão” de fixar tal competência.
Para além do facto dos despachos do Senhor Conselheiro Relator não terem decidido que a instância teria competência para declarar a prescrição — o que deles decorre é que o Supremo Tribunal não teria competência para o efeito de a apreciar —, a verdade é que o problema da competência da 1ª instância para esse efeito foi expressamente suscitada no recurso interposto para o Tribunal da Relação (cfr. conclusões A) a H) de tal recurso).
E tal questão pode ser conhecida até ao trânsito em julgado da decisão final, como expressamente consta do art. 32° n° 1 do C.P.P.
De resto, nas questões de inconstitucionalidade suscitadas — quer no recurso para a Relação, quer no recurso para o Tribunal Constitucional — foi sempre colocado o inciso mesmo que o Supremo Tribunal tenha determinado a baixa do processo para esse efeito.
4. Assim sendo, é absolutamente irrelevante — para a apreciação da questão da inconstitucionalidade ora em pauta — que as instâncias se tenham sentido vinculadas (acertada ou erroneamente) pelos despachos do Senhor Conselheiro Relator do STJ. Como é igualmente irrelevante que tais despachos (acertada ou erroneamente) tenham ou não tenham desejado estabelecer tal vinculação.
O problema está em saber se as normas avocadas para tal efeito — no entendimento normativo adotado — violam ou não a Constituição da República Portuguesa.
5. Na ótica do Recorrente, é manifesto que a norma avocada pela 1ª instância foi o art. 474° do C.P.P. — que precisamente o STJ invocara para concluir que já não tinha competência para o efeito —, ainda que a contragosto, como decorre da sua linha argumentativa recordada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional:
• O Senhor Juiz de 1ª instância reconheceu que “(...) a invocacão do disposto no art. 474° do Código de Processo Penal poderá não fazer muito sentido. Assim, uma questão prévia ou incidental, como a prescrição, encontra-se inserida no âmbito do conhecimento das questões pelo tribunal de recurso (...)”. Porém, o mesmo Senhor Juiz entendeu dever conhecer a questão porque: apesar disso, por o despacho acima descrito que determinou a baixa dos autos não foi impugnado, fica este tribunal vinculado a tramitar e a conhecer desta última questão.
• Isto é, o Senhor Juiz de 1ª a instância apenas se pronunciou sobre a questão porque se julgou vinculado pelo despacho do Senhor Conselheiro Relator que mandara baixar os autos, admitindo que a questão lhe fora colocada no âmbito da competência prevista no art. 474° do C.P.P. (eventualmente mal, mas vinculando-o).
• Contudo, mesmo tendo em conta o despacho do Senhor Conselheiro Relator, o assistente veio a sustentar que a incompetência do tribunal pode ser conhecida e declarada até ao trânsito em julgado da decisão final (cfr. art. 32° n° 1 do C.P.P.), sendo tal nulidade insanável nos termos do art. 119°, alínea e) do C.P.P., o que fez através do recurso interposto do despacho do Senhor Juiz de 1ª instância que julgou extinto o procedimento criminal contra o arguido por prescrição (cfr. n°s 6, 7 e 8 do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional).
6. Todavia, o Tribunal da Relação de Lisboa veio a entender — para grande surpresa do Recorrente — que a 1ª instância não se fundara no art. 474° do C.P.P. e que, em momento algum, tal norma teria sido aplicada ao caso concreto.
Foi por isso que a decisão sumária ora reclamada julgou não poder apreciar a questão de inconstitucionalidade suscitada no recurso, exatamente porque o Tribunal da Relação nela não se fundara para julgar a competência da instância para o efeito.
E, nesse segmento, o Recorrente conformou-se com o doutamente decidido, reconhecendo a consistência da argumentação
7. Resta a 2ª questão da inconstitucionalidade suscitada, a qual tem a ver com a invocação pelo Tribunal da Relação — o que não fora efetuado pela 1ª instância, que se baseara apenas na vinculação ao tribunal superior e, na ótica do Recorrente, numa aplicação a contragosto do art. 474° do C.P.P. — das normas adjetivas aplicáveis, donde se retiraria a competência do juiz da 1ª instância para o efeito.
Não identifica o Tribunal da Relação quais são as “normas adjetivas aplicáveis”. Mas, confrontado o Código de Processo Penal, obviamente tais normas só podem ser as que definem a competência material do tribunal de 1ª instância em matéria penal, as quais constam do art. 10º, 13º e 14° do C.P.P. e devem ser conjugadas com as regras do art. 98° e 100º da Lei n° 3/99.
8. Ora, é precisamente o entendimento normativo retirado de tais normas — «no sentido de que cabe ao Tribunal da 1ª instância — in casu, ao Juiz da Vara Criminal respetiva — a competência para decidir da prescrição ou não de procedimento criminal de arguido condenado pelo Supremo Tribunal de Justiça, após acórdão proferido pelo Supremo Tribunal sobre o mérito da causa, quando a invocação dessa prescrição ocorre dentro do prazo em que, em abstrato, o arguido ainda pode arguir nulidades, pedidos de esclarecimentos ou recorrer para o Tribunal Constitucional, mesmo que o Supremo Tribunal tenha determinado a baixa do processo para esse efeito» — que está em causa no recurso interposto para o Tribunal Constitucional e na presente reclamação.
9. É irrelevante que as instâncias se tenham ou não considerado vinculadas pelos despachos do Supremo Tribunal, sendo igualmente irrelevante que o Supremo Tribunal as tenha ou não desejado vincular.
O problema dos autos reporta-se ao entendimento normativo adotado quanto às normas legais aplicáveis para o efeito de estabelecer a competência da 1ª instância decidir — no contexto dos autos — acerca da prescrição da responsabilidade criminal do arguido.
10. Julgava o Recorrente que a norma implicitamente invocada seria o art. 474° do C.P.P.. Porém, a Relação de Lisboa vem dizer que as normas que fixam tal competência são as normas adjetivas aplicáveis, isto é, as regras processuais que fixam a competência material dos tribunais de 1 a instância em matéria penal (arts. 10°, 13°, 14° e 16° do C.P.P., devidamente conjugados com as regras da organização judiciária aplicáveis).
Atente-se que a sua convicção acerca da matéria é tão grande que o Tribunal da Relação nem arrisca a identificação de uma única norma concreta.
Foi por isso que a decisão sumária ora reclamada — nesse segmento, bem — decidiu que não era tal falta de especificação que inviabilizaria o conhecimento do recurso:
“De qualquer modo, na medida em que imputa essa impossibilidade de identificação mais especificada à própria decisão recorrida — que, em boa verdade, também não logra autonomizar um específico preceito legal fundamentador da competência do tribunal de primeira instância — e que, além disso, consegue identificar uma específica interpretação normativa extraída de preceitos legais (ainda que genéricos) que antes identificou, tal não seria obstáculo intransponível para o conhecimento do objeto do recurso, quanto a esta segunda parte”.
11. Diz o Ministério Público que o entendimento da Relação não é “anómalo, surpreendente e inesperado”.
Francamente, ao que chegámos...
Ao Recorrente pede-se que preveja que a Relação venha a julgar que a regra legal em que se funda a competência da 1ª instância para o efeito em causa está numa norma que nem a Relação de Lisboa, nem agora o Ministério Público, são sequer capazes de identificar.
Tudo se resume às normas adjetivas aplicáveis”...
É razoável pedir ao Recorrente que tivesse previsto que, numa matéria desta gravidade — através da qual se pode deitar para o lixo uma arriscadíssima investigação a um crime que quase nunca se prova em Portugal (e aqui provou- se, valha-nos isso) —, a Relação de Lisboa se viria a fundar — em termos genéricos — nas normas legais adjetivas sem ser capaz de se fundar numa inica em concreto (seja o art. 474º do C.P.P., seja qualquer outra)?
Não, obviamente não é.
E, nesse segmento, nada há a censurar à decisão sumária.
12. O erro da decisão sumária ora reclamada está na construção efetuada a propósito da possibilidade que teria assistido ao Recorrente de ter identificado a questão de inconstitucionalidade em pauta no âmbito de uma posterior arguição de nulidade, o que — ressalvado o devido respeito — se crê que só aconteceu por equívoco, que a Senhora Conselheira Relatora e o Tribunal Constitucional não deixarão de reconhecer. É, pelo menos, isso que espera o Recorrente.
II - QUANTO À RESPOSTA DO ARGUIDO
13. Relativamente à resposta do arguido, e marginalizando a parte provocatória — que só a sua falta de vergonha permite explicar —, a verdade é que o arguido não argumenta, limitando-se a dizer que as normas em apreço não foram aplicadas (?!) e que a questão não teria sido suscitada devidamente (tema que acima já foi tratado).
III – UMA NOTA FINAL
14. Que o arguido — corruptor provado e condenado — faça pela sua vida, o assistente compreende.
15. Mas que o Ministério Público revele tamanha e injustificada persistência na defesa da prescrição do crime pelo qual o arguido foi condenado pelo Supremo Tribunal de Justiça e na defesa da constitucionalidade das normas legais aplicadas para o efeito, é absolutamente devastador para quem, desde há sete anos, se expôs a travar este combate.
Termos em que as questões suscitadas pelo Ministério Público e pelo arguido não devem ser atendidas, devendo dar-se provimento à reclamação apresentada.» (fls. )
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. De modo a simplificar a exposição e ponderação dos fundamentos relativos ao (não) conhecimento do objeto do presente recurso, importa abordar, sequencialmente as seguintes questões:
Ø Ónus de suscitação da segunda questão de inconstitucionalidade em sede de requerimento de arguição de nulidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 12 de julho de 2012;
Ø Ónus de suscitação da segunda questão de inconstitucionalidade em sede de alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Comecemos, então, pela primeira ordem de razões invocada pelo reclamante.
Em suma, argumenta o reclamante que, ao contrário do que consta da decisão sumária ora reclamada, não lhe seria exigível ter suscitado a específica questão de inconstitucionalidade normativa relativa à interpretação extraída dos artigos 10º, 13º, 14º e 16º do Código de Processo Penal (CPP), devidamente conjugados com os artigos 98º e 100º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), originariamente aprovada pela Lei n.º 3/99, de 3 de janeiro, através do requerimento de arguição de nulidade que apresentou contra o acórdão proferido em 12 de julho de 2012. Isto porque a questão que justificara a arguição de nulidade não incluía a interpretação normativa supra referida. Pelo contrário, a arguição de nulidade centrar-se-ia exclusivamente na falta de pronúncia, pelo acórdão originário, acerca da ineficácia da arguição da prescrição, mas não já sobre a questão da (alegada) incompetência do tribunal de 1ª instância para ajuizar da invocada prescrição. Assim sendo, a eventual invocação da inconstitucionalidade de uma interpretação normativa que se fundava exclusivamente na questão da (alegada) incompetência do tribunal de 1ª instância ser-lhe-ia processualmente vedada, pois a sua suscitação, em sede de requerimento de arguição de nulidade, corresponderia a um uso indevido daquele meio processual.
Tem razão o reclamante quando sustenta que o requerimento de arguição de nulidade não constitui o meio processual adequado para a suscitação de questões de inconstitucionalidade normativa, conforme, aliás, tem sido reiteradamente afirmado pela jurisprudência constante deste Tribunal. Assim é porque o poder jurisdicional dos tribunais recorridos se esgota com a prolação da decisão final, salvo quanto às questões que constituam fundamento de nulidade das mesmas. Como tal, desde que a decisão sobre a concreta questão de inconstitucionalidade normativa não seja passível de ser afetada – como não foi, no presente caso – pela posterior arguição de nulidade, deve considerar-se que aquele requerimento não constitui meio processual adequado para essa suscitação.
Poder-se-ia, quanto muito argumentar, neste caso, que a alegada natureza surpreendente da decisão recorrida justificava que o recorrente, só então confrontado com tal interpretação, tivesse lançado mão de todos os meios processuais ao seu dispor para colocar em crise a decisão-surpresa. Porém, uma coisa é equacionar-se (ou mesmo admitir-se) que, em casos comprovados de decisão-surpresa, o recorrente possa lançar mão do requerimento de arguição de nulidade para confrontar o tribunal que a proferiu com a sua inconstitucionalidade. Outra bem distinta é exigir-se que o recorrente o faça, imperativamente. Ora, a jurisprudência consolidada neste Tribunal tem vindo sempre a reconhecer a dispensa do ónus de prévia suscitação de questões de constitucionalidade que tenham resultado de decisões que se afigurem inovadoras, insólitas e, portanto, objetivamente surpreendentes. Tal significa que a simples constatação da natureza surpreendente dessa decisão acarretaria a dispensa de prévia (ou futura) suscitação. Por conseguinte, tem razão o reclamante quando sustenta que – desde que comprovada a natureza surpreendente do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 12 de julho de 2012 –, não lhe seria legalmente exigível que tivesse invocado a inconstitucionalidade da segunda interpretação normativa que constitui objeto dos presentes autos, em sede de arguição de nulidade do mesmo.
Reforma-se, portanto, a decisão reclamada, quanto a esta dimensão argumentativa.
7. Sucede, porém, que a decisão reclamada já notou que o principal argumento da decisão recorrida incidiu na constatação de que sobre si (e sobre o tribunal de primeira instância) recairia um dever jurídico de cumprimento do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que – na sua perspetiva – já teria transitado em julgado, sem ser impugnado. Isto é, o tribunal recorrido considerou, no fundo, que a norma decisiva para o seu julgamento correspondia àquela que determinava um dever de cumprimento daquela decisão – decorrente do artigo 40º do Estatuto dos Magistrados Judiciais –, por força do seu trânsito em julgado e não qualquer outra, fixadora da competência para o conhecimento de uma questão de prescrição. Partindo desse pressuposto, o tribunal recorrido apenas ponderou a questão relativa às “normas aplicáveis” à competência para decidir da prescrição (que o recorrente, mais tarde, identificou como potencialmente extraídas dos artigos 10º, 13º, 14º e 16º do CPP, devidamente conjugadas com os artigos 98º e 100º da Lei n.º 3/99, de 03 de janeiro), como “obter dictum”, ou seja, como argumento adicional e alternativo àquela que foi a sua fundamentação principal. É o que este Tribunal conclui do seguinte trecho da decisão recorrida:
«É certo que o Arguido pretendia a apreciação da prescrição pelo Supremo Tribunal de Justiça, onde se encontrava o processo. Mas a questão posta não tem ligação necessária com o julgamento do recurso da decisão final por aquele colendo tribunal, nem a poderia já ter, dado o estado dos autos. O processo encontrava-se quando o Arguido suscitou a questão, no STJ, como se disse, porém os meios processuais de pôr em crise a decisão daquele tribunal coletivo encontravam-se já esgotados, excetuada, como aquele STJ referiu, a arguição de nulidades, aclaração ou a vertente constitucional.
A questão da prescrição, repete-se, foi, assim, posta como questão autónoma, relativamente ao julgamento do recurso realizado, e se o STJ determinou remeter o processo à Vara Criminal para a sua apreciação, não pode ter sido senão porque se trata de um facto jurídico que pode ocorrer a qualquer momento da pendência do processo e que, como tal, deve ser oficiosamente conhecido, a qualquer momento.
E, como bem refere o Arguido recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça, em sede de recurso, decidiu que a competência para conhecer da prescrição pertencia à primeira instância, que, por seu turno, reconheceu e assumiu tal competência. Aquela decisão do Supremo Tribunal de Justiça não foi impugnada e, por isso, mesmo transitou em julgado, tomando-se vinculativa, face ao disposto, i. a., no art. ° 40 do Estatuto dos Magistrados Judiciais (…).
Sempre se dirá que nada obsta a que a questão da prescrição seja conhecida por despacho do juiz titular do processo, antes tal procedimento, além de ser o comummente adotado, é o que se adequa às normas adjetivas aplicáveis. Aliás, é o expoente do principio do JUIZ NATURAL, porquanto o juiz titular do processo é-o em resultado de uma distribuição aleatória do mesmo, feita nos termos legalmente prescritos, o que nem sequer está posto em causa no recurso.» (fls. 3591, com sublinhado nosso)
Assim sendo, tal como a decisão reclamada já havia notado, o tribunal recorrido nem sequer considerou que seria necessário apreciar a questão da determinação da competência para conhecimento sobre a prescrição, na medida em que ela estava encerrada – no âmbito daqueles autos recorridos –, por força de trânsito em julgado de despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. É por isso que a pronúncia sobre as questões normativas que constituem objeto do presente recurso só aconteceu – por parte do tribunal recorrido – a título meramente subsidiário, tratando-se de argumento adicional ou lateral. Por conseguinte, fica demonstrada a improcedência da reclamação deduzida e mantida a decisão sumária já proferida.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 10 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 8 de abril de 2014. – Ana Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.