Imprimir acórdão
Processo n.º 415/14
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. vem reclamar ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (adiante referida simplesmente como “LTC”) da não admissão do recurso de constitucionalidade que interpôs do acórdão de 28 de Novembro de 2013 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, que negou a revista pedida de anterior acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra. É o seguinte o teor do despacho reclamado, datado de 23 de janeiro de 2014 (fls. 1025 e 1026):
« Requerimento de folhas 1022:
Veio o recorrente A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, invocando o disposto na alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15.11 – Lei do Tribunal Constitucional – alegando que no acórdão recorrido houve uma violação do princípio da confiança no Estado de Direito Democrático e do Principio da Indefesa, consagrados, respetivamente, nos arts 2º e 20º da Constituição da República Portuguesa.
Mas o recurso não pode ser admitido.
Vejamos porquê.
1.Nos termos daquela alínea b) cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais “que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
Ora, no caso concreto em apreço, não foi suscitada durante o processo a inconstitucionalidade de qualquer norma.
O recorrente, na conclusão da alínea d) da sua revista, apenas alega que “o acórdão recorrido, ao entender não ter que decidir o valor do veículo após o acidente através de juízos de equidade, dos factos notórios e do que – é do conhecimento da generalidade das pessoas, violou o princípio da confiança no Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da Constituição o princípio da defesa plasmado no artigo 20 desse diploma”.
Discorda, assim, da bondade da decisão sobre a não consideração dos salvados para liquidação do montante da indemnização.
Ou seja, a violação dos preceitos constitucionais invocados pelos recorrentes decorre tão só e diretamente de um ato de concreta aplicação do direito e não da violação de qualquer recurso legal aplicado pelo acórdão recorrido.
Ora, o objeto da fiscalização jurisdicional de constitucionalidade são as normas jurídicas, não podendo o Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre uma eventual “constitucionalidade da decisão”
Daí não ter aquele tribunal de conhecer a pretensão dos recomentes.
2. De qualquer forma, sempre se dirá que mesmo que estivesse em causa a dimensão normativa da decisão o facto ... o facto é que não houve qualquer decisão sobre a matéria.
Na verdade e conforme se refere a folhas 4 do acórdão “não se provaram factos que permitiam ao Tribunal concluir pela existência de salvados”.
Logo, a não consideração dos mesmos nunca podia derivar de qualquer juízo normativo, mas tão só da análise da matéria de facto, como se referiu no mesmo acórdão.
3.Concluímos, pois, ser de rejeitar o recurso, por inadmissível.»
2. O reclamante discorda de tal entendimento, apresentando as seguintes razões na motivação da presente reclamação (fls. 1029 e ss.):
« […]
A essência da discordância do ora reclamante em relação a todas as decisões proferidas nos autos é que foi possível com o recurso à equidade, por não se ter conseguido provar o valor do conjunto acidentado atribuir- lhe, apesar disso, um valor e, no entanto, não se tendo provado igualmente o valor dos “salvados” não ter sido possível, pelo recurso à equidade, atribuir-lhe igualmente um valor.
Esta a essência da questão.
E não restam dúvidas que o A. chamou a colação, como seu argumento fundamental o disposto no artº 566 nº 3 do C. Civil, que prescreve, “in casu” o seguinte procedimento:
“3. se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”
Ora o Reclamante, na al. c) das suas conclusões logo apontou “expressis verbis” que o douto acórdão recorrido violou, assim, o disposto no artº 566 nº3 como referencia, quanto á prova, ao disposto no artº 4º al. a) ambos do Código Civil e ainda o disposto no artº 479 nº 1 do C.Civil” e logo a seguir na al. d), escreveu o seguinte:
d) – O douto acórdão recorrido, ao entender não ter que decidir o valor do veículo após o acidente através de Juízos de equidade, dos factos notórios e do que é o conhecimento da generalidade das pessoas, violou o princípio da confiança no Estado de Direito Democrático consagrado no artº 2º da Constituição e o princípio da indefesa plasmado no artº. 20 desse diploma o que se invoca para os efeitos previstos no artº 70 nº 1 da Constituição.
Portanto, parece-nos não restarem quaisquer dúvidas que a norma indicada pelo ora Reclamante é o segmento nº 3 do artº 566 do C.Civil, cuja interpretação tanto na Relação, como do Supremo por se recusar a aplicar os juízos de equidade nela previstos, violou os indicados princípios constitucionais plasmados nos artºs 2º e 20º da C.R.P.
[…]
O recorrente deixou bem claro que “in casu” a solução da questão a decidir pelo Tribunal passava pela interpretação e aplicação da equidade conforme ao disposto no nº 3 do artº 566º do C. Civil e que, ao não interpretar esse segmento normativo, com esse sentido, se estava a violar os princípios consagrados nos artºs 2º e 20 da Constituição.»
3. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, por considerar que não foi enunciada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça: quer no respetivo texto, quer nas conclusões, a inconstitucionalidade nunca é imputada a qualquer norma, mas antes e só à decisão.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
4. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que, na primeira hipótese, é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações; enquanto, na segunda hipótese, está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto (cfr. o Ac. deste Tribunal n.º 138/2006).
5. O recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) e, segundo o recorrente, “a questão de inconstitucionalidade foi suscitada no recurso para o STJ” (fls. 1022).
Vendo o requerimento de interposição do recurso, desde logo se constata que ali não vem indicada qualquer norma de direito infraconstitucional cuja inconstitucionalidade se pretenda ver apreciada. Apesar de esta omissão ser suprível recorrendo ao disposto no artigo 75.º-A, n.ºs 5 a 7 da LTC, no caso não se justifica a prolação de despacho-convite, porque falta o próprio requisito material de admissibilidade respeitante à suscitação de uma questão de constitucionalidade normativa.
6. Com efeito, analisando a peça indicada pelo recorrente, ora reclamante, como aquela em que teria suscitado a questão de inconstitucionalidade – as alegações produzidas no âmbito do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça -, constata-se que ali não vem enunciada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. De resto, a transcrição feita no próprio texto da reclamação para o Tribunal Constitucional evidencia-o (cfr. supra o n.º 2): o ora reclamante discorda da bondade da decisão (que negou a revista) sobre a não consideração dos salvados para liquidação do montante da indemnização. E esta é também a substância do despacho reclamado.
Está, assim, em causa apenas a subsunção dos factos ao direito aplicável e não a constitucionalidade deste último. Ora, os poderes de cognição do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade limitam-se à norma ou interpretação normativa que a decisão recorrida tenha aplicado (cfr. o artigo 79.º-C da LTC); o Tribunal Constitucional não conhece nem de matéria de facto nem da interpretação do direito infraconstitucional.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios estabelecidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 8 de abril de 2014. – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.