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Proc. nº 283/97
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Beleza
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por despacho de 12 de Dezembro de 1995, de fls. 66, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa (2º Juízo) determinou que J..., R... e A..., arguidos em processo crime, no qual estão indiciados pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo nº 1 do artigo 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, fossem restituídos à liberdade, por haver sido esgotado o prazo de prisão preventiva de oito meses, previsto na alínea a) do nº 1 e no nº 2 do artigo 215º do Código de Processo Penal, sem que tivesse sido deduzida acusação. O Tribunal de Instrução considerou que não tinha aplicação o disposto no nº 3 do artigo 215º do mesmo Código, porque o pedido de elevação do prazo de prisão preventiva para doze meses não havia sido formulado e apreciado antes de extinto o prazo que decorria.
2. Deste despacho interpôs recurso o Ministério Público para o Tribunal da Relação (fls. 70). No que agora interessa, concluiu do seguinte modo a respectiva motivação:
'III Conclusões
a) A Mme Juiz ‘a quo’ no seu despacho de fls. 845 (v. vol) considerou que os arguidos R..., AS..., RL..., J... e A... se encontravam presos preventivamente desde 10.04.1995, data da sua detenção.
(...)
f) A interpretação da Mme Juiz ‘a quo’ confunde dois conceitos – detenção e prisão preventiva.
(...)
j) O(s) prazo(s) de prisão preventiva só se contam a partir da data do despacho judicial que determinou que o(s) arguido(s) aguardassem os ulteriores termos do processo sob prisão.
(...)
p) Em 12.12.1995, o MºPº ordenou a remessa dos autos ao T.I.C. afim de a Mme Juiz ‘a quo’ proferir despacho a elevar o prazo de duração de prisão preventiva aplicada aos arguidos. – ‘ex vi’ artº 215 nº3 C.P.P.
q) Atempadamente.
r) O C.P.P. não define prazo para que tal despacho seja proferido.
s) Mesmo a entender-se que o prazo se contava desde a detenção sempre a Mme Juiz ‘a quo’ podia (e devia) proferir despacho a elevar o prazo de prisão preventiva (observados os condicionalismos legais).
(...)
v) Olvidou-se que arguidos estavam indiciados da prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artº 21 nº 1 do Dec-Lei 15/93 de
22.01.
x) Não se atendeu ao disposto no artsº 51 nº1 e 54 nº 1 e nº 3 do Dec-Lei 15/93 de 22.01.
(...) aa) Acresce que, os autos dão expressiva nota da complexidade dos factos em análise. ab) A Mme Juiz ‘a quo’ devia proferir despacho a elevar o prazo de prisão preventiva dos arguidos para 12 (doze) meses ‘ex vi’ artsº 209, 215 nº 3 ambos do C.P.P. com referência ao artº 54 do Dec-Lei 15/93 de 22.01. ac) O despacho ora posto em crise violou por erro de interpretação e aplicação, entre outros, o disposto no artsº 254, 202, 194, 215, 209 todos do C.P.P. e 51 nº 1 e nº 2, 54 nº 1 e nº 3 ambos do Dec-Lei 15/93 de 22.01. ad) Pelo que deverá ser integralmente revogado e substituído, de imediato, por outro, que determine que os arguidos devem aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.'
3. Os arguidos ora recorrentes responderam a esta motivação, sustentando a manutenção do despacho Juiz do Tribunal de Instrução. Em síntese, vieram opor que a aplicação do regime previsto no nº 3 do artigo
215º do Código de Processo Penal, com a correspondente elevação de prazos máximos da prisão preventiva depende de promoção do Ministério Público e de despacho do juiz de instrução declarando o procedimento como de especial complexidade, proferido em momento anterior ao termo do prazo que seria aplicável sem aquela elevação. Entendimento diferente do nº 3 do citado artigo 215º seria, aliás, inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 27º (no entendimento de R...), 28º, nº 4 (de acordo com J...) ou 32º (na perspectiva de A...), todos da Constituição.
4. Não acolhendo embora o essencial da argumentação do Ministério Público, o Tribunal da Relação de Lisboa deu provimento ao recurso. Consequentemente, revogou o despacho recorrido e ordenou a sua substituição por outro que, 'a manterem-se as exigências cautelarares que determinaram a aplicação da medida de coacção em causa aos arguidos, determine que estes aguardem os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, sem prejuízo da unidade dos prazos estabelecidos no nº 3 do art. 215º do Código de Processo Penal para as diversas fases processuais previstas nas alíneas a) a d) do nº 1 do mesmo artigo'. Os fundamentos desta decisão foram, no que agora releva, os seguintes:
'6. Porém, como se referiu, os arguidos estão indiciados pela prática do crime de tráfico ilícito de estupefacientes p. p. pelo artigo 21º, nº 1, do Dec-Lei nº
15/93, diploma que define o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, e que contém, no capítulo V, disposições especiais no âmbito do processo penal. Assim, depois de no nº 2 do artº 51º estabelecer a aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Penal e legislação complementar, ‘na falta de disposição específica’ daquele decreto-lei, prescreve no art. 54º, nº3, no campo da prisão preventiva, que ‘quando o procedimento se reporte a um dos crimes referidos no nº 1 [tráfico de droga, desvio de precursores, branqueamento de capitais ou de associação criminosa], é aplicável o disposto no nº 3 do artigo
215º, do Código de Processo Penal’. Ora, este normativo, ao remeter especificamente para o nº 3 do art. 215º do CPP/87, já transcrito no ponto anterior, não tem outra finalidade senão a de afastar, nos casos dos crimes mencionados, a aplicação dos nºs 1 e 2 do citado art. 215º, pois, se assim não fosse, e se se aplicassem aqueles números, o dispositivo do nº 3 do artigo 54º do Dec-Lei nº 15/93 era absolutamente inútil e sem justificação possível, pois a aplicação a que se reporta já resultava subsidiariamente do nº 2 do art. 51º do mesmo decreto-lei. Portanto, ao estipular que se aplica sempre o nº 3 do art. 215º do CPP/87, o nº
3 do citado art. 54º impõe que os prazos de prisão preventiva quando o procedimento for por um dos crimes nele referidos, são os previstos naquele primeiro normativo, aplicando-se ‘ope legis’, isto é, sem necessidade de qualquer despacho judicial que qualifique de ‘excepcional complexidade’ o processo em causa. Deste modo, o alcance daquele nº 3 do art. 54º é, no fundo, considerar como de
'excepcional complexidade' todos os processos relativos aos crimes de tráfico de droga, desvio de precursores, branqueamento de capitais ou de associação criminosa previstos no Dec-Lei nº 15/93. No sentido exposto, já decidiu o Ac. da Relação de Coimbra, de 5-4-95, na ‘Col. Jur.’, ano XX, tomo II, pág. 41, cuja fundamentação se seguiu de perto. Pelo exposto, no processo em apreço, não era necessário, sequer, requerer a elevação do prazo de duração máxima da prisão preventiva para 12 meses, nem tão pouco proferir despacho nesse sentido, pois, por força do nº 3 do art. 54º do Dec-Lei nº 15/93, tal prazo resultava imperativamente da lei.'
5. Os arguidos A... e R... pediram a aclaração deste acórdão. O primeiro, requerendo o conhecimento da questão da inconstitucionalidade do nº 3 do art. 215º do Código de Processo Penal, anteriormente suscitada. O segundo, que também invocou a nulidade do acórdão (por violação do 'princípio da legalidade das medidas de coacção e garantias patrimoniais', consagrado no 'art.
191º' do mesmo Código), insurgindo-se contra a interpretação adoptada no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa quanto ao nº 3 do artigo 54º do Decreto-Lei nº
15/93, considerando-a contrária ao disposto no nº 4 do artigo 28º e no nº 1 do artigo 32º da Constituição.
Os requerimentos foram, porém, indeferidos, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa entendido que, 'não ocorrendo (...) nenhuma das nenhuma das situações previstas nas alíneas do nº 1 do art. 380º do CPP, não há que proceder
à correcção do acórdão.'
6. Os arguidos interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70 da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, sustentando, em sínteses, o seguinte:.
Quanto a R..., 'o Tribunal da Relação, ao dar a interpretação que dá ao disposto no nº 3 do art. 215º do C.P.P., em atenção à remissão que o nº 3 do art. 54º do Dec.- Lei 15/93 faz é inconstitucional por violação do disposto no art. 28º nº 4 da C.R.P.' (requerimento de interposição de recurso, de fls. 149). Nas respectivas alegações, o recorrente considera que a interpretação dada pelo Tribunal da Relação ao preceito impugnado ('no sentido de que o prazo de prisão preventiva ... se aplica a todo e qualquer crime de tráfico de estupefacientes independentemente da sua complexidade') não é a mais correcta, reafirmando a sua inconstitucionalidade. A..., por seu lado, considera que 'o douto acórdão interpretou o nº 3 do artigo
215º no sentido de que não é necessário proferir despacho a elevar o prazo de duração máxima de prisão preventiva para 12 meses, pois tal prazo resulta imperativamente da Lei. Ora, a interpretação deste preceito viola o artigo 32º da C.R.P.' (requerimento de interposição de recurso, de fls. 152). Alegando (a fls. 179), defende que 'a interpretação acolhida pelo douto tribunal
‘a quo’ contenderia com princípios de segurança dos arguidos e de celeridade processual, etc.', tendo em conta que 'o douto tribunal ‘a quo’ interpretou o artigo 215º nº 3 do C.P.P. com o sentido de que o prazo de prisão preventiva aí referidos (sic), se aplica a todos os crimes de tráfico de estupefacientes independentemente da sua complexidade', pelo que se violou assim o artigo 32º da Constituição. Por seu turno, J... entende que 'a interpretar-se o mencionado art. 54º nº 3 como o fez o acórdão recorrido, o mesmo atenta contra os direitos do arguido, consagrados nos artigos 28º nº 4 e 32º nºs 1 e 2, ambos da C.R.P., devendo ser julgado inconstitucional' (requerimento de interposição de recurso, de fls.
146). Nas alegações (a fls. 190), o recorrente conclui do seguinte modo, no que toca à questão de constitucionalidade:
'V. Além disso, a interpretação do mencionado preceito, no sentido que lhe foi dado pelo Tribunal recorrido, constitui uma presunção de que os processos em que o procedimento criminal seja por um dos crimes referidos no seu nº 1 são processos de excepcional complexidade, ainda que, na realidade, se tratem de processos extremamente simples. VI. A consagração legal de tal presunção violaria inequivocamente os princípios da presunção de inocência do arguido e do carácter excepcional e precário da prisão preventiva, contidos nos artºs. 27ª nº 1, 2 e 3 al. a), 28º, nº 4 e 32º nº 2 da C.R.P. VII. Com efeito, não é constitucionalmente admissível uma presunção de que determinados processos se revestem de uma excepcional complexidade, nem é admissível o alargamento dos prazos da prisão preventiva, sem uma justificação de carácter excepcional como a que consta do artº 215º nº 3, uma vez que todos os comandos constitucionais e legais em vigor impõem o carácter excepcional e restrito da prisão preventiva.
(...)' Contra-alegando, o Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal pronunciou-se nos seguintes termos:
'2.2. O artigo 215º, do Código de Processo Penal, preceitua no seu nº 1, alínea a) que a prisão preventiva se extingue quando, desde o seu início, tiverem decorrido mais de 6 meses sem que tenha sido deduzida acusação. Esta regra comporta excepções, interessando-nos aqui a enunciada no nº 3, segundo a qual o prazo é elevado para 12 meses quando o procedimento é por um dos crimes referidos no artigo 209º do Código de Processo Penal e se revela de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime. Não tem sido pacífico, na jurisprudência, o entendimento desta excepção, o que se deverá à circunstância de a lei não dizer expressamente que deva ser proferido algum despacho a estabelecer que o processo seja qualificado como de excepcional complexidade, quando a regra do direito anterior (§ 1º do artigo
309º do Código de Processo Penal de 1929) impunha a prolação de despacho judicial fundamentado para prorrogação do prazo de prisão preventiva; e de existir identidade de redacção nas excepções do nº 2 (cujo funcionamento automático ninguém discute) e do nº 3 do artigo 215º (‘os prazos referidos no número anterior são elevados ... ‘ – nº 2; e ‘os prazos referidos no nº 1 são elevados... – nº 3’). Todavia, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 11 de Abril de 1991
(Colectânea de Jurisprudência, XVI, I, 20) considerou que para a qualificação de um processo como de excepcional complexidade é necessária a prolação de um despacho fundamentado nesse sentido, por forma a definir com precisão os prazos de subsistência da prisão preventiva a que o arguido pode estar sujeito, considerando ainda (vd. respectivo sumário):
– Por não haver prazo para a prolação desse despacho, pode ele surgir a qualquer momento do processo e produzir os efeitos adequados a partir desse momento, nomeadamente na validação da prisão preventiva;
–Desse despacho deve ser dado conhecimento ao arguido, para ele o poder impugnar, querendo. Esta orientação foi seguida de perto pelo acórdão recorrido para afastar a tese defendida pelo Ministério Público no recurso para a Relação. Já considerou, porém, que, na hipótese da remissão que se faz no artigo 54º, nº 3, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, para o artigo 215º, nº 3, do Código de Processo Penal, os prazos de prisão preventiva, quando o procedimento se reporte a um dos crimes referidos no nº 1 (tráfico de droga, desvio de precursores, branqueamento de capitais ou de associação criminosa) são os previstos nesta
última norma, aplicando-se ope legis, ou seja, sem necessidade de qualquer despacho judicial que qualifique de 'excepcional complexidade' o processo em causa – o que equivale a dizer, como se reconhece na própria decisão recorrida, que são considerados como de excepcional complexidade todos os processos relativos aos crimes acima aludidos. Para um dos recorrentes, esta interpretação do Tribunal recorrido constitui uma presunção de que os processos em que o procedimento seja por um destes crimes são processos de excepcional complexidade ainda que, na realidade, se tratem de processos extremamente simples, o que violaria inequivocamente os princípios da presunção de inocência e do carácter excepcional e precário da prisão preventiva, contidos nos artigos 27º, nºs 1, 2 e 3, alínea a), 28º, nº 4 e 32º, nº 2, da Constituição. Porque, como assinala o mesmo recorrente (e de certo modo os restantes) não é constitucionalmente admissível uma presunção de que determinados processos se revestem de uma excepcional complexidade, nem é admissível o alargamento dos prazos da prisão preventiva sem uma justificação de carácter excepcional como a que consta do artigo 215º, nº 3, uma vez que todos os comandos constitucionais e legais em vigor impõem o carácter excepcional e restrito da prisão preventiva (vd. fls. 192/193). Parece-nos claro que assim é. Mas claro também nos parece que ao concluir-se, como se concluiu no acórdão recorrido, que, no processo em apreço, não era necessário requerer a elevação do prazo de duração máxima da prisão preventiva para 12 meses, nem tão pouco proferir despacho nesse sentido, se está a violar frontalmente o disposto no artigo 28º da Constituição, que faz depender de decisão judicial a validação ou confirmação da prisão sem culpa formada e se garante que o detido tenha oportunidade de se defender.
1. Conclusão A interpretação acolhida na decisão recorrida de que o artigo 54º, nº 3, do Decreto-Lei nº 15-93, de 22 de Janeiro, conjugado com o artigo 215º, nº 3, do Código de Processo Penal, para que remete, permite que, no caso de crime de tráfico de droga, se apliquem independentemente de decisão judicial os prazos previstos nesta última norma, viola o disposto nos artigos 28º, nº 1 e 32º, nº
2, ambos da Constituição da República Portuguesa.'
7. Cabe começar por definir com clareza o objecto do presente recurso de constitucionalidade. Na parte que agora interessa, são do seguinte teor os artigos 54º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro e 215º do Código de Processo Penal, respectivamente: Artigo 54º
(Prisão preventiva)
1. Sempre que o crime imputado for de tráfico de droga, desvio de precursores, branqueamento de capitais ou de associação criminosa, é correspondentemente aplicável o disposto no nº 1 do artigo 209º do Código de Processo Penal, devendo ainda o juiz tomar especialmente em conta os recursos económicos do arguido utilizáveis para suportar a quebra da caução e o perigo de continuação da actividade criminosa, em termos nacionais e internacionais.
2. (...)
3. Quando o procedimento se reporte a um dos crimes referidos no nº 1, é aplicável o disposto no nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal. Artigo 215º
(Prazos de duração máxima da prisão preventiva)
1. A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: a. Seis meses sem que tenha sido deduzida acusação; b. (…); c. (…); d. (…).
1. Os prazos referidos no nº 1 são elevados, respectivamente, para oito meses, um ano, dois anos e trinta meses quando se proceder por um dos crimes referidos no artigo 209º.
2. Os prazos referidos no nº 1 são elevados, respectivamente, para doze meses, dezasseis meses, três anos e quatro anos quando o procedimento for por um dos crimes referidos no artigo 209º e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
3. (….). Destina-se o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional a averiguar da compatibilidade com a Lei Fundamental de normas aplicadas pelo tribunal a quo, cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo. No caso presente, a norma que o Tribunal da Relação de Lisboa aplicou – e que fundamentou a revogação do despacho do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa que determinara a restituição à liberdade dos arguidos –, é a que resulta da conjugação do nº 3 do artigo 54º do Decreto-Lei nº 15/93 e do nº 3 do artigo
215º do Código de Processo Penal, e que se pode formular nos seguintes termos: quando o procedimento respeita aos crimes de tráfico de droga, desvio de precursores, branqueamento de capitais ou de associação criminosa, os prazos máximos da prisão preventiva são, ope legis, os referidos no nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal, sem necessidade da qualificação do processo, por despacho judicial, como de excepcional complexidade. Entre esses prazos figura aquele que, em concreto, está em causa, relativo à dedução de acusação. Não obstante as divergências evidenciadas na fundamentação dos recursos interpostos, a verdade é que, quer dos requerimentos de interposição, quer das alegações apresentadas, é esta mesma norma cuja constitucionalidade é questionada pelos recorrentes, sendo certo que a inconstitucionalidade foi suscitada nas respostas à motivação do recurso interposto pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação de Lisboa.
8. Antes de avançar, importa ter presente que a norma aplicada pelo tribunal recorrido, que se extrai das disposições legais atrás transcritas, respeita à determinação dos prazos máximos de prisão preventiva correspondentes a cada fase processual (no caso, do prazo para deduzir acusação). De acordo com a referida norma, no sentido que lhe foi atribuído, repete-se, os prazos máximos consagrados no nº 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal são aplicáveis sempre que o procedimento respeite aos crimes enumerados no nº 1 do artigo 54º do Decreto-Lei nº 15/93, independentemente de decisão judicial nesse sentido. Mas se os prazos máximos da prisão preventiva resultam assim directamente da lei, já naturalmente a manutenção desta medida de coacção depende de decisão judicial, nos temos, designadamente, do disposto no artigo 213º do Código de Processo Penal, que obriga a um reexame oficioso da subsistência dos respectivos pressupostos, de três em três meses. Assim, aliás, o diz, expressamente, o nº 2 do artigo 54º do Decreto-Lei nº 15/93, que impõe ao Ministério Público o dever especial de colher informação actualizada, antes de se pronunciar 'sobre a subsistência dos pressupostos da prisão preventiva de acordo com o artigo 213º do Código de Processo Penal'. Em consequência, não se afigura procedente a defesa, pelo Magistrado do Ministério Público em funções neste Tribunal, da inconstitucionalidade da norma em causa por violação do artigo 28º da Constituição, na parte em 'que faz depender de decisão judicial a validação ou confirmação da prisão sem culpa formada e garante que o detido tenha oportunidade de se defender'. Com efeito, a norma aplicada não tem o alcance de derrogar a necessidade de validação ou confirmação judicial da prisão, com observância do contraditório (cfr. o nº 1 do artigo 28º), e não afasta a obrigação legal de reexaminar periodicamente os respectivos pressupostos.
9. A alegada inconstitucionalidade da norma aplicada pelo Tribunal a quo resultaria também, segundo um dos recorrentes, com o aplauso do Ministério Público, de não ser constitucionalmente admissível uma presunção de que determinados processos se revestem de uma excepcional complexidade. Tal presunção violaria os princípios da presunção de inocência e do carácter excepcional e precário da prisão preventiva.
É necessário sublinhar que a invocada presunção não é senão a explicação dogmática adoptada pelo Tribunal recorrido para o regime que extraiu da lei – e segundo a qual o carácter automático do alargamento do prazo máximo para a prisão preventiva equivale a considerar como de excepcional complexidade todos os processos relativos aos crimes de tráfico de droga, desvio de precursores, branqueamento de capitais ou de associação criminosa, previstos no Decreto-Lei nº 15/93 –, e não é a única possível. A fixação de prazos máximos mais longos decorre provavelmente de outras considerações, ligadas não à natureza dos processos, mas à natureza dos crimes imputados, em que se revela porventura um especial perigo de continuação da actividade criminosa. Parece corroborar esta hipótese o disposto no nº 1 do artigo 54º do Decreto-Lei nº 15/93. Com efeito, este preceito não se limita a declarar aplicável aos crimes que enumera o regime prescrito pelo nº 1 do artigo 209º do Código de Processo Penal, segundo o qual, em determinados crimes (particularmente graves, como decorre, quer da medida da pena referida no nº 1, quer da lista contida no nº 2), o juiz, 'no despacho sobre medidas de coacção', deve 'indicar os motivos que o tiverem levado a não aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva'. O que agora releva é verificar que, para além da aplicação do regime previsto no nº 1 do artigo 209º, o juiz tem de considerar ainda, para justificar a não aplicação da medida de prisão preventiva, 'especialmente (...) os recursos económicos do arguido utilizáveis para suportar a quebra da caução e o perigo de continuação da actividade criminosa, em termos nacionais e internacionais.' É inegável que é a especial gravidade destes crimes que explica estas exigências. Não vem agora ao caso fazer a história do artigo 209º do Código de Processo Penal, aplicável a muitos outros casos para além do que nos ocupa; nem se justifica fazer a sua aproximação (manifesta) com a eliminação dos crimes incaucionáveis (previstos no Decreto-Lei nº 477/82, de 22 de Dezembro, revogado pelo diploma que aprovou o Código de Processo Penal de 1987, o Decreto-Lei nº
78/87, de 17 de Fevereiro), sobre cuja admissibilidade constitucional se debruçaram os acórdãos deste Tribunal nºs 11/88 e 128/88, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11º, págs. 507 e segs. e 929 e segs., respectivamente. O que não é seguramente possível é proceder a um juízo de constitucionalidade da norma partindo de uma – e apenas de uma – das suas hipóteses de fundamentação teórica. Com efeito, embora o objecto do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade seja a norma, com o sentido e alcance com que foi aplicada pela decisão recorrida, não deve confundir-se a norma, ou regime normativo, com a explicação que teoricamente o fundamenta. Assim, não está o Tribunal Constitucional vinculado a aceitar como boa a consideração, puramente teórica, de que o carácter ope legis da aplicabilidade dos prazos mais longos da prisão preventiva resulta da consideração como de excepcional complexidade de todos os processos relativos aos tipos de crimes enumerados.
10. A constitucionalidade da elevação dos prazos máximos de prisão preventiva quando aos agentes sejam imputados determinados crimes ligados à droga deve ser apreciada perante o quadro de garantias de processo criminal aplicáveis àquela medida de coacção.
A Constituição admite, como excepção ao princípio segundo o qual
'ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança' (nº 2 do artigo 27º), a 'detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos', desde que 'pelo tempo e nas condições que a lei determinar' (alínea b) do nº 3 do artigo 27º, correspondente à alínea a) do texto constitucional anterior à Revisão de 1997). O carácter excepcional da prisão preventiva é hoje expressamente consagrado no nº 2 do artigo 28º: 'a prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei'. Na versão anterior à Revisão de 1997, o nº 2 do artigo 28º impunha já que 'a prisão preventiva não se mantém sempre que possa ser substituída por caução ou por qualquer outra medida mais favorável prevista na lei'.
Não resulta da norma aplicada pelo Tribunal recorrido qualquer violação à natureza excepcional da prisão preventiva. E isto não apenas porque a referida norma não responde ao problema de saber se pode ser decretada ou mantida a prisão preventiva, ou em que condições pode aplicada, limitando-se a indicar os prazos máximos a que está sujeita em cada fase processual.
11. Ligado à natureza excepcional da prisão preventiva está o seu carácter subsidiário (nº 2 do artigo 28º da Constituição) e temporalmente limitado (nº 4 do mesmo artigo). Ora o primeiro não está aqui manifestamente em causa, atento o alcance da norma impugnada, que fixa prazos máximos da prisão preventiva. O segundo também não é violado, justamente porque o alargamento dos prazos não equivale, como é obvio, ao seu afastamento, à admissão de prisão preventiva independentemente de limites temporais ou à fixação de limites tão dilatados que, na prática, o frustrassem.
12. Em última análise, constituindo a prisão preventiva em geral uma restrição constitucionalmente admitida do direito à liberdade proclamado no nº 1 do artigo
27º, as normas legais que fixam o respectivo regime devem obedecer ao princípio da proporcionalidade (artigo 18º da Constituição).
É conveniente ter presente que a alteração dos prazos máximos de duração da prisão preventiva operada pela norma impugnada no presente processo, quanto à fase anterior à dedução de acusação, se traduz numa elevação de oito (cfr. o nº
2 do art. 215º do Código de Processo Penal e a alínea d) do nº 2 do art. 209º do mesmo Código) para doze meses. Tendo em conta a natureza dos crimes imputados, os bens jurídicos postos em perigo e o risco de continuação da actividade perigosa, entre outras considerações, afigura-se constitucionalmente legítima, porque respeitadora do princípio da proporcionalidade, a elevação de prazo indicada. Com efeito, não podendo esquecer que se trata aqui de prazos máximos, que não dispensam que o Tribunal reveja periodicamente a manutenção dos pressupostos da prisão preventiva, em estrita obediência ao seu carácter excepcional, há razões ligadas ao tipo de crimes que podem levar à fixação de prazos dilatados. De resto, o aumento de oito para doze meses do prazo máximo nesta fase processual traduz uma elevação significativa mas não exponencial do período de tempo em causa.
13. Do mesmo passo, não há também razões para entender que a norma aplicada pelo tribunal a quo viola o princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição), já que, como se viu, a diferença de tratamento encontra justificação material na natureza dos crimes imputados.
Assim, decide-se negar provimento aos recursos e confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade. Lisboa, 29 de Abril de 1999 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida