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Processo n.º 90/99
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto Acordam em conferência na 2ª Secção do Tribunal Constitucional I. Relatório
1. Nos presentes autos, proferiu o relator em 8 de Abril do corrente a seguinte decisão nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro:
'1. No Tribunal Judicial da Comarca de Ourique, A... interpôs recurso da decisão proferida pela Delegação Distrital de Beja da Direcção Geral de Viação que lhe aplicou a coima de 7.500$00 pela prática da contra--ordenação p. e p. no artigo
85º, n.ºs 1 e 3 do Código da Estrada. O recurso não foi admitido por não obedecer às exigências de forma que impõem ao recorrente a apresentação de conclusões quando alega, nas quais deverá resumir e delimitar as razões do pedido. A... recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, com fundamento em não lhe terem sido reconhecidos os direitos de audiência e de defesa e, ‘não tendo sido concedidos tais direitos, tudo está nulo incluindo a decisão do Governo Civil e do tribunal de que se recorre’, rematando as suas motivações de recurso do seguinte modo:
‘1º Correu contra o Recorrente um processo contra-ordenacional no qual não foi ouvido nem sequer se pode defender, situação que inutiliza, só por si, todo o processo e o torna nulo por violar directamente o estatuído no art 32º N.º 10 da Constituição da República vigente;
2º O Recorrente, por esta omissão essencial, foi induzido em erro, no processo Recorrido, e como tal Impugnou a decisão, mediante contestação para o Governo Civil de Beja, não mediante Recurso, certo sendo que o Governo Civil enviou tal contestação para o Tribunal Recorrido, tendo, assim, privado o Recorrente de se defender e essa privação ofende o estatuído no n.º 10 do art 32 da Constituição da República.
3º O Tribunal Recorrido indeferiu o Recurso, pelo facto dele não constarem Alegações, certo sendo que o Recorrente não Recorreu, pretendia exercer os direitos que os arts 32 N.ºs 1, 2, 3 e 10 garantem aos Arguidos o que lhe foi vedado.
4º Na medida em que toda a tramitação violou os princípios constitucionais invocados e afectou a defesa dos direitos do Arguido, deve tudo ser anulado, desde a omissão da audiência e da defesa do Arguido, no processo contra-ordenacional, pelo que a douta decisão, deve ser substituída por outra que anule o decidido e remeta o processo para a 1ª Instância e este, por sua vez o reenvie para o Governo Civil de Beja, a fim de aí darem cumprimento ao estatuído nos arts 32º N.ºs 1; 2; 3 e 10 da Constituição da República e ser ouvido e usar de defesa o Recorrente Arguido.’ A Relação de Évora, por Acórdão de 14 de Dezembro de 1998, negou provimento ao recurso, destacando-se da respectiva fundamentação as seguintes considerações:
‘A infracção foi presenciada pela entidade autuante que, no local e no acto de autuação, deu cumprimento à notificação, mediante contacto pessoal com o notificado, que se recusou a receber e assinar a notificação (duplicado do auto de contra-ordenação) conforme certidão do duplicado do auto de contra-ordenação.
(...) Não pode considerar-se, assim, que o arguido ficasse prejudicado do exercício do seu direito de defesa, que se não o exerceu tempestivamente, foi porque não quis, tanto mais que sendo advogado e, [tendo] sido notificado no acto da autuação, não lhe seria estranho o conhecimento das regras processuais atinentes ao processo de contra-ordenação.
(...) Assim, ainda que se considere a contestação dirigida ao Governador Civil do Distrito de Évora como impugnação judicial e tempestiva, a mesma, para efeitos de recurso, não obedece à forma legal, pois que não encerra conclusões, o que levaria à rejeição do recurso, art.º 59º, n.º 3 e 63º, n.º 1 do D.L. 433/82.’
2. Desta decisão interpôs o recorrente o presente recurso de constitucionalidade, tendo concluído as 'motivações' de recurso da seguinte forma:
‘1º O Douto Acórdão está nulo pois que aplicou ao caso concreto normas legais art.ºs
50º do dec-lei 433/82; art.º 155 n.ºs 1 e 2 do C.E.; art.º 59º do C.E. e art.ºs
59º n.º 3 e 63º n.º 1 do Dec-Lei 433/82 que violam art.ºs 32º n.º 10; 8º, 12 e
18º da C.R. e ainda o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de
16/12/66 art.º 14 n.º 3 alíneas d) e e); Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 4/11 art.º 6 n.ºs 1 e 2 e 3, pelo menos; art.ºs 7º, 8º e 11º da declaração Universal dos Direitos do Homem.
2º A coima aplicada terá de ficar anulada e sem qualquer efeito pois que na aplicação da mesma foram violados art.ºs 32º n.º 10; 8º, 12 e 18º da C.R. e ainda o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 16/12/66 art.º
14 n.º 3 alíneas d) e e); Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 4/11 art.º 6 n.ºs 1 e 2 e 3, pelo menos; art.ºs 7º,
8º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
3º Assim decidindo, julgando inconstitucional as normas e o procedimento tido na aplicação das coimas por infracção-violação dos art.ºs 32º n.º 10; 8º, 12 e 18º da C.R. e ainda o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de
16/12/66 art.º 14 n.º 3 alíneas d) e e); Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 4/11 art.º 6 n.ºs 1 e 2 e 3, pelo menos; art.ºs 7º, 8º e 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e por isso julgando procedente o presente Recurso e Anulando o Douto Acórdão Recorrido por violação das leis constitucionais supra referidas’. Por não ter o recorrente indicado os elementos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), o relator no Tribunal Constitucional proferiu o seguinte despacho:
‘Nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, convido o recorrente a indicar, no prazo de 10 (dez) dias, os elementos exigidos no n.º 1 (e, se for o caso, no n.º 2) do referido artigo 75º-A.’ O recorrente respondeu a este convite de aperfeiçoamento dizendo simplesmente que ‘suscitou a violação dos preceitos constitucionais, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora (proc. n.º 653/98) da decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Ourique com o n.º de processo 106/98’, e acrescentando que ‘os preceitos constitucionais violados e enunciados pelo recorrente são: art.º 32 n.º 10 da CRP; art.º 18º da CRP; art.º 12 da CRP e artº 8 da CRP’. II. Fundamentos
3. Da análise dos autos resulta a falta de, pelo menos, um dos pressupostos específicos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – o da suscitação da inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma norma durante o processo –, pelo que
é de proferir decisão nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro. Como se sabe – e logo resulta do texto constitucional e da Lei do Tribunal Constitucional (art.ºs 280º e 70º, respectivamente, para a fiscalização concreta) – ‘no direito constitucional português vigente, objecto de fiscalização judicial são apenas as normas’ (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 821; cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996). Ora, tanto no requerimento de recurso como na resposta ao convite para seu aperfeiçoamento, o recorrente limita-se a imputar a inconstitucionalidade à decisão recorrida, e não a quaisquer normas. Esta circunstância, só por si, seria suficiente para o Tribunal não poder conhecer do presente recurso. Acresce, aliás, que o recorrente nem depois de convidado a fazê-lo indica qual a alínea do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual interpõe o recurso. O que, desde logo (para além, portanto, da imputação da inconstitucionalidade à decisão), impede este Tribunal de apreciar outros requisitos específicos do recurso em questão e de dele tomar conhecimento.
4. Acrescente-se, aliás, que, ainda que o presente recurso tivesse sido expressamente interposto com indicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (como a lei exige para o recurso de decisões dos tribunais que hajam aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo), não se poderia tomar dele conhecimento. Na verdade, são requisitos específicos deste tipo de recurso de constitucionalidade, além da aplicação pelo tribunal recorrido da(s) norma(s) cuja constitucionalidade se impugna e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, a suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo. Este último requisito, como se decidiu no Acórdão n.º 352/94
(publicado no Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), deve, porém, ser entendido, ‘não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)’, mas
‘num sentido funcional’, de tal modo ‘que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão’,
‘antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita’. O requerimento do recurso de constitucionalidade não é já, pois, como este Tribunal repetidamente tem afirmado, momento idóneo para pela primeira vez suscitar uma questão de constitucionalidade (v. também, além dos Acórdãos citados, por exemplo o Acórdão n.º 166/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992). E, nos presentes autos, durante o processo nunca foi uma pretensa inconstitucionalidade imputada a qualquer norma, antes se tiveram estas por violadas pela decisão recorrida (assim, a fls. 46 e 47 e nas conclusões do recurso para o Tribunal da Relação de Évora). Não se suscitou, portanto, qualquer inconstitucionalidade normativa, mas antes, e apenas, se pôs em causa a conformidade constitucional da decisão recorrida, tendo perfeita aplicação ao caso as considerações expendidas, por exemplo, no Acórdão deste Tribunal n.º 181/93 (publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Julho de 1993):
‘ [...] Este Tribunal só poderia conhecer do recurso, enquanto fundado na alínea b) citada, se o recorrente houvesse suscitado perante o tribunal recorrido a inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica durante o processo e se o acórdão sob recurso, não obstante, a houvesse aplicado. Objecto do recurso de constitucionalidade só podem, na verdade, ser as normas jurídicas aplicadas que o recorrente tenha arguido de inconstitucionais, e não os actos jurídicos de outra natureza, como sejam os actos administrativos contenciosamente impugnados. Ora, o recorrente [...] não suscitou a inconstitucionalidade de qualquer norma jurídica, antes assacou a violação de direitos fundamentais aos próprios actos recorridos[...].’ Não se pode, pois, conhecer do presente recurso. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decido, nos termos do artigo 78º-A, n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional, não tomar conhecimento do recurso e condeno o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 6 UC.'
2. A..., notificado da decisão sumária supra transcrita, e não se conformando com ela, vem dela reclamar para a conferência,
'visto que a Lei Constitucional no seu art.º 204º diz que ‘Nos feitos submetidos a julgamento não podem os Tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados’, certo sendo que a tal norma está adstrito o Tribunal Constitucional por força do estatuído no art. 209º da Constituição da República daí que o violado pelo Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, preceitos constitucionais indicados e agora omissão de prolação no que se refere a uma inconstitucionalidade, vem arguir tal vício da Decisão supra referida e consequentemente do Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora e que originou o Recurso que coube a decisão cujo vício de omissão se argui.'[sic]. O Ministério Público, em resposta à reclamação deste modo deduzida, defendeu a sua manifesta improcedência, acrescentando ainda que
'Na verdade, as considerações feitas pelo reclamante em nada afectam o teor da decisão reclamada, sendo evidente e inquestionável a inexistência dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto.' Subidos os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. A simples leitura da decisão reclamada patenteia que nela o relator se limitou a verificar o preenchimento dos requisitos para conhecimento do objecto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Apurando que esses requisitos se não encontravam satisfeitos, por 'tanto no requerimento de recurso como na resposta ao convite para seu aperfeiçoamento, o recorrente limitar-se a imputar a inconstitucionalidade à decisão recorrida, e não a quaisquer normas', decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso. O reclamante nada adiantou que seja susceptível de infirmar o decidido. Reafirma-se, pois, que o recorrente, mesmo depois de convidado a suprir as deficiências do requerimento de interposição do recurso, não indicou sequer qual a alínea do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual interpõe o recurso de constitucionalidade (cfr. o artigo 75º-A, n.º 1 do mesmo diploma)., e que, por outro lado, imputou a inconstitucionalidade à decisão recorrida, e não a quaisquer normas. A afirmação do reclamante relativa ao vício de 'omissão de prolação no que se refere a uma inconstitucionalidade', de que enfermaria a decisão sumária reclamada, por sua vez, só pode reportar-se à constatação de que se não tomou qualquer decisão de fundo, versando a decisão ora reclamada apenas sobre a questão prévia da verificação dos pressupostos processuais do recurso em causa. Todavia, como é evidente, a verificação destes pressupostos é indispensável justamente à tomada de conhecimento do recurso, e, portanto, à prolação de uma decisão de fundo, não constituindo isso qualquer omissão de pronúncia, mas antes uma pura e simples decorrência necessária da falta dos pressupostos (relativos à admissibilidade do recurso) para se tomar uma decisão de fundo. Por último, não tendo este Tribunal tomado conhecimento do recurso interposto, por não ter sido suscitada uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo, não procede, também por essa razão, a invocação pelo reclamante, aliás, não concretizada, de que este Tribunal teria aplicado normas que infringem o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados. Uma vez que o reclamante não aduz razões susceptíveis de implicar modificação da decisão sumária proferida, há que desatender a presente reclamação. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional, desatendendo a presente reclamação e confirmando a decisão sumária, decide não tomar conhecimento do recurso e condenar o reclamante em custas, fixando a taxa de justiça em 15 UC. Lisboa, 18 de Maio de 1999 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Luís Nunes de Almeida