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Processo nº 447/98
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1.- A..., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo da al. b) do nº 1 do Art 70 da L.T.C.
(Lei nº 28/82 de 15/11 c/ a redacção da Lei 13-A/98 de 26/2, suplemento)', do acórdão do Tribunal da Relação do Porto (4ª Secção), de 11 de Março de 1998, que decidiu 'negar provimento ao recurso' por ele interposto, mantendo a sentença da primeira instância relativamente à aplicação da 'sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de um mês', mas suspensa 'a sua execução por seis meses, mediante caução de boa conduta no valor de 40 000$00'. O acórdão recorrido, na parte que pode interessar, e quanto a ter o arguido e ora recorrente invocado 'ainda a inconstitucionalidade do artº 154º nº 2 do Cód. Estrada consubstanciada no facto do pagamento voluntário da coima implicar automaticamente a aplicação da sanção de inibição de conduzir, o que viola o princípio constitucional de defesa consagrado na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente no seu artº 32º', considerou que ele 'não desfruta de qualquer ponta de razão', avançando com a seguinte argumentação:
'O artº 154º, nº 2 do Cód. da Estrada não impõe a aplicação automática, da inibição de conduzir aos infractores que paguem voluntariamente a coima correspondente à contra-ordenação imputada. O recorrente «esqueceu-se» de ler a referida norma na sua totalidade e que reza assim:
‘O pagamento voluntário da coima implica a condenação do infractor na sanção acessória correspondente, também pelo mínimo, sem prejuízo do disposto nos artºs
143º, 144º e 145º’. E, lendo-se os referidos artºs 143º, 144º e 145º’ do Cód. Estrada, verifica-se que a entidade competente pode, oficiosamente ou a pedido do infractor, proceder
à dispensa da aplicação da sanção acessória, à sua atenuação especial ou à suspensão da sua execução. O artº 143º do Cód. Estrada explicita mesmo que ‘a sanção acessória da inibição de conduzir aplicável às contra-ordenações graves pode não ser aplicada, tendo em conta as circunstâncias da mesma e o facto de o infractor ser primário ou não ter praticado qualquer contra-ordenação grave ou muito grave nos últimos três anos’. Por aqui se vê que o artº 154º nº 2 do Cód. Estrada não impõe a aplicação automática, da inibição de conduzir aos infractores que voluntariamente paguem a coima aplicada ou prevista naquele diploma. Ora, o arguido não é primário na infracção das normas do Cód. Estrada como decorre do seu registo individual de condutor (cfr. Fls. 8). O tribunal ‘a quo’ ponderando nesta circunstância e nos demais factos relativos à sanção acessória de inibição de conduzir, descritos na sua sentença, e apurados em julgamento, sob contraditório, manteve a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 1 mês, suspendeu a respectiva execução pelo período de 6 meses e fixou ao arguido uma caução de boa conduta de quantitativo módico (40 000$00). Não se vê, pois, como é que foram postergados quaisquer direitos de defesa do arguido, nomeadamente através da interpretação que o tribunal ‘a quo’ fez do artº 154º nº 2 do Cód. Estrada. Não se mostra, assim, violada qualquer norma ou princípio constitucional, nomeadamente o artº 32º, nº 8 da Constituição'.
2.- Nas suas alegações, e em consonância com o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o recorrente distingue a questão constitucional
'QUANTO À INTERPRETAÇÃO FEITA NA NORMA DO Nº 2 DO ARTº 154º C.E., NA PARTE RELATIVA AO PAGAMENTO DA COIMA E SEUS EFEITOS' e 'QUANTO À CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA DO Nº 2 DO ARTº 154º C.E., EM SI MESMA', rematando a peça processual com as seguintes conclusões:
'I - O entendimento professado pelas instâncias de que o pagamento voluntário implica confissão de factos traduz-se na criação de um novo regime processual penal de confissão dos factos previsto no artº 344º do C.P.P., pelo que II - Há violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e, como tal III - A interpretação feita do nº 2 do artº 154º do C.E., pelas instâncias fere o artº 165º, nº 1, al. c) e o artº 32º , ambos da C.R.P. IV - A condenação, na sequência do pagamento voluntário da coima, ainda que dispensada ou atenuada, é sempre uma condenação automática. V - Tal condenação automática envolve uma violação das garantias constitucionais de defesa, nomeadamente dos princípios da 'Presunção de inocência', da 'culpa' e das 'Provas' previstas no artº 32º da C.R.P. VI - Tanto mais que a condenação automática não é precedida de uma notificação expressa desse efeito, E, VII - As garantias constitucionais de defesa significam uma protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido. VIII - Militando a favor da inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artº 154º C.E. a revisão do C.E. operada pelo DL 2/98 de 3/1. IX - Sendo inconstitucional a norma do nº 2 do artº 154º C.E. não era aplicável pelas instâncias. X - Devendo os autos baixar para ser reformada a decisão em conformidade com o julgamento sobre a inconstitucionalidade XI - Normas violadas:
- C.R.P. artº 32º e 165º, nº 1, al. c) XII - As instâncias aplicaram a norma do nº 2 do artº 154º C.E. com o seu sentido literal a qual, todavia, é inconstitucional'.
3.- Contra-alegou o Ministério Público, sustentando que 'a questão referida nos pontos I a III, ou seja, a da pretensa violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, não poderá ser conhecida, por não ter sido atempadamente suscitada', só o sendo 'no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, ou seja, já depois de proferida a decisão de que se recorre, podendo tê-lo sido antes', e apresentando depois a seguinte conclusão:
'A norma do artigo 154º, nº 2, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de Maio, não impõe a aplicação automática da inibição de conduzir aos infractores que pagarem voluntariamente a coima, pelo que não viola as garantias de defesa previstas no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. '
4.- Ouvido o recorrente 'sobre a questão preliminar suscitada nas contra-alegações do Ministério Público', veio dizer que só 'o douto acórdão da Relação explicita o sentido que atribui ao pagamento voluntário da coima e, como tal, o sentido que atribui à norma do N2 do Art. 154 CE' ('Daí que, só com o douto acórdão se tenha suscitado, de forma explícita, o problema da interpretação da referida norma e da constitucionalidade dessa interpretação)'. E acrescentou: 'A questão da interpretação da norma do N2 do art. 154 CE não é propriamente uma questão diferente que tivesse de ser suscitada, a par da questão de constitucionalidade da norma do N2 do Art. 154 CE em si mesma, no próprio processo de modo processualmente válido'.
5.- Vistos os autos, cumpre decidir. O tronco comum da matéria de (in)constitucionalidade controvertida nos autos pelo recorrente radica na norma do artigo 154º, nº 2 do Código da Estrada, na redacção anterior à que foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, já transcrita no acórdão recorrido, e segundo a qual o 'pagamento voluntário da coima implica a condenação do infractor na sanção acessória correspondente', ou seja, na sanção acessória da inibição de conduzir. Aí o recorrente pretende fazer vingar duas dimensões daquela norma, interligando-as, a primeira delas que apelida de 'interpretação feita na norma do nº 2 do artº 154º C.E.', o que se significaria que 'as instâncias professaram o entendimento de que o pagamento voluntário permitido pela norma nº 2 do artº
154º C.E., implica confissão dos factos imputados ao arguido', traduzindo-se isto 'na criação de um novo regime processual penal de confissão de factos!', com a violação invocada do artigo 165º, nº 1, c), da Constituição. Só que, como entende o Ministério Público, tal controvérsia, relacionada com aquela confissão de factos, apenas foi arguida no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, podendo ter sido no momento processual próprio da apresentação das alegações perante o tribunal de relação. Na verdade, logo na sentença do tribunal de primeira instância considerou-se que, pretendendo o arguido 'discutir matéria de facto relativa ao cometimento ou não da contra ordenação em que foi condenado', resulta dos autos ter ele
'procedido ao pagamento voluntário da coima respeitante à presente contra ordenação' e, assim, ficou prejudicado o conhecimento dessa matéria, o que só pode ter o significado de ter sido aceite a confissão dos factos em causa. Portanto, o entendimento que o recorrente quer extrair do acórdão recorrido já decorria da sentença, não sendo nenhuma surpresa, e, sendo isto assim, ele poderia ter perfeitamente questionado tal entendimento, à luz da reserva de competência legislativa da Assembleia da República. Não o fez, apelando tão somente à ideia de nulidade dessa sentença. Falta, assim, e neste ponto, o pressuposto processual específico da arguição da inconstitucionalidade normativa durante o processo, como exige o artigo 70º, nº
1, b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, ficando pois, prejudicado o conhecimento das conclusões I a III das alegações do recorrente.
6.- Passando agora à segunda dimensão da mesma norma, a norma questionada do nº
2 do artigo 154º, em si mesma, e que flui directamente dela, resulta da posição assumida pelo recorrente nos autos que se pretende ver aí uma condenação automática derivada do pagamento voluntário da coima, que nem é 'precedida de uma notificação expressa desse efeito', o que 'envolve uma violação das garantias constitucionais de defesa, nomeadamente dos princípios da ‘Presunção de inocência’ da ‘culpa’ e das ‘Provas’ previstas no artº 32º da C.R.P.' ('A imposição de uma condenação automática pelo pagamento voluntário, sem que tal efeito seja comunicado ao arguido, de forma expressa e por escrito, representa uma amputação inaceitável do mais elementar direito de defesa...' – é a afirmação essencial das alegações do recorrente). Mas não tem o mínimo de subsistência tal posição, exactamente porque a norma em causa não contém o efeito que lhe é atribuído pelo recorrente. Na realidade, talqualmente se regista no acórdão recorrido, o nº 2 do artigo
154º faz apelo aos artigos 143º, 144º e 145º, do Código da Estrada, o que é pura e simplesmente omitido pelo recorrente, e por essa via o juízo de aplicação da sanção acessória passa pela ponderação, além do mais, das circunstâncias do caso, podendo conduzir mesmo a dispensa dessa aplicação, à sua atenuação especial ou à suspensão da execução. Isto não tem nada a ver com um efeito automático derivado do pagamento voluntário da coima, pois este pagamento não impõe só por si a aplicação da sanção acessória, dependendo das 'circunstâncias da mesma' ser ou não aplicada em cada caso. Embora noutro plano e na óptica do artigo 30º, nº 4, da Constituição, o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado pela inconstitucionalidade das normas que impõem a perda de direitos civis, profissionais e políticos como efeito necessário e automático da condenação em certas penas e por certas infracções
(cfr. a indicação dos arestos no acórdão nº 362/92, nos Acórdãos, vol. 23º, pág.
493). E nesse acórdão nº 362/92, aceitando-se a 'qualificação jurídica de medida de inibição da faculdade de conduzir como medida de segurança', diz-se que, 'como medida de segurança, o decretamento judicial de inibição de conduzir, não pode nunca ser automática: terá sempre o juiz do processo que proceder em concreto e face a cada caso, à avaliação das circunstâncias de facto, da justeza da medida e de definir os respectivos limites temporais, segundo os já referidos critérios de tipicidade, proporcionalidade, necessidade e culpa do arguido'.
É o que aqui acontece, pois também o juízo de aplicação da sanção acessória passa pela mesma avaliação a que se refere aquele acórdão nº 362/92. Tanto basta para concluir que não procede a invocada violação de normas ou princípios constitucionais, nem ela se pode extrair da redacção actual e vigente do Código da Estrada, pois como diz o Ministério Público, a 'nova formulação da lei será porventura mais perfeita, mas não aboliu a condenação automática, nem podia ter abolido, (...) o artigo 154º, nº 2 não impõe a aplicação automática da inibição de conduzir aos infractores que voluntariamente pagaram a coima'
(vejam-se as hipóteses tratadas nos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs
73/95 237/95 e 441/95, os dois primeiros publicados no Diário da República, II Série, de 12 de Junho e 6 de Julho de 1995, respectivamente).
7.- Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso e condena-se o recorrente nas custas com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 5 de Maio de 1999 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa