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Processo nº 846/96
1ª Secção Rel. Consª Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I. M..., Lda e Outros impugnaram, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, o '(...) acto administrativo da autoria dos Senhores Secretários de Estado do Orçamento, da Alimentação e do Comércio Interno, consubstanciado no nº 1 da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio, através do qual lhes é determinado o pagamento (liquidação) dos diferenciais de preços de matérias primas (...)', com fundamento em violação do Decreto-Lei nº 45 835, de 27 de Julho de 1964, e dos artigos 106º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea i), da Constituição da República.
A Secção do Contencioso Administrativo negou provimento ao recurso, do que foi interposto um novo recurso, para o Pleno da mesma Secção do Supremo Tribunal Administrativo.
Em alegações, os recorrentes, sustentavam, entre o mais, que '(...) a Portaria nº 302-B/84 enferma dos vícios de ilegalidade e inconstitucionalidade' e que o nº 1.2. da Portaria nº 302-B/84, de
19 de Maio, corresponde à criação de um verdadeiro imposto, com o que viola o disposto nos artigos 106º e 168º, alínea i) da Constituição (...)'
O Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 10 de Outubro de 1995, negou provimento ao recurso. Concluiu, ali, em síntese, que 'não assumindo a natureza de imposto, os diferenciais, como mecanismo administrativo integrado no sistema de fixação de preços no âmbito da regularização dos circuitos e das margens de comercialização de bens essenciais, não só eram conformes ao disposto no Decreto-Lei nº 45 835, como também não estavam sujeitos ao regime decorrente dos invocados artsº. 106º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea i), da Constituição da República que, assim, não foram nem podiam ter sido violados'.
M..., Lda. e outros interpuseram recurso de constitucionalidade desse acórdão, invocando o artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. O acórdão do Pleno da Secção - diziam - 'não considerou afectado de vício de inconstitucionalidade o nº 1.2. da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio, por violação dos artigos 106º e 168º i), da Constituição, questão suscitada desde a petição inicial e em todas as instâncias de recurso (...)'.
O Conselheiro Relator no Supremo Tribunal de Administrativo, convidou os recorrentes a dar as indicações a que se refere o artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, nomeadamente, a da norma que impugnavam. E, em sequência desse despacho, de novo os recorrentes disseram que a norma 'é o nº
1.2. da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio'.
Foi então que foi proferido o despacho de 30 de Novembro de 1995, que não admitiria o recurso para o Tribunal Constitucional:
'Pelo requerimento de fls. 254, completado pelo de fls. 256, os recorrentes M..., Lda., e outros, interpõem recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de fls. 244 e segs., «nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei Orgânica daquele Tribunal.»
Este preceito dispõe caber recurso das decisões dos tribunais «que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo» e o artº 71º, nº 1, da referida Lei (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) prescreve que «os recursos de decisões judiciais para o Tribunal Constitucional são restritos à questão da inconstitucionalidade ou de ilegalidade suscitada.»
Cabe, portanto, recurso de decisões dos tribunais para o Tribunal Constitucional não para que este reaprecie o julgado mas unicamente para decidir sobre a inconstitucionalidade de norma, aplicada nessa decisão, que tenha sido suscitada no processo.
No caso em apreço, os recorrentes, depois de no requerimento de fls. 254 terem declarado interpôr recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 10 de Outubro de 1995 «que não considerou afectado de vício de inconstitucionalidade o nº 1.2. da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio», esclareceram a fls. 256, na sequência de despacho de fls. 255 que determinara a sua notificação para especificarem a norma cuja inconstitucionalidade pretendiam apreciada pelo Tribunal Constitucional, «que a norma afectada pelo vício de inconstitucionalidade é o nº 1 2 da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio».
Sucede, porém, que os recorrentes fizeram objecto de recurso contencioso, conforme a respectiva petição, o «acto administrativo dos Senhores Secretários de Estado da Alimentação e do Comércio Interno, consubstanciando no nº 1 da Portaria nº 302-B/84, de 19 de Maio, através da qual lhes é determinado o pagamento (liquidação) de diferenciais de preços de matérias primas».
E foi da matéria desse recurso contencioso que tanto o acordão da Secção como o do Pleno conheceram, decidindo sobre a legalidade do acto administrativo exarado no nº 1 dessa portaria em função dos concretos vícios que os recorrentes lhe imputaram, alguns decorrentes da alegada violação de normas constitucionais.
Em nenhum desses arestos se considerou a existência de uma norma no aludido nº 1 da Portaria nº 302-B/84 arguída de inconstitucionalidade que houvesse de ser apreciada, questão que nem sequer os recorrentes suscitaram, tendo considerado , antes tratar-se aí de acto administrativo violador de preceitos legais constantes de outros diplomas, que identificaram.
Assim não tendo o acordão do Pleno de que se pretende recorrer para o Tribunal Constitucional feito aplicação de qualquer norma cuja inconstitucionalidade houvesse sido arguida no processo, mas tendo apenas conhecido da legalidade de um acto administrativo contido no nº 1 da citada Portaria nº 302-B/84 e arguido de violação de lei por ofensa de normas não contidas nessa Portaria mas em outras fontes legislativas, designadamente a constitucional, não ocorre o fundamento da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, ao abrigo da qual o recurso vem interposto, pelo que o indefiro nos termos do artº 76º, nºs 1 e 2, in fine, daquela lei.
Deste despacho vem deduzida reclamação, nos termos do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
O Senhor Procurador Geral Adjunto no Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de que ela deve proceder.
II. E é assim, com efeito.
Se, durante o processo, o reclamante sustentou sobre a Portaria nº
302-B/84, de 19 de Maio, nº1 2, uma questão de constitucionalidade, não é a qualificação jurídica por ele feita de 'acto administrativo consubstanciado nessa Portaria' que retira ao caso a objectividade da verificação dos presssupostos do recurso para o Tribunal Constitucional.
O juizo do Tribunal sobre esses pressupostos não está condicionado pelo maior ou menor rigor técnico das peças processuais. Deva ou não qualificar-se a Portaria como acto administrativo, a verdade é que ela também é norma e isso é quanto basta para abrir, no caso, o acesso ao Tribunal Constitucional. É claro que sobre o recorrente impende o ónus de demonstração adequada da sua pretensão, que é, aqui, a pretensão de acautelar a possibilidade de interpor recurso para o Tribunal Constitucional. Mas se a 'ordem das coisas' no processo é capaz de revelar os pressupostos do recurso e superar eventuais problemas de qualificação jurídica, o recurso não tem por que não ser admitido.
Termos em que procede a reclamação.
III. Nestes termos decide-se deferir a reclamação.
Lisboa, 9 de Março de 1998 Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa