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Processo nº 234/97
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por despacho de 8 de Março de 1996 do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, no que interessa ao presente recurso, foi a E..., SA pronunciada, na sequência da acusação deduzida pelo Ministério Público, como autora, de ' 1 crime de fraude fiscal p. e p. pelos artº 7º e 23º, nº 1, alínea a), nº 2 alíneas a) e d) e nº 3 alíneas a) e b) do DL nº 20-A/90, de 15/1 – RJIFNA' e de
'35 contra-ordenações fiscais, p. e p. pelos artºs 22º do RJIFNA, 19º, nº 3, 96º alínea d) e 95º do Cód. IVA e 3º do DL nº 20-A/90, de 15/1, ou pelo artº 29º, nºs 1 e 6 alínea a) e 9º do RJIFNA, após as alterações introduzidas pelo DL
394/93, de 24/11, devendo aplicar-se o regime que em concreto for mais favorável.' Em 11 de Abril de 1996, veio a recorrente 'intentar recurso directo para o Tribunal Constitucional' do 'Despacho de Pronúncia contra ela proferido', fundamentando-se, por um lado, na sua incindibilidade e, por outro, na irrecorribilidade 'por disposição legal expressa'. Pretendia que este Tribunal declarasse inconstitucionais 'o artº26º do citado Dec.-Lei nº 20-A/90 e o artº
14º' do mesmo diploma, por violação, respectivamente, dos artigos 13º e 29º, nº
5, da Constituição. Da não admissão deste recurso pelo Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa reclamou a arguida para o Tribunal Constitucional, que, pelo acórdão nº 147/97, o julgou admissível. Formou-se, pois, nos termos do nº 4 do artigo 77º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, caso julgado quanto à admissibilidade do recurso desta decisão. Decidiu-se nesse acórdão nº 147/97:
'2. Viu-se já que a ora reclamante, com o recurso que intentou interpor, visou a apreciação da conformidade constitucional das normas constantes dos artigos 14º e 26º, números 1 e 2, do R.J.I.F.N.A.. Mister é, desta sorte, que se saiba se tais normativos foram aplicados na decisão desejada impugnar, não porque, considerando-a no seu todo, não deixasse de ter havido, num dos seus passos, um expresso juízo decisório sobre as questões de constitucionalidade levantadas àcerca dos mesmos normativos, mas sim porque, no tocante à parte em que nela se pronunciou a reclamante, e relativamente à subsunção jurídica aí efectuada, nenhuma referência é expressamente feita aos mesmos.
2.1. Ora, nesta maneira de colocar a questão, não poderá olvidar-se que a decisão instrutória, ao acolher na pronúncia a acusação deduzida pelo Ministério Público no que tange à arguida E..., não deixou, de um lado, de ter como válida, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, uma interpretação dos números 1 e 2 do artº 26º do R.J.I.F.N.A. que conduza a que a ‘faculdade’ neles prescrita não implica, de modo necessário, um verdadeiro ‘poder-dever’. Poderá, é certo, visualizar-se que o decidido nesta parte vem, ao fim e ao resto, a consubstanciar uma questão prévia ou incidental e que, por isso, não era vedado o recurso da decisão instrutória nessa mesma parte. Contudo, menos certo não é que, ao se pronunciar a ora reclamante, se teve como válida, do ponto de vista da sua conformidade constitucional, uma interpretação dos números 1 e 2 do aludido artº 26º segundo a qual, não obstante estar reposta a verdade fiscal, é possível ao Ministério Público deduzir ou não acusação. Interpretação essa que, no caso, aceitou a efectivação do juízo acusatório sem o qual não seria possível a dedução de pronúncia. De outra parte, porque - tudo o indica - os mesmos factos indiciariamente imputados à E... serviram, na decisão de pronúncia, para que aí se qualificassem como integrando um crime de fraude fiscal e 35 contra-ordenações fiscais, então haverá de concluir-se que no raciocínio ínsito nessa decisão não deixou de estar presente uma interpretação do artº 14º do mesmo R.J.I.F.N.A. de molde a que, constituindo os mesmos factos, simultaneamente, crime e contra ordenação, o respectivo agente deveria, indiciariamente, sofrer punição por um e outra.
É incontestável que da pronúncia, no que respeita a este particular, não se pode desde logo extrair que a ora reclamante venha a ser duplamente condenada pelos mesmos factos indiciariamente descritos, dupla condenação essa decorrente de tais factos virem a ser subsumidos ao cometimento de um crime de fraude fiscal e de 35 contra-ordenações fiscais. Essa é, na verdade, uma questão a resolver em sede de julgamento. No entanto, não se pode deixar passar em claro que, em prisma indiciário, a questionada interpretação do artº 14º do R.J.I.F.N.A. vai, no fundo, condicionar o processo até essa fase, com evidentes implicações no estatuto de arguida da ora reclamante. Haverá, assim que concluir que houve, por banda da decisão pretendida impugnar - ainda que perspectivada somente na parte em que nele se pronunciou a reclamante
- o acolhimento de uma interpretação normativa que, previamente à sua prolação, tinha sido questionada pela mesma reclamante do ponto de vista da sua compatibilidade constitucional'. Encontra-se assim fixado o objecto do presente recurso: a apreciação da invocada inconstitucionalidade de duas normas do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), na interpretação que lhes foi dada nos autos: o artigo
26º, por violação do nº 1 do artigo 13º da Constituição, e o artigo 14º, por contrariedade ao disposto no nº 5 do artigo 29º da Constituição. É segundo esta mesma ordem que se vão apreciar.
2. Na redacção anterior à que lhes foi dada pelo Decreto-lei nº 394/93, de 24 de Novembro, os nºs 1 e 2 do artigo 26º do RJIFNA (aprovado pelo Decreto-Lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro), determinavam: Arquivamento do processo e isenção da pena
1. Se enquanto o auto relativo a crimes previstos nos artigos 23º a 25º não tiver transitado para o Ministério Público, o agente, espontaneamente ou a solicitação da administração fiscal, repuser a verdade sobre a sua situação fiscal, o processo poderá ser enviado ao Ministério Público para efeitos de eventual arquivamento nos termos do número seguinte, desde que se mostrem estarem pagos o imposto ou impostos em dívida e os eventuais acréscimos legais ou terem sido restituídos ou revogados os benefícios injustificadamente obtidos.
2. Se o auto referido no número anterior transitar ou tiver já transitado para o Ministério Público e se verificarem os restantes pressupostos naquele número exigidos, pode o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, decidir-se pelo arquivamento do processo se este ainda não tiver sido remetido para julgamento. A redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, é a seguinte: Arquivamento do processo e isenção e redução da pena
1.Se, enquanto o auto relativo a crimes fiscais que não sejam exclusivamente puníveis com prisão não tiver transitado para o Ministério Público, o agente, espontaneamente ou a solicitação da administração fiscal, repuser a verdade sobre a situação fiscal, o processo será enviado ao Ministério Público para efeitos de eventual arquivamento nos termos do número seguinte, desde que se mostrem estarem pagos o imposto ou impostos em dívida e os eventuais acréscimos legais ou terem sido restituídos ou revogados os benefícios injustificadamente obtidos.
2. Se o auto referido no número anterior tiver já transitado para o Ministério Público e se verificarem os restantes pressupostos naquele número exigidos, pode o Ministério Público, ouvido o assistente e com a concordância do juiz de instrução, decidir-se pelo arquivamento do processo até à sua remessa para julgamento, se considerar satisfeitas as exigências de prevenção que no caso se façam sentir e a conduta do agente não se revestir de forte gravidade. Na perspectiva da arguida, sustentada ao longo do processo e desenvolvida nas alegações, a interpretação do artigo 26º adoptada no processo violaria o princípio da igualdade, por não conceber o poder de arquivamento, verificados os pressupostos legais, como um verdadeiro poder-dever. Conforme sustenta, 'admitir que a expressão 'pode' não tem o sentido de um 'poder-dever', seria proporcionar o arbítrio e a insegurança', por não existir 'nenhum critério objectivo que pudesse orientar as autoridades fiscais, o M.P., e o juiz de instrução, na escolha da alternativa em arquivar o processo ou prosseguir o procedimento criminal, em caso da regularização da situação fiscal pelo contribuinte faltoso'. E acrescenta: 'para que se respeite o princípio da igualdade e não se discriminem os contribuintes, é fundamental que o regime do artigo 26º seja aplicado a todos os que se encontram em situação idêntica, aliás a situação que o legislador definiu, ou seja, a reposição da verdade fiscal, com o cumprimento pelos contribuintes das obrigações fiscais em dívida'. O artigo 26º, tal como interpretado e aplicado, contrariaria ainda a filosofia do RJIFNA, 'que visa a recuperação da receita fiscal devida ao Estado e que, devido a procedimentos ilícitos, foi afastada dos cofres estatais', mediante o incentivo ao pagamento voluntário, como contrapartida do arquivamento do processo. Por outro lado, frustraria os objectivos do legislador, pois 'ninguém estaria disposto à auto-denúncia'.
Discordava, portanto, da interpretação adoptada pelo Tribunal recorrido, que, na decisão instrutória, havia afirmado:
'É o próprio art. 26º do RJIFNA que refere que, reposta a verdade fiscal, o Ministério Público 'pode' decidir-se pelo arquivamento, o que significa que o arquivamento não decorre automática e necessariamente da regularização fiscal. Esta possibilidade (e não imposição, como se pretende), em nada colide com o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei consagrado no art. 13º da Lei Fundamental. Em situações idênticas, os cidadãos devem ser tratados de igual forma, não sendo certo que, no caso que nos ocupa, sempre que reposta a verdade fiscal as situações dos diferentes infractores se identifiquem. É ponderando as circunstâncias de cada caso que se pode aferir da relevância a atribuir à actuação do infractor quando regulariza a situação fiscal, não podendo deixar de ter-se em consideração as razões conducentes a tal regularização e os interesses e valores em jogo. As necessidades de prevenção geral são ínsitas à regras gerais penais e sua filosofia nomeadamente no que respeita aos fins das penas. A este propósito, o Dec.-Lei nº 394/93, de 24/11, limita-se a consagrar expressamente tal princípio, sem que tal se possa considerar novidade, pelas razões apontadas. E o apelo a tais necessidades impõe-se tanto mais quanto são os próprios arguidos que invocam os comportamentos referidos nos autos como prática generalizada e frequente'.
Nas contra-alegações apresentadas neste Tribunal, o Ministério Público veio defender que a nova redacção do nº 2 do artigo 26º se deve considerar meramente interpretativa e esclarecedora do sentido do direito anteriormente em vigor:
'na verdade - e apesar de a norma, na sua redacção originária, se mostrar omissa sobre o critério que devia presidir à decisão do Ministério Público sobre o arquivamento dos autos - era por demais evidente que ele teria necessariamente de orientar-se pelas finalidades do sistema penal, tendo em conta a gravidade
(objectiva) do ilícito cometido, nomeadamente o montante do dano patrimonial causado à Fazenda Pública, o carácter eventualmente reiterado e organizado da actividade delituosa, bem como a gravidade (subjectiva) da culpa dos seus autores.
É, pois, a nosso ver indiscutível que a norma questionada neste recurso, a redacção originária do RIFNA, não podia ser interpretada - nem o foi efectivamente, no caso dos autos - em termos de conferir ao Ministério Público um poder absolutamente discricionário, que lhe facultasse, segundo critérios perfeitamente subjectivos, casuísticos e desprovidos de qualquer base ou fundamento material, exercer ou não a acção penal'.
3. Vejamos se a norma em análise, de acordo com a interpretação adoptada pela decisão recorrida, viola o princípio constitucional da igualdade. O regime em causa permite o arquivamento de processos por crimes previstos nos artigos 23º a 25º do RJIFNA, verificados determinados pressupostos. Entre estes, conta-se a reposição pelo agente da verdade fiscal, espontaneamente ou a solicitação da administração fiscal; o pagamento do imposto ou impostos em dívida e os eventuais acréscimos legais ou a restituição ou revogação dos eventuais benefícios injustificadamente obtidos. Não tendo o processo sido remetido para julgamento, pode o Ministério Público decidir arquivá-lo, desde que obtenha a concordância do juiz de instrução. Coloca-se a questão de saber se o Ministério Público e o juiz de instrução têm plena liberdade para decidir se o processo deve ou não ser arquivado, verificados que estejam todos os pressupostos legalmente estabelecidos. Uma leitura isolada da disposição impugnada poderia levar a aceitar a ideia da atribuição de poderes ilimitados ao Ministério Público e ao juiz de instrução, já que não são expressamente estabelecidos os critérios que devem presidir à referida decisão. Mas não pode evidentemente esquecer-se que a interpretação de cada norma implica sempre a ponderação do sistema em que se insere, dependendo o respectivo sentido decisivo da tomada em consideração das normas e dos princípios gerais aplicáveis no sector específico que está em causa, bem como dos comandos que apresentem com a norma interpretanda conexões de sentido. Deve recordar-se, a este propósito, o nº 1 do artigo 280º do Código de Processo Penal de 1987, não aplicável ao processo fiscal (nº 3 do artigo 47º do R.J.I.F.N.A.) mas cujo regime é semelhante: Arquivamento em caso de dispensa ou isenção de pena
1. Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa ou de isenção de pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa ou isenção. Nos termos da disposição transcrita, a não continuação do processo depende de uma decisão que pressupõe o acordo do Ministério Público e do juiz de instrução, fundada em determinados pressupostos, que se traduzem na previsão legal de dispensa ou de isenção de pena. Como exemplos de previsão legal da possibilidade de dispensa de pena no Código Penal, podem referir-se; o nº 2 do artigo 35º (cuja epígrafe é 'estado de necessidade desculpante'), que prevê que pode 'excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena'; o nº 3 do artigo 143º ('ofensa à integridade física simples'), que estabelece, em dadas hipóteses mencionadas nas correspondentes alíneas a) e b), que 'o tribunal pode dispensar de pena', o mesmo acontecendo nos termos do nº 2 do artigo 148º ('ofensa à integridade física por negligência); por força dos nºs 2 e 3 do artigo 186º, inserido no capítulo dos crimes contra a honra, 'o tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido', podendo o tribunal ' dispensar de pena ambos os agentes ou só um deles, conforme as circunstâncias', 'se o ofendido ripostar, no mesmo acto, com uma ofensa a outra ofensa'; o nº 2 do artigo 186º é ainda aplicável, de acordo com a alínea b) do nº 2 do artigo 187º, ao crime aí previsto. Nestas hipóteses, entre muitas outras, previstas na legislação penal geral ou especial, da conjugação do nº 1 do artigo 280º do Código Penal com as normas que prevêem a possibilidade de dispensa ou de isenção de pena resulta um regime idêntico ao que é impugnado no presente recurso: a verificação dos pressupostos legais não torna obrigatório o arquivamento do processo. Tal arquivamento depende de decisão nesse sentido do Ministério Público e do juiz de instrução. Regime semelhante é ainda o que se estabelece no nº 1 do artigo 281º do Código de Processo Penal, quando o crime é punível com pena de prisão não superior a três anos ou com sanção diferente da prisão, e estão verificados os pressupostos previstos nas alíneas do mesmo número: 'pode o Ministério Público decidir-se, com a concordância do juiz de instrução, pela suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta', cujo cumprimento leva ao arquivamento do processo (nº 3 do artigo 282º). Refira-se que o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se preventivamente sobre a constitucionalidade da suspensão do processo, aquando da apreciação do Código de Processo Penal de 1987 (cfr. acórdão nº 7/87, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9º, pág. 1 e segs., págs. 43-46 e
50). Sobre este instituto, que na versão inicial fazia depender exclusivamente do Ministério Público a decisão de suspensão do processo, afirmou este Tribunal
(loc. cit., pág. 45):
'A questão posta, ou seja, a da suspensão do processo pelo Ministério Público findo o inquérito, pode, porém, cindir-se em duas: uma a da admissibilidade da suspensão em si mesma considerada; a outra, a da competência para ordenar a suspensão e a imposição das injunções e regras de conduta. A admissibilidade da suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo constitucional. Já não se aceita, porém, a atribuição ao Ministério Público da competência para a suspensão do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei sem a intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de instrução, e daí a inconstitucionalidade, nessa medida, dos nºs 1 e 2 do artigo 281º, por violação dos artigos 206º e 32º, nº 4 da Constituição'. Hipóteses que apresentam algum paralelismo, por os critérios a que deve obedecer o exercício da faculdade em causa não se encontrarem expressamente fixados na própria disposição legal, são ainda, entre outras: os casos em que a lei prevê directamente a possibilidade de atenuação especial da pena (refiram-se, a título de exemplo, o nº 2 do artigo 10º, sobre os crimes comissivos por omissão e o nº
3 do artigo 17º, sobre o erro censurável sobre a ilicitude); ou a possibilidade de, nos crimes próprios ou qualificados por relações ou qualidades especiais do agente, 'consideradas as circunstâncias do caso', não se estender aos extranei a pena prevista para os intranei (nº 2 do artigo 28º, todos do Código Penal). Em todas as hipóteses mencionadas exemplificativamente, seria abstractamente pensável conceber o poder conferido ao Ministério Público e ao juiz como um poder de exercício livre, isto é, apenas condicionado pelos pressupostos que, directa e expressamente, são fixados nas disposições que consagram tais poderes. Mas afigura-se evidente que o exercício dos referidos poderes não é livre, antes se encontrando naturalmente submetido às regras e aos princípios gerais do Direito Penal e do Processo Penal. É em função de tais regras e princípios – entre os quais se conta a ponderação dos bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora, da gravidade objectiva e subjectiva da infracção e das exigências de prevenção –, que há-de pautar-se a actuação dos órgãos judiciários em causa. Recorde-se, de resto, que o tribunal recorrido não interpretou a norma impugnada no sentido de que esta atribui um poder ilimitado, ou um poder de decisão arbitrário. Ao invés, julgou necessária uma ponderação das 'circunstâncias de cada caso', 'dos interesses e valores em jogo', bem como das 'necessidades de prevenção geral', afirmando expressamente que 'em situações idênticas, os cidadãos devem ser tratados de igual forma, não sendo certo que, no caso que nos ocupa, sempre que reposta a verdade fiscal as situações dos diferentes infractores se identifiquem'. Conclui-se, assim, que a norma impugnada não viola o principio da igualdade. Na verdade, não resulta dessa norma – nem ela sequer a permite – qualquer discriminação ilegitima ou arbitrária.
4. Não estando todavia este Tribunal vinculado aos fundamentos invocados na apreciação da constitucionalidade de normas aplicadas na decisão recorrida (cfr. artigo 79º-C da Lei nº 28/82), pode ainda questionar-se a compatibilidade da norma em causa com o princípio constitucional da legalidade criminal e da legalidade no exercício da acção penal, consagrados, respectivamente, nos artigos 32º e 219º, n º 1, da Constituição. Mas também este princípio se não mostra violado. A exigência constitucional da legalidade em matéria penal e processual penal não é incompatível com a atribuição de poderes não estritamente vinculados ao Ministério Público e ao juiz, desde que se encontrem legalmente delimitados os pressupostos do exercício desses poderes, desde que resultem do conjunto do sistema os critérios a que deve atender-se no respectivo exercício, e desde que a margem de liberdade atribuída não leve à falta de previsibilidade da decisão.
5. É verdade, em abstracto, que o Ministério Público e o juiz de instrução podem fazer um mau uso do poder que lhes é conferido pela norma cuja inconstitucionalidade se discute, em desrespeito dos critérios gerais que resultam da lei penal e processual penal e até, eventualmente, em termos violadores do princípio da igualdade. Mas a tal objecção pode e deve responder-se dizendo, em primeiro lugar, que a
única hipótese de afastar, à partida, toda a possibilidade de lesão, pelas autoridades judiciárias, do princípio da igualdade, seria retirar-lhes qualquer poder (instituindo um sistema de penas fixas, acabando com o sistema de livre apreciação da prova, entre muitos outros aspectos). Em segundo lugar, sempre estaria vedado ao Tribunal Constitucional o conhecimento de uma inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade que residisse não na atribuição do poder em si, mas no exercício desse poder: é que a eventual lesão do princípio da igualdade estaria aí na decisão, não na norma aplicada. Ora, não pode aquela ser sindicada por este Tribunal, cujos poderes se circunscrevem à apreciação da constitucionalidade de normas. No domínio de que nos ocupamos agora, pretendeu evitar-se este risco no ANTEPROJECTO FIGUEIREDO DIAS/FARIA COSTA (15/9/88), que no artigo equivalente, para o crime de fraude fiscal, previa: Auto-denúncia de fraude fiscal Se, enquanto o auto relativo a presumida fraude fiscal não tiver transitado para o Ministério Público, o agente, espontaneamente ou a solicitação da Administração Fiscal, repuser a verdade dos factos sobre a sua situação fiscal ou inequivocamente tornar possível ou facilitar o seu apuramento, o processo será arquivado logo que se mostrem estar pagos o imposto ou impostos em dívida e os eventuais acréscimos legais ou terem sido restituídos ou revogados os benefícios injustificadamente obtidos. O direito vigente terá optado, poderá argumentar-se, por uma solução pior, quer do ponto de vista da segurança jurídica, quer do ponto de vista da eficácia da auto-denúncia; não é, todavia, violadora da lei fundamental.
6. A segunda das normas cuja constitucionalidade é questionada no presente recurso é a resultante da interpretação do artigo 14º ao RJIFNA, no sentido de consentir que a mesma factualidade comporte simultaneamente uma punição a título de crime e a título de contra-ordenação. De acordo com o nº 5 do artigo 29º da Constituição, 'ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime'. Dispõe o artigo 14º do RJIFNA:
'Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação previstos neste Regime Jurídico, será o agente punido apenas pelo crime'. Sustenta a recorrente, nas alegações apresentadas neste Tribunal, que o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa 'interpretou este artigo, apesar da sua redacção literal, como permitindo o oposto: como permitindo que, perante rigorosamente os mesmos factos, perante uma única conduta, não se tendo violado interesses jurídicos distintos, ao mesmo arguido sejam imputados um crime e várias contra-ordenações'. E acrescenta: 'assim sendo, na decisão recorrida, deu-se uma interpretação ao artigo 14º do RJIFNA que viola o artigo 29º nº 5 da Constituição, tornando-o inconstitucional por permitir essa interpretação'. Nas contra-alegações apresentadas pelo Ministério Público concluiu-se o seguinte, quanto a este ponto:
'4º - A circunstância de a decisão instrutória fazer expressa referência aos possíveis enquadramentos jurídico-criminais e contraordenacionais – dos factos imputados aos arguidos – sem tomar posição sobre a natureza, real ou aparente, de tal concurso – não constitui qualquer violação do princípio 'ne bis in idem'.
5º - Resultando antes de um escrupuloso cumprimento pelo Tribunal da regra do contraditório, traduzido em facultar, desde logo, aos arguidos todos os possíveis enquadramentos jurídicos dos factos, facultando-lhes o exercício do direito de defesa, expresso na possibilidade de sobre tais qualificações jurídicas 'alternativas' desde logo se pronunciarem.'
7. Deve desde já ter-se presente que a decisão instrutória não tomou as distintas qualificações dos factos a título de crime e de contra-ordenações como qualificações alternativas, não sendo por isso procedentes as considerações a esse propósito formuladas nas contra-alegações do Ministério Público. Com efeito, a arguida foi pronunciada pela prática de um crime e de 35 contra-ordenações, não se encontrando qualquer indício de que a decisão instrutória tenha considerado tais infracções apenas como modos alternativos de qualificar a conduta daquela (cf. o ponto VI da decisão instrutória, que remete
'para as razões expostas nas conclusões do Ministério Público e a fls. 792 vº', bem como as alíneas a) e b) do trecho da decisão instrutória que pronuncia a arguida).
8. Importa sublinhar que o nº 5 do artigo 29º da Constituição, ao determinar que
'ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime', tem em vista não apenas o duplo julgamento mas ainda a dupla incriminação ou penalização (cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 194). Na sua vertente substantiva (cf. GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, I, Lisboa, 1997, pág. 305, nota 2), o princípio 'ne bis in idem' proíbe a plúrima punição da mesma infracção. Este princípio não é, porém, incompatível com a valoração plural do mesmo facto ou da mesma acção. A doutrina penalística portuguesa, na esteira de EDUARDO CORREIA (Unidade e pluralidade de infracções, passim, in A teoria do concurso em Direito Criminal, reimp., Coimbra, 1983) defendeu a aplicação do regime do concurso efectivo de crimes – com o inerente afastamento do chamado concurso aparente, ou concurso de normas –, que se traduz entre nós na realização de um cúmulo jurídico das respectivas penas (v. artigos 77º e 78º do Código Penal), quer ao chamado concurso real, quer ao denominado concurso ideal de crimes. O nº 1 do artigo 30º do Código Penal de 1982 veio justamente consagrar tal aplicação, mediante uma equiparação das duas modalidades de concurso de crimes. No último caso (concurso ideal), um único facto ou acção é multiplamente qualificado como crime, quer por força da violação simultânea de mais do que uma norma incriminadora (concurso ideal heterogéneo), quer por força da ofensa plural da mesma norma incriminadora
(concurso ideal homogéneo).
É muito complexa a questão de saber quais os limites que constitucionalmente condicionam a possibilidade de tratar como concurso efectivo e não como mero concurso aparente determinado comportamento tipificado na lei penal. Mas não basta evidentemente invocar a punição plural de um facto ou acção unitários para se ter como demonstrada uma violação do nº 5 do artigo 29º da Constituição. O apuramento de tal violação pressupõe que as normas em causa sancionem - de modo duplo ou múltiplo - substancialmente a mesma infracção. A contrariedade ao princípio 'ne bis in idem' depende assim da identidade do bem jurídico tutelado pelas normas sancionadoras concorrentes, ou do desvalor pressuposto por cada uma delas. Ora, importa reconhecer que no crime previsto nos artigos 23º e 7º do RJIFNA
(fraude fiscal), está em causa um desvalor fundamentalmente idêntico ao que se encontra subjacente às contra-ordenações fiscais em causa.
9. Tendo em conta que a eventual violação do princípio 'ne bis in idem' pela norma do artigo 14º do RJIFNA, na interpretação que a decisão recorrida lhe atribuiu, diz respeito não a uma dupla incriminação, mas sim à punição simultânea dos mesmos factos como ilícito criminal e como ilícito de mera ordenação social, importa apurar se aquele princípio deve ter-se por aplicável nestas hipóteses. Note-se que o que agora importa determinar não é propriamente se aquele princípo se aplica às contra-ordenações (sendo admissível a sua aplicação analógica a todos os direitos sancionatórios), mas se ele tem cabimento nas situações de concurso entre crimes e contra-ordenações. A propósito de uma questão paralela, a do concurso entre a responsabilidade criminal e a responsabilidade disciplinar, entendeu-se no acórdão nº 253/94 deste Tribunal que, 'tratando-se de actos ilícitos de diferente natureza, sancionados com penas diferentes, apreciados em processos diversos por autoridades diferentes (num caso, um funcionário público; no outro, um juiz penal) não pode falar-se de um duplo julgamento, não havendo o risco de se conseguir nem uma condenação penal de quem já haja sido definitivamente absolvido pela prática do acto ilícito, nem uma nova aplicação de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo acto ilícito'. E acrescentou-se: 'De facto, trata-se de responsabilidades diversas e autónomas que tutelam bens jurídicos perfeitamente distintos, podendo o agente ser censurado pelo seu comportamento em dois planos diversos, o penal e o disciplinar, sem ofensa de qualquer princípio constitucional' (cf. ainda o acórdão nº 161/95). Ora, independentemente dos critérios materiais que poderão fundamentar a distinção entre ilícito criminal e de mera ordenação social, não parece que tal distinção signifique a existência de total autonomia dos dois domínios. Na verdade, a conexão entre eles resulta, entre outros aspectos: da aplicação subsidiária do direito e processo penais no âmbito do ilícito de mera ordenação social (arts. 32º e 41º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro); da construção da infracção contra-ordenacional um pouco à imagem da infracção criminal; da competência, salvo disposições especiais, dos tribunais comuns para apreciarem os recursos das decisões administrativas em matéria de contra-ordenações; da semelhança entre a coima e a multa criminal, mormente quando está em causa uma pessoa colectiva; da semelhança entre as sanções acessórias previstas no ilícito de mera ordenação social e as penas acessórias do direito criminal. Acresce que, no caso sub judicio, as normas sancionadoras dos dois tipos de ilícito se inserem em um único diploma legal. Assim, não parece poder repetir-se nesta sede, ao menos em geral, o juízo formulado sobre o concurso de responsabilidade criminal e disciplinar. Com efeito, os bens jurídicos tutelados, embora tendam a extremar-se em termos gerais (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, que aprovou o regime geral do ilícito de mera ordenação social) são neste caso idênticos. Os
órgãos de aplicação são em princípio diferentes, mas podem em certas hipóteses ser os mesmos, como no caso dos autos. As penas principais aplicáveis nos dois
âmbitos (coimas e multas criminais) apresentam semelhanças, tanto mais que, sendo responsabilizadas pessoas colectivas, a multa não é naturalmente susceptível de conversão em prisão subsidiária. Conclui-se, pois, no sentido de que o princípio 'ne bis in idem' consagrado no nº 5 do artigo 32º da Constituição, pode ter aplicação, por analogia, em hipóteses de concurso de crimes e contra-ordenações, quando os bens jurídicos tutelados pelas respectivas normas sejam idênticos. No fundo, é o reconhecimento de que estão em causa os mesmos bens jurídicos nas infracções correspondentes a factos que, pelo mesmo diploma, o RJIFNA, 'constituem simultaneamente crime e contra-ordenação' que justifica o artigo 14º, e não qualquer desvio às regras do concurso de crimes atrás referidas. Assim sendo, a norma que a decisão recorrida implicitamente aplicou – o artigo
14º do RJIFNA, entendido no sentido de permitir a cumulação da punição a título de crime e a título de contra-ordenação, pelas normas do RJIFNA, pelos mesmos factos – contraria, pois, o princípio 'ne bis in idem' constitucionalmente consagrado. Essa não é, todavia, nem a única, nem a correcta interpretação desta norma do artigo 14º. Efectivamente, recorrendo aos cânones gerais de interpretação da lei
– aqui, sem grande dificuldade de aplicação, dada a clareza do elemento literal
–, somos levados a concluir que, não sendo possível a condenação simultânea por crime e contraordenação punidos pelo RJIFNA quando estão em causa os mesmos factos, a pronúncia prévia ao julgamento não poderá deixar de, ou optar por uma das infracções, ou, então, referir as duas em alternativa. Chama-se, a atenção para as contra-alegações do Ministério Público neste Tribunal, atrás transcritas, e que aqui se repetem, quando interpreta como alternativas as qualificações apresentadas para as infracções:
'4º - A circunstância de a decisão instrutória fazer expressa referência aos possíveis enquadramentos jurídico-criminais e contraordenacionais
– dos factos imputados aos arguidos – sem tomar posição sobre a natureza, real ou aparente, de tal concurso – não constitui qualquer violação do princípio 'ne bis in idem'.
5º - Resultando antes de um escrupuloso cumprimento pelo Tribunal da regra do contraditório, traduzido em facultar, desde logo, aos arguidos todos os possíveis enquadramentos jurídicos dos factos, facultando-lhes o exercício do direito de defesa, expresso na possibilidade de sobre tais qualificações jurídicas 'alternativas' desde logo se pronunciarem.'
Encontram-se, assim preenchidas as condições para que o Tribunal Constitucional, utilizando o poder que lhe é conferido pelo nº 3 do artigo 80º da Lei nº 28/82, interpretar a norma constante do artigo 14º do RJIFNA como apenas permitindo a pronúncia, em alternativa, pelo crime de fraude fiscal ou pelas contraordenações referidas no despacho respectivo, previstas e punidas pelos artigos do mesmo RJIFNA que indica, na medida em que correspondam aos mesmos factos.
Nestes termos e pelas razões expostas, decide-se julgar apenas parcialmente procedente o recurso, nos seguintes termos: a. Não julgar inconstitucional os números 1 e 2 do artigo 26º RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei nº 29-A/90, de 15 de Janeiro, na interpretação que deles fez a decisão recorrida; b. Interpretar a norma constante do artigo 14º do RJIFNA como apenas permitindo a pronúncia, em alternativa, pelo crime de fraude fiscal ou pelas contraordenações referidas no despacho respectivo, previstas e punidas pelos artigos do mesmo RJIFNA que indica, na medida em que correspondam aos mesmos factos, devendo reformar-se em conformidade a decisão recorrida.
Lisboa, 29 de Abril de 1999- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Bravo Serra Messias Bento Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa