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Processo nº 810/97
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença de 1 de Agosto de 1996 do Tribunal de Círculo e de Comarca de Matosinhos, foi julgada procedente a acção de denúncia do contrato de arrendamento, por necessidade do local arrendado para sua habitação, para 31 de Janeiro do ano seguinte, proposta por C..., proprietária, em 28 de Setembro de
1995, contra J... e mulher, M.... Julgando a acção por via de recurso, o Tribunal da Relação do Porto confirmou a sentença de despejo, por acórdão de 30 de Setembro de 1997. Inconformados, recorreram os inquilinos para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo 'que seja apreciada a inconstitucionalidade do artigo 107º do RAU – Regime do Arrendamento Urbano, e do Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15-X, que o aprovou, questão prejudicial e indispensável, dado que as normas em causa são essenciais e determinantes da decisão da causa. (...) Considera-se existir inconstitucionalidade material e formal, por violação dos artºs 65º, nºs 1 e 3 e
67º, nº 2, al. a) da Constituição da República e da Lei de autorização legislativa nº 42/90, de 10-VIII, tendo-se alegado que: a) O artº 107º, nº 1, al. b) do R.A.U. aprovado pelo D.L. 321-B/90 está ferido de inconstitucionalidade. b) O D. L. 321-B/90, na parte em que revogou o artº 2º da Lei nº 55/79 e instituiu o novo artº 107º, nº 1 do R.A.U. está ferido de inconstitucionalidade material porque, estabelecendo um regime mais gravoso para os mandatários
(arrendatários) , e ao desrespeitar direitos adquiridos, violou os artºs 65º, nºs 1 e 3 e 67º, nº 2, al. a) da Constituição da República. c) E ainda está ferido de inconstitucionalidade formal ao instituir o novo artº
107º, nº 1, al. a) (b) do R.A.U. por exceder manifestamente e violar a autorização legislativa (Lei nº 42/90) que exigia a preservação das regras socialmente úteis que tutelavam a posição do arrendatário. d) O que sucedeu com o alargar de 20 para 30 anos o prazo previsto naquele normativo.' Esclarecem que suscitaram estas questões de inconstitucionalidade, quer na contestação, quer nas alegações produzidas no recurso de apelação.
2. Cumpre, antes do mais, definir o objecto do presente recurso. Pretendem os recorrentes que seja declarada a inconstitucionalidade, por um lado, 'do art. 107º do RAU' e, por outro, 'do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15-X, que o aprovou'. Do próprio requerimento de interposição de recurso, porém, se depreende que apenas estão em causa, quanto ao artigo 107º referido, a al. b) do seu nº 1 (ou seja, a norma que exige o prazo de 30 anos de permanência do inquilino no local arrendado para que o direito de denúncia do contrato de arrendamento por necessidade da casa para habitação própria do senhorio não possa ser exercido) e, quanto ao Decreto-Lei nº 321-B/90, a al. e) do nº 1 do seu artigo 3º, que revogou a Lei nº 55/79, de 15 de Setembro, de cujo artigo 2º, nº 1, b) constava o prazo de 20 anos para o mesmo efeito. No fundo, a norma cuja constitucionalidade se questiona encontra-se da conjugação destas duas disposições, e traduz-se no alargamento, de vinte para trinta anos, do prazo em causa. Feita esta precisão, torna-se indispensável verificar se o acórdão da relação, de que vem interposto este recurso, a aplicou efectivamente, o que merece resposta afirmativa como, claramente, se pode verificar a fls. 159 e segs.
3. Parece útil fazer uma rápida análise da alteração introduzida no regime do contrato de arrendamento urbano pelas normas impugnadas, para o efeito de saber se devem ou não considerar-se desconformes com a Constituição, quer do ponto de vista material, quer do ponto de vista orgânico. Mantendo o regime anterior, o Código Civil de 1966 (artigo 1095º), protegendo o inquilino nos contratos de arrendamento de prédios urbanos, retirava ao senhorio o direito de os denunciar para o termo do prazo, afastando, assim, a regra geral do arrendamento constante do nº 1 do seu artigo 1054º. Fazia-se desta forma prevalecer o interesse da estabilidade da habitação do inquilino sobre as conveniências do senhorio, pondo decisivamente de lado o princípio da liberdade contratual. O artigo 1096º do Código Civil, porém, previa duas excepções à exclusão deste direito de denúncia; entre elas, figurava a de o senhorio precisar do prédio arrendado para sua habitação (nº 1, a), desse artigo 1096º). No confronto entre a necessidade de habitação de um e de outro, prevalecia o do senhorio, já que era o proprietário do local. O exercício do direito de denúncia estava sujeito a uma série de regras, umas constantes, então, do Código de Processo Civil (cfr., por exemplo, o nº 1 do artigo 964º então em vigor, que exigia que a citação do réu fosse feita com a antecedência legalmente exigida relativamente ao termo pretendido para o contrato), outras do Código Civil (cfr. o artigo 1097º, que impunha que a denúncia fosse exercida por via de acção judicial). Julgada procedente a acção, o inquilino só era obrigado a entregar a casa três meses volvidos sobre o trânsito em julgado da sentença (art. 1097º citado) e tinha o direito a ser indemnizado de acordo com o disposto no artigo 1099º, também do Código Civil. Em 1979, pela Lei nº 55/79, de 15 de Setembro, foram, porém, introduzidas novas limitações ao exercício deste direito de denúncia (que, aliás, esteve intermitentemente suspenso desde o Decreto-Lei nº 155/75, de 25 de Março, até à entrada em vigor da Lei nº 55/79). Para o que agora nos interessa, o senhorio deixou de o poder exercer quando o inquilino se mantivesse 'na unidade predial há vinte anos ou mais, nessa qualidade' (al. b) do nº 1 do artigo 2º), dispondo o nº 1 do artigo 5º da mesma Lei, expressamente, que este regime se aplicava aos contratos de arrendamentos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor. Este diploma criou, num certo entendimento, uma excepção peremptória de direito material a favor do inquilino (embora a qualificação seja discutida do ponto de vista doutrinário: cfr. PIRES DE LIMA – ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, II, 4ª ed., Coimbra, 1997, pág. 695), cujo efeito se traduz em provocar a extinção do direito de denúncia do senhorio. Com a entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, mantiveram-se, por um lado, o direito de o senhorio denunciar o contrato de arrendamento urbano com fundamento na necessidade da casa para sua habitação e, por outro, a referida excepção a favor do inquilino; passou, todavia a ser exigido, para o efeito, o prazo de trinta anos de permanência, nessa qualidade, no local arrendado.
4. O problema colocado na presente acção é o da aplicação deste novo prazo ao contrato que C... pretende denunciar, sendo certo que, à data da entrada em vigor do regime introduzido pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, ainda não tinham decorrido os vinte anos previstos no nº 1 do artigo 2º da Lei nº 55/79. As instâncias concluiram pela afirmativa e, desatendendo as questões de inconstitucionalidade suscitadas pelos recorrentes, julgaram a acção procedente.
5. Está em causa, neste recurso, exclusivamente, a questão de constitucionalidade suscitada. Pretendem os recorrentes que ocorrem dois motivos de inconstitucionalidade: material, por ofensa das normas constitucionais que tutelam o direito à habitação (nºs 1 e 3 do artigo 65º da Constituição) e à independência 'social e económica dos agregados familiares' (al. a) do nº 2 do artigo 67º da Constituição); e orgânica (e não formal), por falta de autorização legislativa para a alteração introduzida, por não se poder considerar abrangida pela Lei nº
42/90, de 10 de Agosto, sendo certo que o regime geral do arrendamento urbano se encontra na área da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165º, nº 1, h) da Constituição – correspondente à al. h) do nº
1 do artigo 168º da Constituição, na versão aplicável).
6. Não se considera verificada a alegada inconstitucionalidade material. Por um lado, nenhum juízo se pode fazer com base nos preceitos indicados pelos recorrentes, que, até pela sua natureza programática, se revelam incapazes de fornecer um critério que permita resolver o conflito entre a tutela do direito à habitação que aqui se coloca: por um lado, o do senhorio, proprietário do local arrendado; por outro, o do inquilino, que há longo tempo nele permanece. Note-se que o caso que nos ocupa é diferente daquele que foi julgado pelo acórdão nº 259/98, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Novembro de 1998 . Nesse acórdão, foi julgada materialmente inconstitucional a norma de que nos ocupamos quando aplicada a uma situação em que o prazo anterior (vinte anos) havia decorrido integralmente no âmbito da lei antiga; julgou-se, assim, ser violado o princípio 'da segurança jurídica que se deriva do princípio do Estado de direito democrático', consagrado no artigo 2º da Constituição.
7. Já a diferente conclusão chegamos no que toca à inconstitucionalidade orgânica. Desde logo, não pode haver dúvidas de que está em causa uma alteração do 'regime geral do arrendamento urbano' (ver, a este propósito, no que toca à relevância da regulamentação da denúncia do contrato dentro do regime do arrendamento urbano, os acórdãos nºs 311/93, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., pág. 207 e segs. e 127/98, publicado no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1998). Dúvidas também se não levantam quanto à verificação de que a alteração está abrangida pelo objecto da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, cujo artigo 1º estabelece que 'É concedida ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano'. O que, porém, não foi respeitado, na alteração que nos ocupa, foi o sentido com que a autorização deveria ter sido utilizada, como facilmente se depreende da leitura das diversas alíneas no artigo 2º da mesma Lei. Em particular, pode mesmo dizer-se que a alteração contraria abertamente a directriz traçada pela sua alínea c), que determina que as alterações hão-de preservar as 'regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'. Como se julgou no acórdão nº 426/98, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Dezembro de 1998, 'um dos vectores fundamentais em que se traduz a tutela da posição do arrendatário na legislação portuguesa em vigor há mais de setenta anos reside precisamente no estabelecimento de limites ao exercício da liberdade de o senhorio pôr termo ao contrato de arrendamento. As regras de que resulta a limitação da autonomia privada do senhorio no domínio da cessação do contrato são seguramente as mais importantes regras de tutela da posição do arrendatário. A lei de autorização legislativa não contém qualquer elemento que permita a diminuição da tutela da posição do arrendatário ou que indicie a intenção de lhe sobrepor um outro interesse – o interesse do senhorio ou dos seus descendentes. Pelo contrário, a lei refere-se expressamente à ‘preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário’. A desconsideração do interesse do arrendatário na regulamentação da cessação do contrato só poderia legitimamente acontecer perante uma determinação nesse sentido do órgão com competência legislativa reservada na matéria'. Já neste sentido se pronunciou este Tribunal, no seu acórdão nº 70/99, que julgou 'organicamente inconstitucional a norma contida no artigo 107º, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano'. As considerações feitas valem, naturalmente, para a revogação da al. b) do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 55/79, de 15 de Setembro, constante da alínea e) do nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, que sempre resultaria da entrada em vigor do novo regime.
Assim, decide-se: a) Julgar organicamente inconstitucional a norma constante da alínea b) do nº 1 do artigo 107º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro e da alínea e) do nº 1 do artigo 3º deste Decreto-Lei nº 321-B/90, na parte em que revoga a al. b) do nº 1 do artigo 2º da Lei nº
55/79, de 15 de Setembro, por violação do disposto na al. h) do nº 1 do artigo
168º da Constituição, na versão de 1989; b) Conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada de acordo com o juízo de inconstitucionalidade formulado. Custas pela recorrida, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 5 de Maio de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Messias Bento [vencido pelo essencial das razões aduzidas nas declarações de voto dos Exmºs. Conselheiros Vítor Nunes de Almeida e Paulo Mota Pinto, apresentadas ao acórdão nº 70/99 (DR,II, de 6/4/99 )]. Luís Nunes de Almeida