Imprimir acórdão
Processo nº661/98
2ª Secção Relator Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1-F..., Ldª, sociedade comercial com sede em Guimarães, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (2ª Secção), de 16 de Abril de 1998, em que 'nega-se a Revista', por não por não se conformar 'com o decidido acerca da suscitada inconstitucionalidade da norma dos nºs 1 e 2 do artº 2º do D.L.289/88 de 24 de Agosto e ou da interpretação das mesmas acolhida no referido douto acórdão', acrescentando ainda no respectivo requerimento o seguinte:
'a)- O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei 28/82 de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n 85/89 de 7 de Setembro e pela Lei nº 13-A/98 de 26 de Fevereiro; b)- Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade material das normas dos números 1 e 2 do artº 2º do D.L. 289/88 de 24 de Agosto, e ou da interpretação que delas fez o Supremo Tribunal de Justiça e com o sentido que foram aplicadas no douto acórdão recorrido; c)- Pretende-se ainda ver apreciada a inconstitucionalidade orgânica das referidas normas dos números I e 2 do artº 2º do D.L. 289/88 de 24 de Agosto por versarem matéria cuja competência legislativa está relativamente reservada à Assembleia da República - criação de impostos para o Despachante Oficial e liquidação e cobrança dos mesmos - e o Governo não ter tido autorização prévia para legislar sobre essa matéria; d)- As normas e princípios constitucionais que se consideram violadas são os seguintes: I - Princípio de igualdade consagrado no artº 13º da C.R.P;
2 - Princípio da proporcionalidade consagrado no artº 18º nº 2 da C.R.P.;
3 - Princípio da justiça consagrado nos artºs , 20º nº 4, 202º nº 2 e 204ºda C. R. P.;
4 - Princípio da Imparcialidade conjugado com os já referidos princípios e desta forma consagrado no artº 2O3º da C.R.P.;
5 - Princípio da Legalidade Fiscal, consagrado nos actos l03º nºs 2 e 3 eI65º nº
1 al. I) da C. R. P. e) As questões da inconstitucionalidade tanto material como orgânica foram suscitadas nos autos, nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e foram sintetizadas nas respectivas conclusões vigésima segunda, vigésima terceira e vigésima quarta.'
2-Nas suas alegações concluiu assim a sociedade recorrente:
'Primeiro: A CAUÇÃO GLOBAL PARA O DESALFANDEGAMENTO destina-se a simplificar o processo de desalfandegamento e a garantir, ao ESTADO, o pagamento dos direitos e demais imposições devidas pela importação de mercadorias. Segundo: Os beneficies decorrentes da simplificação do processo de desalfandegamento aproveitam não apenas aos Importadores mas também a sobretudo ao próprio ESTADO, a quem incumbe a tarefa de regular e garantir o funcionamento eficaz da Administração Pública, e ainda aos Despachantes Oficiais que se dedicam, profissionalmente, a promover o desembaraço aduaneiro das mercadorias. Terceiro: Na Caução Global Para o Desalfandegamento, a Lei não permite, ao Importador, o acesso directo às Alfândegas para promover o desalfandegamento das suas mercadorias, e nem sequer lhe permite efectuar, directa e pessoalmente, o pagamento dos direitos e demais imposições da sua responsabilidade. Quarto: Na Caução Global Para o Desalfandegamento, só o Despachante Oficial pode promover o desembaraço aduaneiro das mercadorias e só ele pode e é obrigado a apresentar-se nas Alfândegas, uma vez por mês, para efectuar o pagamento dos direitos devidos pela importação das mercadorias correspondentes às declarações por si apresentadas no respectivo período. Quinto: Na Caução Global Para o Desalfandegamento, o Importador é obrigado a habilitar o Despachante Oficial com as quantias necessárias para este proceder ao pagamento dos direitos e imposições decorrentes das suas importações, como, aliás, foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido. Sexto: Ao afastar o Importador do processo de desalfandegamento. impedindo-o, nomeadamente, de efectuar, directa e pessoalmente, o pagamento dos respectivos impostos, a LEI teve de criar mecanismos de protecção do ESTADO, garantindo-o da cobrança dos impostos a que tem direito, e de protecção do Importador, contra o risco ou a possibilidade de o Despachante Oficial não utilizar as importâncias dele recebidas no pagamento dos impostos a que se destinam. Sétimo: Para alcançar o duplo objectivo mencionado na conclusão anterior, a LEI estabeleceu a responsabilidade solidária do Despachante Oficial e do Importador pelo pagamento dos impostos da responsabilidade deste, e obrigou o Despachante Oficial a caucionar, por meio de garantia bancária ou seguro-caução, o pagamento dos impostos da sua responsabilidade. Oitavo: Na hipótese de incumprimento do Despachante Oficial, o ESTADO notifica apenas a Entidade Garante para efectuar o pagamento dos direitos da responsabilidade daquele, - e não também o Importador -, porque o ESTADO não pode, moral e juridicamente, obrigar o importador a cumprir, directa e pessoalmente, a obrigação que, anteriormente, só podia cumprir por intermédio de outrem, sob pena de colocar o Importador na situação de ter de pagar duas vezes a mesma dívida. Nono: Se a caução prestada pela ENTIDADE GARANTE se destinasse apenas a garantir a cobrança efectiva dos impostos, pelo ESTADO, e não também o risco do Importador mencionado na 2ª parte do conclusão sétima, seria desproporcionado e injustificado o alargamento da responsabilidade do seu pagamento a uma terceira Entidade - a Entidade Garante - pois o simples facto de o Despachante Oficial passar a ser também responsável pelo pagamento dos impostos devidos pelo Importador já constitui um acréscimo de garantia do ESTADO em relação ao processo anterior. E mais desproporcionada e injustificada seria a atribuição, à ENTIDADE GARANTE, de outros direitos e garantias além daqueles que a Lei Geral lhe atribui, em qualquer outro contrato de seguro-caução (único que ora interessa considerar). Décimo: Aos benefícios que o Importador retira da maior celeridade do processo de desalfandegamento corresponde e só pode razoavelmente corresponder o agravamento do preço dos serviços do Despachante Oficial, uma vez que este faz repercutir sobre aquele os custos da caução que está obrigado a prestar, para poder exercer a respectiva actividade no âmbito da Caução Global Para o Desalfandegamento. Décimo Primeiro: O ESTADO não pode, sem violação do princípio de igualdade, transferir para o Importador os riscos próprios da actividade comercial da Entidade Garante resultantes dos contratos celebrados com o Despachante Oficial, obrigando o Importador, que é alheio a esses contratos, a pagar à Entidade Garante a importância que anteriormente estava obrigado a pagar e pagou ao Despachante Oficial. Décimo Segundo: Para pagamento dos direitos (IVA) devidos pela importação das mercadorias a que respeitam as DU/LLs nºs 215077-8, 215541-9 e 215547-8 mencionadas na petição inicial, a ora recorrente, a solicitação do Despachante Oficial, Joaquim Pinto de Araújo, preencheu, assinou e entregou o cheque nº
3528473.0 do montante de 6.161.326$00 que sacou sobre o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa à ordem do Tesoureiro da Alfândega do Porto. Décimo Terceiro: Este cheque foi visado pelo Banco sacado e foi entregue pelo dito Despachante Oficial na Tesouraria da Alfândega do Porto e o respectivo valor foi creditado na conta do respectivo beneficiário. Décimo Quarto: Estando documentalmente provado nos autos que a ora recorrente entregou ao Despachante Oficial o cheque aludido na conclusão décima segunda, para pagamento dos impostos devidos pela importação das mercadorias a que respeitam as DU/LLs mencionadas na petição inicial; e estando provado que a importância do cheque foi creditada na conta do respectivo beneficiário - Tesoureiro da Alfândega do Porto; e não tendo a recorrida alegado e provado que o valor de tal cheque foi legalmente utilizado no pagamento de dívidas de terceiros, identificando-os, tem de se considerar pagas as correspondentes dívidas da ora recorrente, ao Tesoureiro da Alfândega do Porto. Décimo Quinto: O argumento vulgarmente aduzido de que 'o Importador tem de pagar
à Entidade Garante a quantia por este paga ao ESTADO, mesmo nas hipóteses em que aquele demonstra ter entregue ao Despachante Oficial a quantia necessária e destinada a esse mesmo pagamento, porque o Importador tem sempre o direito de reaver do Despachante Oficial a quantia que lhe tiver pago' É UM ARGUMENTO FALACIOSO já porque o Importador nenhuma garantia tem de que vai ser reembolsado desse valor, já porque de igual direito goza a Entidade Garante que celebrou o contrato de seguro-caução (hipótese dos autos) com esse mesmo Despachante Oficial. Décimo Sexto: É igualmente falacioso o argumento vulgarmente utilizado de que 'o Importador tem de assumir a responsabilidade, pela boa ou má escolha do Despachante Oficial' para justificar o seu dever de reembolsar a Entidade Garante pelas quantias por este pagas ao ESTADO, pois também a Entidade Garante escolheu o mesmo Despachante Oficial para com ele celebrar o contrato de seguro-caução, e não se vê porque não deva ela própria, Entidade Garante, suportar o risco dessa sua escolha. Décimo Sétimo: A expressão 'pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições' utilizada no nº 2 do artº 2º do D.L. 289/88 significa que o pagamento efectuado pelo Despachante Oficial ou pela Entidade Garante pode ser feito por conta de mais do que uma Pessoa, concretamente, significa que tal pagamento tanto pode ser feito por conta do Importador como por conta do próprio Despachante Oficial, pois é solidária a responsabilidade de ambos pelo pagamento dos direitos e demais imposições devidas ao ESTADO, Aliás, se o legislador quisesse referir-se apenas à pessoa do Importador, tê-lo-ia dito clara e inequivocamente. Décimo Oitavo: O vocábulo OU da expressão 'o despachante oficial ou a entidade garante' utilizado no nº 2 do artº 2º do D.L. 289/88 significa e só pode significar que a Entidade Garante, quando efectua um pagamento ao ESTADO, o faz em substituição do Despachante Oficial e portanto, os direitos que daí lhe advêm são os mesmos que adviriam para o Despachante Oficial, se tivesse sido este a cumprir a sua obrigação de pagar. Décimo Nono: O Despachante Oficial só goza do direito de regresso contra o Importador, ficando sub-rogado nos direitos das Alfândegas relativos às quantias pagas, se não tiver recebido, previamente, daquele as importâncias necessárias ao pagamento dessas dívidas. Vigésimo: De igual modo, a Entidade Garante só goza do direito de regresso contra o Importador e fica sub-rogado nos direitos das Alfândegas pelas quantias pagas, se o Importador não tiver previamente entregue ao Despachante Oficial
(tomador do seguro-caução) as importâncias necessárias destinadas ao pagamento dessas mesmas responsabilidades. Vigésimo primeiro: É inconstitucional, por violação dos princípios da Igualdade. da Proporcionalidade e da Justiça, consagrados nos artºs 1º, 2º, 13º, l8º nº 2,
20º e 266º da Constituição da República Portuguesa, a norma do nº 1 do artº 2º do D.L. 289/88 de 24 de Agosto, ou a interpretação que dela se faça no sentido de que a mesma confere ao ESTADO o direito de reclamar directamente do Importador os direitos que lhe deviam ser pagos pelo Despachante Oficial, nos termos do artº 7º nº 1 do mesmo diploma, ainda que o Importador prove que já anteriormente tinha entregue ao Despachante Oficial, como estava obrigado, e este recebeu daquele a quantia necessária destinada ao pagamento desses mesmos direitos. Vigésimo Segundo: É inconstitucional por violação dos mesmos princípios constitucionais consagrados nos artºs 1º, 2º, 13º, 18 nº 2, 20º e 266º da Constituição da República Portuguesa, a norma do nº 2 do artº 2º do citado D. L.
189/88, ou a interpretação que dele se faça no sentido de conferir, à Entidade Garante das obrigações do Despachante Oficial, o direito de regresso contra o Importador, que é alheio ao contrato de seguro-caução, sub-rogando-a em todos os direitos das Alfândegas relativos às quantias pagas, mesmo na hipótese e apesar de o Importador demonstrar que entregou, previamente, ao Despachante Oficial, como estava obrigado, e este recebeu daquele a quantia necessária destinada ao pagamento desses direitos. Vigésimo Terceiro: É inconstitucional, por violação dos mesmos princípios constitucionais da Igualdade, da Proporcionalidade e da Justiça consagrados nos artºs 1º. 13º, 18º nº 2, 20º e 266º da Constituição da República Portuguesa a citada norma do nº 2 do artº 2º do D.L. 289/88, ou a interpretação que dela se faça no sentido de que a Entidade Garante das obrigações do Despachante Oficial tem direito de regresso contra o Importador, com quem não celebrou qualquer contrato e cujas obrigações não garantiu, ficando sub-rogada em todos os direitos das Alfândegas relativos às quantias pagas, ainda que o Importador demonstre que, para pagamento de tais direitos, emitiu um cheque a favor do Tesoureiro da Alfândega respectiva, de montante igual ao da sua dívida. e cujo valor foi creditado na conta do respectivo beneficiário por transferência, directa da conta do sacador para a conta do beneficiário, não existindo outras obrigados cambiários naquele cheque.
Décimo Quarto: O Acórdão recorrido ao fazer a aplicação das normas dos nº 1 e 2 do artº 2º do D.L. 289/88 de 24 de Agosto, interpretando-as no sentido em que o fez, e não as julgando inconstitucionais por violação dos princípios da Igualdade, da Proporcionalidade e da Justiça, violou esses mesmos princípios constitucionais e sobretudo violou os princípios da Justiça e de Equidade consagrados nos artºs 1º, 2º, 20º nºs 1 e 4, 202º nº 2 e 204º da Constituição da República Portuguesa. Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade das normas dos nºs 1 e
2 do artº 2º do D.L. 289/88 de 24 de Agosto e ou a interpretação que no Acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça foi dada a esses preceitos e, consequentemente, ordenada a reforma do mesmo Acórdão em conformidade com os mencionados princípios constitucionais,'
3- Contra-alegou a empresa seguradora, OT..., SA ora recorrida e autora na acção intentada contra a recorrente, sustentando que 'deve negar-se provimento ao recurso, com as demais consequências legais', e remetendo para a jurisprudência do Tribunal Constitucional do corrente ano e que se debruçou já sobre o assunto
('Que saibamos, sobre ele já incidiram pelo menos os acórdãos nºs 504/98,
570/98, 623/98 e 645/98' – é o que invocou a empresa seguradora recorrida).
4- Vistos os autos, cumpre decidir.
Não oferece dúvidas que a sociedade recorrente, ao interpor o recurso de revista perante o Supremo Tribunal de Justiça, sustentou logo o mesmo tipo, e até com a mesma linguagem, de inconstitucionalidade que repetiu agora no presente recurso de constitucionalidade, tendo aquele Supremo Tribunal, uma fórmula final e global, entendido que não se vislumbra 'qualquer violação daqueles normativos à Constituição da República ou a qualquer dos seus fundamentos' (e nomeadamente:
'Não há aqui qualquer inconstitucionalidade de natureza material contrariamente ao que vem alegado pela recorrente'). Interessa, porém, e desde já, demarcar o campo da controvérsia, devendo fixar-se o objecto do recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
- as normas infraconstitucionais que são questionadas são as dos números 1 e 2 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 289/88, de 24 de Agosto ('e ou da interpretação que delas fez o Supremo Tribunal de Justiça e com o sentido que foram aplicadas no dito acórdão recorrido'), e isso está bem expresso no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e nas conclusões das alegações da sociedade recorrente;
a arguição de inconstitucionalidade agora utilizada pela sociedade recorrente
é uma arguição de inconstitucionalidade material, 'por violação dos princípios
da Igualdade, da Proporcionalidade e da Justiça' ou por violação dos
'princípios da Justiça e de Equidade', com referência aos artigos 1º, 2º, 13º,
18º nº 2, 20º, 202º, nº 2, 204º e 266º, da Constituição, tendo sido abandonada
nas conclusões das alegações a pretensão de ver 'apreciada a
inconstitucionalidade orgânica' das citadas normas do Decreto-Lei nº 289/88,
como constava inicialmente do requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade (registe-se, de qualquer modo, que o Tribunal
Constitucional já considerou inexistir aquela inconstitucionalidade orgânica,
como decorre dos acórdãos adiante identificados). Donde resulta que a questão de (in)constitucionalidade a apreciar consiste em saber se as ditas normas do artigo 2º do Decreto-Lei nº 289/88, tal como foram interpretadas e aplicadas no acórdão recorrido, ferem ou não aqueles mencionados princípios plasmados na Constituição.
4- Tal como regista a empresa seguradora recorrida, o 'problema dos autos não é novo' neste Tribunal Constitucional e, assim, no acórdão nº 570/98, inédito, faz-se 'uma descrição do regime jurídico dos despachantes oficiais, bem como do funcionamento do sistema relativo ao despacho aduaneiro, e, nomeadamente, da caução instituída pelo Decreto-Lei nº 289/88', que a seguir, por comodidade, se transcreve:
'O (...) artigo 426º da Reforma Aduaneira distingue várias situações: as dos próprios donos ou consignatários (designadamente, os agentes transitários) das mercadorias, ou respectivos procuradores, que poderão proceder ao seu desalfandegamento, mas só relativamente a essas mercadorias de que são os destinatários; a dos respectivos comissários (empregados), designados por despachantes privativos, aos quais se aplica idêntica restrição; e ainda a dos denominados agentes aduaneiros das empresas de caminho de ferro e navegação aérea que mantenham carreiras regulares com o País, estes apenas em relação a mercadorias pertencentes às empresas referidas no nº 3º do artigo, e nos casos mencionados no artigo 427º; finalmente, a dos despachantes oficiais. A situação dos despachantes oficiais, que são aqueles que exercem profissionalmente a actividade do despacho aduaneiro, podendo actuar como tal, sem procuração e sem vínculo laboral às empresas donas das mercadorias, encontra-se prevista no nº 4º do mesmo artigo. Trata-se de uma classe profissional particularmente habilitada a exercer aquela actividade (note-se que, aliás, o exercício da actividade consistente em fazer declarações aduaneiras em nome e por conta de outrem por forma habitual e profissional se encontrava exclusivamente reservada aos despachantes oficiais, e só em 1992, através do Decreto-Lei nº 89/92, de 21 de Maio, se alargou o exercício de tal actividade a qualquer pessoa, em cumprimento do Regulamento (CEE) nº 3632/85, de
12 de Dezembro). E é assim que a qualidade de despachante é rodeada de determinadas condições e requisitos quer de acesso quer de exercício da actividade respectiva (como a prestação de exame de provas públicas – artigo
450º da reforma –, obtenção de alvará e prestação de caução – artigos 453º e
454º –, inscrição na respectiva Câmara, por exemplo, para além de regras técnicas e deontológicas específicas, constantes dos artigos 455º e seguintes da Reforma e do Estatuto da Câmara dos Despachantes Oficiais – estatuto hoje anexo ao Decreto-Lei nº 173/98, de 26 de Junho, que revogou o aprovado pelo Decreto-Lei nº 450/80, de 7 de Outubro). Por fim, dispõe o artigo 461º da Reforma que a «profissão de despachante oficial regular-se-á, em tudo o que não estiver previsto nesta reforma, pelas disposições da lei geral sobre mandato e prestação de serviços no exercício das profissões liberais». Concluindo, os despachantes oficiais são entidades legalmente habilitadas a intervir perante as alfândegas, no despacho aduaneiro, em nome próprio e por conta de outrem, sem necessidade de procuração, ou seja, exercendo o mandato sem representação. Os despachantes oficiais exercem essa actividade de forma profissional, com a faculdade de exercerem mandato sem representação. Quanto a este aspecto, escreve Antunes Varela, em Anotação ao Acórdão de 11 de Março de 1992, do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (publicado em Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 125º, págs. 55-56):
‘Quanto aos despachantes oficiais, permite pelo contrário o nº 4º do artigo 426º a sua intervenção «em relação a todos os despachos» como quem diz independentemente da exibição de procuração (geral ou especial) com poderes de representação (do dono ou consignatário da mercadoria perante a Alfândega).
[...] Afirma-se, além disso, nos Estatutos da Câmara dos Despachantes Oficiais (art.
38º), que «o despachante oficial é um técnico especializado em matéria aduaneira, procedendo às formalidades necessárias ao desembaraço, por conta de outrem, de mercadorias e meios de transporte». E também esta referência, ampla e indiscriminada, ao desembaraço alfandegário, por conta de outrem, e não em representação de outrem, de mercadorias e meios de transporte, proveniente de quem conhece na prática da vida a diferença essencial entre o agir com procuração e o actuar sem ela, não pode naturalmente deixar de reportar-se, quer ao mandato com poderes de representação, quer ao mandato sem esses poderes’.
(...) A mesma referência a esta actuação por conta de outrem se encontra no nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 289/88: No âmbito da utilização do sistema de caução global para desalfandegamento o despachante oficial age em nome próprio e por conta de outrem, constituindo-se, porém, aquele e a pessoa por conta de quem declara perante as alfândegas solidariamente responsáveis pelo pagamento dos direitos e demais imposições exigíveis. Como se constata, esta norma estabelece a responsabilidade solidária da entidade despachante e do seu mandante (a entidade dona das mercadorias), no âmbito do mandato sem representação, perante as alfândegas, pelo pagamento dos direitos aduaneiros e demais imposições.
É assim que o nº 2,(...), determina, por sua vez, em consequência lógica do disposto naquele nº 1, a sub-rogação do «despachante ou da entidade garante» nos direitos da alfândega. Esta sub-rogação verifica-se tanto no caso do despachante pagar aqueles direitos para a sua mandante, caso em que será ele a sub-rogar-se nos direitos da alfândega, como no de a entidade garante assumir o pagamento em falta, por via da caução que prestou, como sucedeu, aliás, no caso dos autos. Ora, o que resulta do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 289/88 é a extensão de responsabilidade pelos impostos também ao despachante. É que, sempre, em primeira linha, seria a dona das mercadorias responsável pelos impostos devidos pelo desalfandegamento das respectivas mercadorias. Assim, por via do estabelecimento daquela responsabilidade solidária, procura o legislador alargar as garantias do pagamento daqueles impostos, permitindo simultaneamente uma maior celeridade e simplificação do processo de desalfandegamento (cfr. o preâmbulo do diploma). E é nessa responsabilidade solidária que radica a sub-rogação prevista pelo nº 2 do mesmo artigo 2º, consistindo na faculdade de a entidade garante (por via da caução prevista pelo artigo 1º do mesmo diploma) ou o próprio despachante, consoante os casos, «aceder» à posição da Alfândega como credora, e bem assim no direito de regresso relativamente às quantias pagas. No que se vê a transposição, afinal, das regras do direito civil atinentes à responsabilidade solidária. Regras por via das quais, por outro lado, sempre se verificará o direito de regresso da entidade pagante, tal como, da mesma forma, sempre caberá
à recorrente a possibilidade de recurso, nomeadamente, ao exercício do direito de regresso ( e mesmo a eventual procedimento criminal) contra o despachante que, tendo recebido dela as quantias destinadas ao pagamento, o não tenha efectuado. Ou seja, o despachante faltoso sempre incorrerá em responsabilidade civil ( e, eventualmente, também criminal) perante a sua mandante, dona das mercadorias.
(...)
(...) Assim, de acordo com as regras da solidariedade passiva – que é atribuída pelo nº 1 do artigo 2º –, e citando Antunes Varela (Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., pág.807), «o devedor solidário que houver satisfeito o direito do credor, [...] goza do direito de regresso contra cada um dos condevedores pela quota respectiva», sendo tal direito «assim, um verdadeiro direito de compensação concedido ex vi legais ao condevedor que satisfaz o direito do credor». Ora, o nº 2 do artigo 2º reconhece, desde logo, esse direito de regresso, exactamente em consequência da regra da solidariedade passiva atribuída pelo nº 1 ao despachante e à dona das mercadorias. Quanto ao mecanismo também previsto da sub-rogação, já a sua natureza é diversa da do direito de regresso, como também o faz notar Antunes Varela (ob. cit., págs. 813-814, e vol. II, 6º ed., págs. 332 e segs.), tratando-se de «uma modificação subjectiva da obrigação», uma «transferência de créditos... cujo fulcro reside no cumprimento» por um terceiro. E, quanto a esta figura, prevê o artigo 592º do Código Civil que «o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento», aqui se descrevendo a sub-rogação legal, à qual se reverte aquela prevista afinal pelo nº 2 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 289/88. Estando o despachante garantido pela caução prestada nos termos previstos no Decreto-Lei nº 289/88, e sendo esta executada para o pagamento das obrigações devidas à Alfândega, decorre assim daquelas regras gerais a atribuição daquela sub-rogação à entidade garante do despachante. Por sua vez, a sub-rogação do próprio despachante naqueles direitos da Alfândega, também prevista na mesma norma, nem sequer levanta qualquer questão. Em conclusão, o artigo 2º, nº 2, do apontado Decreto-Lei mais não faz do que retomar ou transpor as regras civis que regulamentam as matérias da sub-rogação e do direito de regresso. E fá-lo tendo em conta ainda o especial estatuto dos despachantes e requisitos de exercício dessa actividade profissional a eles inerente, já enunciados (nos quais se inscrevem a prestação de caução, nomeadamente). Por outro lado, esta norma, como resulta do exposto, limita-se assim a estabelecer as consequências da regra da solidariedade passiva atribuída pelo seu nº 1, regra essa que, efectivamente, constitui um desvio ao regime geral do mandato sem representação, estabelecido nos artigos 1180º a 1184º do Código Civil.'
E no acórdão nº 504/98, também inédito, e para o qual de igual modo remete aquele acórdão nº 570/98, em que se colocaram, com igual quadro de circunstâncias de facto, as mesmas violações dos citados 'princípios da Igualdade, da Proporcionalidade e da Justiça', com referência às mesmas normas constitucionais, foi dada a seguinte resposta, que aqui se acolhe, e que, por comodidade, passa a transcrever-se:
'Também aqui improcede a argumentação deduzida. Segundo parece deduzir-se desta, particularmente uma norma como a do nº 2 do artigo 2º, impondo ao dono das mercadorias, ao invés do que sucede no contrato de seguro, a assunção do risco da prestação da garantia em causa, proporcionaria que este pudesse ter de pagar os direitos e imposições alfandegárias à entidade garante, não obstante eventualmente pudesse já o ter feito ao despachante oficial. Nesta leitura, atribuir-se-ia um privilégio desrazoável e desproporcionado à seguradora, mesmo admitindo a possibilidade de onerar o dono das mercadorias com um duplo pagamento. No entanto, objecta-se, a medida legislativa que o artigo 2º exponencia não foi, como já registamos, arbitrariamente decretada, pois que justificada por uma lógica de celeridade e simplificação que, sempre e em última instância, aproveita essencialmente aos agentes económicos - donos das mercadorias ou seus consignatários, importadores ou exportadores - que retirarão as vantagens inerentes a um desalfandegamento mais expedito e eficiente, sem prejuízo de, em qualquer circunstância, poderem lançar mão dos direitos que lhes assistem e respectivos meios processuais próprios a fim de se ressarcirem de eventuais prejuízos sofridos pelo incumprimento, ou cumprimento defeituoso, dos despachantes oficiais, por eles, de resto, livremente escolhidos para desembaraçarem as suas mercadorias, como técnicos especialistas em matéria aduaneira (como sublinha Antunes Varela na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 125, pág. 56). Se o despachante embolsou em seu proveito a importância que lhe foi entregue, não lhe dando o devido destino, não deixará de incorrer em responsabilidade civil, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que terá causado, além da inerente responsabilidade criminal. Não se vê, assim, que se ofenda o princípio da igualdade, tal como sedimentado está no acervo jurisprudencial deste Tribunal, como tão pouco se representa censurável a opção do legislador sob o crivo do princípio da proporcionalidade; não se vislumbra - nem a recorrente explicita cabalmente - violação do disposto nos artigos 1º e 2º da CR, como tão pouco do princípio da imparcialidade da Administração. Não é correcto, nomeadamente, afirmar que o Estado deixa de ter o direito de reclamar directamente ao importador o valor dos direitos e imposições aduaneiros devidos se este demonstrar que entregou ao despachante oficial a quantia devida: a sua obrigação perante a Alfândega não se extinguiu pelo facto de ter posto à disposição do despachante as importâncias destinadas ao pagamento das importâncias devidas, o que, aliás, constitui res inter alios no tocante à Alfândega e à seguradora.'
É para esta fundamentação (seguida depois nos acórdãos nºs 622/98 e 623/98) que se remete, mantendo-se o entendimento de que não se demonstra ofensa de normas ou princípios constitucionais, ao contrário do sustentado pela sociedade recorrente. Donde resulta que as normas em causa do artigo 2º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº
289/88, não se mostram desconformes com a Constituição.
5- Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente nas custas com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 5 de Maio de 1999- Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Bravo Serra Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa