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Processo n.º 1196/13
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., S.A. e recorridos B., S.A. e outros, vem o recorrente deduzir reclamação, por não admissão de recurso, do despacho proferido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de maio de 2013 (cfr. fls. 249 dos autos – Vol. anexo).
2. O despacho reclamado não admitiu o recurso de constitucionalidade interposto para o Tribunal Constitucional, com os seguintes fundamentos:
“Não se admite o recurso para o Tribunal Constitucional já que não se vê que tenha sido suscitado, no decurso deste processo, a questão de constitucionalidade do art. 14º do CIRE.
Sublinhe-se que nos próprios termos da presente reclamação, esta foi deduzida, não sobre a inadmissibilidade do recurso para o S.T.J., mas sim por terem sido denegadas nulidades específicas do ato deduzidas incidentalmente no Tribunal da Relação, circunstância que nada tem a ver com o disposto naquele art. 14º do CIRE.”
3. A reclamação para a conferência foi deduzida nos seguintes termos (cfr. fls. 2-10):
A., S.A., Recorrente nos autos de Reclamação à margem identificados, notificado do douto despacho de fls. datado de 28.05.2013 que, sobre o requerimento de fls., não admitiu o recurso para o Venerando Tribunal Constitucional interposto do acórdão que incidiu sobre reclamação para a conferência do indeferimento da anterior reclamação de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, vem ao abrigo dos arts.º 76.º n.º 4 e 77.º da LOTC deduzir reclamação da não admissão de recurso para esse venerando Tribunal, nos termos e pelos fundamentos seguintes:
I - A TRAMITAÇÃO PROCESSUAL
1.
Nos termos do art. 70° n.º2 da versão atualizada da Lei n.º 28/82 de l5 de novembro - Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, a interposição de recursos para esse Venerando Tribunal pressupõe que exista uma decisão prévia que não admita recurso ordinário por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam.
2.
E o n.º 3 da mesma disposição determina que são equiparadas a recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos Tribunais Superiores ou para a conferência.
3.
Dado que o poder jurisdicional dos Tribunais superiores reside no órgão colegial, a parte que se considerar agravada num despacho do relator que não seja de mero expediente, só pode interpor recurso de decisões de acórdãos proferidos.
4.
Por essa razão, a interposição de recurso para esse Venerando Tribunal Constitucional teve como base a prolação de acórdão sobre a reclamação de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça uma vez que só assim se cumpria o disposto no art. 70.º n.º 3 da LOTC.
Posto isto,
II - A RAZÃO DO PRESENTE RECURSO E A FALTA DE FUNDAMENTO DA SUA NÃO ADMISSÃO
5.
No caso concreto, o recorrente deduziu em primeira instância recurso de apelação de prazo reduzido do despacho de fls datado de 02.06.2011 com a referência 6891296, o qual julgou ilegal a conduta do recorrente de se fazer pagar pela conta da devedor SESARAM dos montantes adiantados pelo próprio recorrente à insolvente e, em consequência, determinando que o recorrente pagasse a favor da massa insolvente a quantia de €3.714.497,47.
6.
No âmbito desse recurso foi requerida a nulidade da Sentença, nos termos do art.º 668° n.º 1 do CPC, em função de expressa violação dos arts. 659.º e 663.º do mesmo código.
7.
Efetivamente, a decisão de primeira instancia não teve em conta os textos claros do protocolo e do contrato de mútuo e as consequências jurídicas que, pela análise dos sucessivos dois documentos, teria o pagamento do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (SESARAM) ao banco aqui recorrente dos cerca de três milhões de Euros de adiantamentos que o Recorrente fizera à Insolvente.
8.
E igualmente tal Sentença de Primeira Instancia não teve também em conta que esses factos modificativos e até extintivos da obrigação tivessem também direta consequência numa apreensão previa do credito da massa insolvente sobre o SESARAM.
9.
Porque no Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, a nulidade da Sentença era sempre aferida à expressa violação evidente dos restantes artigos, foi manifestamente insuficiente e lacunoso que o mesmo acórdão produzido só se debruçasse e decidisse sobre a nulidade exclusiva do art. 668.º n.º 1 c) do CPC e não na efetiva violação normativa dos arts. 659.º e 663.º ainda do CPC, designada mente com referencia ao art. 660.º do mesmo código.
10.
Verificou por isso, o aqui recorrente que o pedido de nulidade deduzido no recurso de apelação tinha como causa de pedir não exclusivamente os fundamentos considerados na sentença de primeira instância mas sim, sendo esta a verdadeira causa de pedir, a existência de factos que, reconhecidos, conduziriam a situação diversa.
11.
Continuou, porém, o acórdão de segunda instancia a escamotear e a não considerar todos os factos ocorridos no Processo entre a Sentença de Insolvência e o despacho recorrido de 02.06.2011, nem sobre eles se pronunciava, sendo esta uma das verdadeiras nulidades processuais a que o Tribunal tinha que dar resposta.
12.
Tudo isto constituía efetivamente a identificação de uma nulidade processual ex novo que originou um erro de julgamento e que constituía uma deficiência relativa ao mérito do próprio aresto e que o recorrente claramente identificou.
13.
E isto, traduz-se numa efetiva nulidade não só da decisão como uma nulidade originária do processo nesta fase, subsumível ao art. 201.º do CPC, uma vez que influi decisivamente na decisão da causa dos elementos constantes do processo.
14.
Tais nulidades inovatórias foram deduzidas na sequência da prolação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, constituindo uma decisão inovatória e em primeira instância das nulidades específicas produzidas pelo mesmo Tribunal, não repondo na decisão, todos os factos ocorridos até a mesma ser produzida.
III - A APLICAÇÃO DE NORMA CUJA INCONSTITUCIONALIDADE FOI SUSCITADA ESPECIFICAMENTE NO PROCESSO
15.
E aqui que surge o art.200 da Constituição da República Portuguesa que impõe que a todos seja assegurado o recurso pelo menos de um grau hierárquico de Justiça.
16.
Com efeito, tendo sido suscitadas no Tribunal da Relação de Lisboa, e pela primeira vez, nulidades inovatórias, o Tribunal de Segunda Instância, ao sobre elas não se pronunciar, impunha que fosse assegurada pelo menos um grau hierárquico de recurso.
17.
E foi por isso que o aqui recorrente interpôs recurso da decisão sobre as nulidades para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, sendo nesse mesmo recurso que começou por ser suscitada a inconstitucionalidade da aplicação ao caso concreto das limitações e de uma forma singela do art. 14.º do CIRE, porquanto tal interpretação violava o art. 20.º da CRP.
18.
Não tendo sido admitido pelo Tribunal da Relação de Lisboa tal recurso, deduziu o aqui recorrente reclamação para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do art. 6880 do CPC, com o fundamento de que a arguição da nulidade do ato por violação de lei era inovatória dentro do Recurso, sequente à prolação do acórdão e constituía matéria decidida pela primeira vez e em primeira instância pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
19.
Continuando a violar, com todo o devido respeito, a lei processual Constitucional do art. 200 da CRP, foi tal reclamação negada com o fundamento de que o aqui recorrente não invocara relevantemente a irregularidade processual.
20.
Dado que na Reclamação fora de novo levantada a problemática do art. 20.º da CRP e que a decisão singular sobre a reclamação continuava a não admitir o recurso, foi requerida reclamação para a conferência, ao abrigo do art. 700.º n.º 3 do CPC, onde se renovava a questão da inconstitucionalidade, cujo acórdão agora notificado, ao manter, em decisão colegial, o despacho do relator em reclamação, renova a violação da constituição já sobejamente alegada.
IV - A INTERPOSIÇÃO DE RECURSO, ENCONTRANDO-SE CUMPRIDO O REQUISITO DO ART. 70° N° 2 E 3 DA LEI ORGANICA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A PARTIR DE AGORA DESIGNADA POR LOTC
21.
Encontravam-se assim esgotadas nas instâncias todos os recursos ordinários e reclamações de que o recorrente se podia socorrer.
22.
Por outro lado, e de acordo com o mesmo art. 70.º n.º 1 b) da LOTC, a decisão é recorrível porquanto a negação em conferência da reclamação de não admissão do Recurso esgota o poder jurisdicional de todas as instâncias.
23.
E de igual modo, em tal acórdão continuou a ser aplicada uma norma ordinária de limitação do direito de recurso, em violação ao art. 20 da CRP, já amplamente suscitado nos autos, o que se traduz no preenchimento de novo requisito para o presente recurso.
24.
Tendo o recorrente plena legitimidade para recorrer, de acordo com o art. 72° da LOTC, sendo o recurso interposto no prazo do art. 75° da mesma Lei.
V - O DESPACHO DE NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
25.
Contudo, certo é que o recurso para o Venerando Tribunal Constitucional não foi admitido pelo Exmo. Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça com o argumento de que não via que tivesse sido suscitada no recurso deste processo a questão constitucional do art. 14.º do CIRE.
26.
Só que, com todo o devido respeito, a questão não é essa e em consequência o indeferimento da admissão foi menos feliz.
27.
Com efeito, o que o art. 14° do CIRE diz é que, regra geral não é admitido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação no processo de Insolvência ou em qualquer dos seus apensos.
28.
E esta formulação, também só por si, não colide com o art. 20° da CRP que impõe que a todos seja assegurado o recurso pelo menos num grau hierárquico de justiça.
29.
Dai, o concreto objeto do recurso para o Venerando Tribunal Constitucional não era a inconstitucionalidade em termos estritos do art. 14.º, mas sim o facto de o art. 14.º não poder limitar o direito a pelo menos um grau de recurso quando, como no caso concreto, fossem suscitadas questões inovatórias já em sede de recurso no Tribunal da Relação de Lisboa.
30.
Em suma, o que foi levantado no processo foi a inconstitucionalidade decorrente da aplicação literal do art. 14.º do CIRE, impedindo-se assim que houvesse um grau mínimo de Recurso para as novas questões deduzidas no Tribunal da Relação de Lisboa com a natureza de nulidades processuais resultantes de quaisquer desvios de formalismo processual em relação ao prescrito na lei, conforme ensina o Professor Manuel de Andrade, à revelia do art. 20.º da Constituição.
31.
Mantém-se assim, a plena atualidade e oportunidade de um recurso para o Tribunal Constitucional em que se coloca claramente a questão da inconstitucionalidade da negação de um grau hierárquico de recurso em questões que pela primeira vez são autonomamente suscitadas dentro do recurso como arguição de nulidade do ato por violação de lei.
32.
Negada a admissão de recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça, é este o fundamento da presente Reclamação.
VI - CONCLUSÕES
A} A manter-se, por força da não admissão do presente Recurso, as decisões desfavoráveis do Supremo Tribunal de Justiça quanto às nulidades inovatórias surgidas no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, subsistia a total falta de decisão sobre a questão incidental de nada ter sido dito ou referido sobre os factos extintivos ou modificativos, designadamente da douta sentença da ação de separação de bem, bem como a falta de consideração pelo Tribunal de todos os elementos de prova constantes do processo sobre a evolução creditícia desde a apreensão.
B} Todas estas questões foram deduzidas no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde foram denegadas nulidades específicas do ato deduzidas pela primeira vez e como incidente para o mesmo Tribunal em primeira Instancia.
C} O acórdão que incidiu sobre a Reclamação, negando a admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, violou o art. 20° da CRP, que impõe que a todos seja assegurado o recurso pelo menos num grau hierárquico de Justiça.
D) O Despacho do Conselheiro Relatar do Supremo Tribunal de Justiça, ao negar a apreciação da inconstitucionalidade das decisões nos presentes autos, as quais, por aplicação restritiva do art. 14.º do CIRE, violam o art. 20.º da CRP que impõe que a todos seja assegurado o Recurso pelo menos num grau hierárquico de Justiça, evita que tal questão de inconstitucionalidade seja apreciada pelo Tribunal
Constitucional.
Nestes Termos e nos demais de direito, vem o recorrente requerer a V. Exas. que, analisada e julgada em conferência a presente reclamação, seja a mesma considerada procedente e provada, proferindo competente despacho admitindo o recurso e notificando o Recorrente para produzir as correspondentes alegações nos termos do art. 79.º da LOTC.».
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou resposta (cfr. fls. 59-68), concluindo pela improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A decisão reclamada decidiu pela não admissão do recurso de constitucionalidade interposto, delimitado pelo recorrente quanto à norma do artigo 14.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, na redação atual.
Dispõe o artigo 14.º do CIRE o seguinte:
«Artigo 14.º
Recursos
1 - No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.
2 - Em todos os recursos interpostos no processo ou em qualquer dos seus apensos, o prazo para alegações é um para todos os recorrentes, correndo em seguida um outro para todos os recorridos.
3 - Para consulta pelos interessados será extraída das alegações e contra-alegações uma única cópia, que fica à disposição dos mesmos na secretaria judicial.».
6. No requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional (cfr. fls. 242-246 dos autos – Vol. anexo), depois de se debruçar sobre o que considerou «a identificação de uma nulidade processual ex novo que originou um erro de julgamento e que constituía uma deficiência relativa ao mérito do próprio aresto e que o recorrente claramente identificou» (cfr. fls. 243 dos autos – Vol. anexo), refere o ora reclamante, a propósito da questão de constitucionalidade que pretendia ver apreciada (cfr. fls. 244-245 dos autos – Vol. anexo):
«(…)
II – A Aplicação de norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada especificamente no processo
11.
É aqui que surge o art. 20º da Constituição da República Portuguesa que impõe que a todos seja assegurado o recurso pelo menos de um grau hierárquico de Justiça.
12.
Com efeito, tendo sido suscitadas no Tribunal da Relação de Lisboa, e pela primeira vez, nulidades inovatórias, o Tribunal de Segunda Instância, ao sobre elas não se pronunciar, impunha que fosse assegurada pelo menos um grau hierárquico de recurso.
13.
E foi por isso que o aqui recorrente interpôs recurso da decisão sobre as nulidades para esse venerando Tribunal, sendo nesse mesmo recurso que começou por ser suscitada a inconstitucionalidade da aplicação ao caso concreto e de uma forma singela do art. 14º do CIRE por violação do art. 20º da CRP.
14.
Não tendo sido admitido pelo Tribunal da Relação de Lisboa tal recurso, deduziu o aqui recorrente reclamação para esse Venerando Tribunal, ao abrigo do art. 688º do CPC, com o fundamento de que a arguição da nulidade do ato por violação de lei era inovatória dentro do Recurso, sequente à prolação do acórdão e constituía matéria decidida pela primeira vez pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
15.
Continuando a violar, com todo o devido respeito, a lei processual Constitucional do art. 20º da CRP, foi tal reclamação negada com o fundamento de que o aqui recorrente não invocara relevantemente a irregularidade processual.
16.
Dado que na Reclamação fora de novo levantada a problemática do art. 20º da CRP e que a decisão singular sobre a reclamação continuava a não admitir o recurso, foi requerida a presente reclamação para a conferência, ao abrigo do art. 700º nº 3 do CPC, onde se renovava a questão da inconstitucionalidade, cujo acórdão agora notificado, ao manter, em decisão colegial, o despacho do relator em reclamação renova a violação da constituição já sobejamente alegada.(…)».
7. Não tendo o recurso sido admitido pelo Tribunal a quo, desde logo por entender não suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade do artigo 14.º do CIRE, é de acompanhar este fundamento de não admissão do recurso de constitucionalidade, tendo presente o invocado pelo recorrente junto do Tribunal recorrido quanto à pretensa questão de inconstitucionalidade do artigo 14.º do CIRE, em especial, nos pontos 56 a 66 da reclamação então deduzida junto do Tribunal a quo (fls. 179-180):
«56.
Explicitando, no despacho que não admitiu o Recurso para esse Venerando Tribunal e que é objeto da Reclamação negada, o Sr. Desembargador Relator elenca como fundamentos tudo o que resulta unicamente de terem sido deduzidas nulidades do acórdão já expendidas na Sentença de primeira instância.
57.
E como consequência, vem tal acórdão referir que o art. 14.º do CIRE não permite recurso ordinário em segunda instância, acrescentando que as nulidades do acórdão já tinham sido decididas em despacho que negava a sua existência.
58.
É certo que, nos termos do artigo 14° do CIRE, os recursos ordinários interpostos em processo de insolvência não são, como regra, suscetíveis de recurso para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
59.
Contudo, no caso concreto, o aqui Recorrente interpôs um requerimento, após a prolação do Tribunal da Relação de Lisboa e antes do respetivo trânsito em julgado, no qual deduzia simultaneamente nulidades específicas da decisão, nos termos dos artigos 716.º e 668.º, número 1, alíneas c) e d), do CPC, e nulidades específicas do ato por violação de lei, segundo o disposto no artigo 2010, também do CPC.
60.
Ora, se as nulidades do Acórdão decisório já tinham sido colocadas em sede de recurso como vícios de 1ª instância, e aqui sim poderia colocar-se a questão da disposição imperativa do artigo 14° do CIRE, já a arguição da nulidade do ato por violação de lei, não só é inovatória dentro do recurso, como é sequente à prolação do Acórdão, e é matéria que foi decidida pela primeira vez pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
61.
E igualmente nulidade especificamente invocada pelo recorrente, o que a decisão singular também não deu o correspondente relevo, sucedendo assim que a questão incidental da nulidade do ato nem sequer foi aflorada pelo Acórdão notificado pelo que, quanto a ela, não foi sequer proferida decisão, nem foi como deveria ter sido autonomizada na douta decisão singular sobre a reclamação.
62.
E certo é que o acesso ao Direito e tutela jurisdicional efetiva - artigo 20.º da CRP - impõe que a todos seja assegurado o recurso pelo menos num grau hierárquico da justiça.
63.
Assim e uma vez que o incidente deduzido e posto para decisão pela primeira vez no Tribunal da Relação de Lisboa não foi sequer decidido, teria o primeiro recurso, segundo a lei processual e a Constituição, de ser admitido para decisão pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
64.
Dentro de todo este enquadramento, confirma-se que não versava a reclamação negada sobre a mera admissão de um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em direito de insolvência, mas sim em terem sido denegadas nulidades específicas do ato deduzidas por incidente no Tribunal da Relação de Lisboa como primeira instância e que como tal foram autonomizadas na reclamação julgada improcedente.
65.
Sendo certo que, na referida moldura, era a reclamação do art. 688.º do CPC a sede jurídica própria para impugnar a não admissão de um recurso sobre um incidente autónomo de nulidade, e como tal definido pelo próprio Tribunal recorrido, com decisão totalmente desfavorável nessa instância.
66.
Negada, porém, a Reclamação com o fundamento que o aqui Recorrente se não pode conformar da falta de invocação relevante de irregularidade processual a consequência jurídica seria a de ser mantido o acórdão da Relação de Lisboa recorrido.».
8. Verifica-se que a questão da pretensa inconstitucionalidade do artigo 14.º do CIRE não aparece sequer devidamente enunciada pelo ora reclamante junto do Tribunal recorrido – bastando-se por uma simples referência a um preceito constitucional (cfr. ponto 62, acima transcrito), sem qualquer fundamentação das razões que determinariam o seu desrespeito pela norma legal impugnada.
9. Assim sendo, corrobora-se o juízo a esse propósito formulado na decisão do Conselheiro Relator do STJ agora reclamada, quando conclui que «não se vê que tenha sido suscitada no decurso deste processo, a questão de constitucionalidade do art. 14.º do CIRE» (fls. 249).
10. Acresce que, apreciando-se o teor do requerimento de interposição de constitucionalidade em confronto com o teor da decisão recorrida no presente recurso de constitucionalidade – Acórdão do STJ de 11/04/2013 (cfr. fls. 209-212) – confirma-se ainda o entendimento do Conselheiro Relator do STJ de que, «nos próprios termos da presente reclamação, esta foi deduzida, não sobre a inadmissibilidade do recurso para o S.T.J., mas sim por terem sido denegadas nulidades específicas do ato deduzidas incidentalmente no Tribunal da Relação, circunstância que nada tem a ver com o disposto naquele art. 14º do CIRE».
11. Com efeito, a pretensa questão de constitucionalidade do artigo 14.º do CIRE não releva autonomamente para a decisão desfavorável do STJ de que recorreu para o Tribunal Constitucional.
Tal pode ser confirmado na leitura das seguintes passagens do Acórdão do STJ recorrido, proferido em 11/04/2013, que indeferiu a reclamação deduzida pelo ora reclamante contra o despacho do relator (de fls. 98-101) que indeferiu a reclamação de não admissão de recurso para o mesmo Tribunal (cfr. fls. 209-212):
«(…)
O que trespassa por tudo o referido pelo recorrente na sua longa argumentação, é que não se conforma com as decisões substantivas assumidas pelas instâncias, pretendendo com o que afirma colocar em causa essas resoluções. Mas não vemos que identifique, plausivelmente, qualquer situação conducente à verificação de uma qualquer nulidade processual que, recorde-se, serviu para o ora reclamante sustentar a pertinência de recurso para este STJ (alegadamente por as nulidades invocadas constituírem matéria inovatória dentro da apelação e que foram decididas pela primeira vez pelo Tribunal da Relação de Lisboa).
Assim e concluindo:
Como não está identificada (e até invocada relevantemente) qualquer irregularidade processual cometida e porque, como se viu, foi (apenas) com o fundamento de ocorrência de uma nulidade processual, que o reclamante baseia o presente recurso para este STJ, a conclusão a retirar será é que, por falta de objeto, não será admissível a revista.
Indefere-se, assim, a reclamação confirmando-se o despacho do relator ora reclamado.”
São estas as conclusões alcançadas pelo aresto recorrido, em face do teor da reclamação apresentada junto do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 688.º do Código de Processo Civil (cfr. fls. 169-181), que, como se vê, entende não devidamente invocado nem verificado o fundamento sustentado pelo ora reclamante para a pertinência de um recurso para o STJ, o que constitui a verdadeira ratio da decisão recorrida.
12. Em face do exposto, afigura-se também correto concluir, como o faz a decisão do Conselheiro Relator do STJ reclamada, que a questão a decidir no acórdão recorrido respeitava a questão diversa da inadmissibilidade do recurso para o STJ, nada tendo «a ver com o disposto naquele art. 14.º do CIRE».
13. Ora a presente reclamação não só não infirma as conclusões alcançadas na decisão ora reclamada, como as confirma.
Por um lado, limita-se o reclamante a reiterar a ocorrência de nulidades inovatórias que justificariam o recurso interposto (cfr. pontos 14 a 20 da reclamação, fls. 5-6), o que não mereceu provimento na decisão recorrida, pelo que, por mais uma vez, se afasta de qualquer questão de constitucionalidade do artigo 14.º do CIRE.
Depois, não se conformando com o argumento da falta de suscitação no processo da questão de constitucionalidade do artigo 14.º do CIRE, vem agora esclarecer que «o concreto objeto do recurso para o Venerando Tribunal Constitucional não era a inconstitucionalidade em termos estritos do art. 14.º, mas sim o facto de o art. 14.º não poder limitar o direito a pelo menos um grau de recurso quando, como no caso concreto, fossem suscitadas questões inovatórias já em sede de recurso no Tribunal da Relação de Lisboa.(…) Em suma, o que foi levantado no processo foi a inconstitucionalidade decorrente da aplicação literal do art. 14.º do CIRE, impedindo-se assim que houvesse um grau mínimo de Recurso para as novas questões deduzidas no Tribunal da Relação de Lisboa com a natureza de nulidades processuais resultantes de quaisquer desvios de formalismo processual em relação ao prescrito na lei, conforme ensina o Professor Manuel de Andrade, à revelia do art. 20.º da Constituição.» (cfr. pontos 29-30 da reclamação, fls. 7-8).
Como vimos, a enunciação da questão, assim formulada, não apenas não encontra correspondência nas peças processuais juntas aos autos, em especial, na reclamação decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça no aresto de que interpôs recurso de constitucionalidade, como a mesma questão em nada respeita ao artigo 14.º do CIRE ou a qualquer interpretação «literal» deste preceito, que não poderia «limitar o direito a pelo menos um grau de recurso quando, como no caso concreto, fossem suscitadas questões inovatórias», já que quanto a estas questões inovatórias - recorde-se - o Tribunal recorrido não as considerou devidamente invocadas ou fundamentadas.
14. Em síntese, as razões apontadas para a não admissão do presente recurso de constitucionalidade revelam-se suficientes para as conclusões alcançadas, pelo que é de manter a decisão judicial reclamada que não admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
15. Recorde-se que a admissibilidade do recurso apresentado nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos: ter havido previamente lugar ao esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC), tratar-se de uma questão de inconstitucionalidade normativa, a questão de inconstitucionalidade normativa haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC) e a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionalidade pelo recorrente (vide, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 618/98 e 710/04 – todos disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt).
Faltando um destes requisitos, como in casu, o Tribunal não pode conhecer do recurso.
III – Decisão
16. Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC, nos termos do artigo 7.º e do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 9 de abril de 2014.- Maria José Rangel de Mesquita – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral.