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Procº nº 55/98.
2ª Secção. Relator.- BRAVO SERRA.
Nos presentes autos vindos do Supremo Tribunal de Justiça e em que figuram, como recorrente, J... e, como recorrido, o Ministério Público, concordando-se, no essencial, com a exposição lavrada de fls. 3400 a
3407 pelo relator, exposição essa que aqui se dá por intergalmente reproduzida e
à qual deu anuência o recorrido, decide o Tribunal não tomar conhecimento do recurso, condenando o recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em seis unidades de conta.
Lisboa, 29 de Abril de 1998 Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa
1. Por acórdão proferido em 3 de Julho de 1996 pelo tribunal colectivo do Tribunal de comarca da Guarda foi o arguido J... considerado como co-autor material de um crime previsto e punível pelo artº
45º-A do Contencioso Aduaneiro, de um crime continuado previsto e punível pelas disposições combinadas dos artigos 30º, números 1 e 2, do Código Penal, 35º e
36º, nº 5, do Contencioso Aduaneiro, 207º, § único, 691º, § 2º, alíneas a) e b), e 694º, do Regulamento das Alfândegas, e de um crime previsto e punível pelos artigos 22º, nº 1, e 23º, alínea a), conjugados com o artº 12º (este na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 255/90, de 7 de Agosto), todos do Regime Jurídico das Infracções Aduaneiras aprovado pelo Decreto- -Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro, e como autor material de um crime previsto e punível pelo artº 290º do Código Penal, vindo a ser condenado na pena única de três anos de prisão, na
'multa solidária' de Esc. 2.137.940.500$00 e em cento e oitenta dias de multa à taxa de Esc. 10.000$00.
Desse acórdão recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo, na motivação do recurso, dito, inter alia:-
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Se atentarmos por outro lado e admitindo por simples hipótese, que na Iveco seguia mercadoria contrabandeada, (e que o A. do facto foi o recorrente) nem assim seria possível sem conhecer a quantidade e o valor da mercadoria transportada condenar o recorrente pela prática daquele crime.
É que o valor e o tipo de mercadoria são indespensáveis à qualificação do crime de contrabando previsto no artigo 21 e 23.
Se a mercadoria não fosse tabaco ou se o seu valor for diminuto, a pena aplicável ao A. pode ser apenas de multa (veja-se o artigo 24 do D.L.
376-A/ /89 de 25/10).
Ora presumir o valor, e presumir o tipo de mercadorias, e com base em tais presunções condenar o recorrente numa pena grave de prisão é claramente inconstitucional.
Não pode haver condenações na base de uma presunção.
Suscita-se pois o incidente de inconstitucio- nalidade da norma do artigo 43, incidente que deve ser apreciado tão somente na hipótese de vir a ser confirmado a condenação do recorrente pela prática dos factos ocorridos em Setúbal.
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................................................... EM CONCLUSÃO
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4 - Não é possível condenar uma pessoa pelo crime de contrabando qualificado (21 e 23 do R.J.I. F.A.), com base numa presunção de valor das mercadorias, feita a partir do desconhecimento de quantidades não apuradas.
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12 - Foram violados por erro de interpretação os artigos 379, al. b) do C.P.P., 1, 23 e 43 do D.L. 376-A/89 de 25/10;
13 - São inconstitucionais, na interpretação do Tribunal recorrido, as normas citadas, invocadas para a condenação pelos factos ocorridos em Setúbal.
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Nas alegações escritas no Supremo Tribunal de Justiça, o arguido ainda disse que:-
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Porque o douto julgador presumiu (e afirma-o expressamente) o valor da mercadoria, apesar de desconhecer se era tabaco, e quais as quantidades;
O valor das mercadorias contrabandeadas é essencial para a qualificação do crime de contrabando.
Só haverá crime de contrabando qualificado, se o valor da mercadoria for superior a Esc. 1.000.000$00 (al. c) do artigo 23º);
Presumir o valor e condenar, é no fundo condenar na base de uma presunção; O que é inconstitucional, incidente suscitado na motivação do recurso.
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2. Por acórdão de 6 de Novembro de 1997, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido J..., revogando a decisão impugnada na parte em que procedeu à convolação 'do crime do artº 384º, nº 1 do CP/82 para o crime do artº 290º, nº 1 CP/85 e por este condenou o recorrente', razão pela qual, condenando-o, pela prática daquele primeiro ilícito na pena de 10 meses de prisão e 40 dias de multa à taxa de Esc. 1.500$00, lhe impôs a pena única de dois anos e dez meses de prisão, Esc. 2.137.940.500$00 de multa, cento e oitenta dias de multa à taxa de Esc. 10.000$00 e 40 dias de multa à taxa de Esc. 1.500$00.
Nesse aresto foi dito, a dado passo:-
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13. Com base nos factos provados nºs. 55 a 56 foi o recorrente considerado co-autor de um crime p. e p. pelos artºs 22º, nº 1, 23º, a) e 12º do DL nº 376-A/89, este último na redacção do DL nº 255/ /90, de 7/9, o que não suscita reparo.
Em primeiro lugar, o recorrente tomou parte directa (artº 26º CP) na execução da conduta consistente em deter a circular no interior do território nacional mercadorias (tabaco de origem americana) sem o processamento das competentes guias ou documentos legalmente exigíveis; logo, constituiu-se co-autor do crime tipificado no artº 22º, nº 1 do referido DL nº 376-A/89.
Em segundo lugar, e tratando-se de tabaco (como se provou), o crime é qualificado, nos termos da alínea a) do artº 23º do mesmo diploma, independentemente do valor do tabaco transportado, pois esse valor só é relevante nos termos das alíneas b) e c) do mesmo artº 23º ou do artº 24º seguinte (contrabando privilegiado), que apenas se refere aos crimes dos artºs
21º e 22º e não ao do artº 23º. Assim, o contrabando de tabaco não é desqualificado em função do valor.
Em terceiro lugar, não se trata aqui de integrar o crime do artº 23º, a) daquele D.L. com base em presunção do valor das mercadorias, pois, como se viu, esse valor é irrelevante para a subsunção jurídico-criminal, apenas podendo ser eventualmente relevante quando se considerar o grau de ilicitude (artº 71º, nº 2, a) CP/95).
Em quarto lugar, não presumiu o tribunal, nem tinha de presumir, qualquer valor das mercadorias; o que se passa é coisa diferente: quando «as mercadorias não tiverem sido apreendidas» e não seja possível declará-las perdidas a favor do Estado e determinar o seu valor de mercado, o agente pagará ao Estado uma importância a fixar pelo tribunal entre 3.000$00 e 3.000.000$00
(artº 43º, nº 4 do DL nº 376-A/89).
Trata-se de uma compensação, a fixar em justo critério do tribunal, dentro dos largos limites referidos, e não de uma presunção do valor da mercadoria.
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3. Do aresto de onde foi extraída a antecedente transcrição recorreu o arguido J... para o Tribunal Constitucional, fazendo-o por intermédio de requerimento onde disse que:
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................................................... o S.T.J. aplicou normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela recorrente
(artigo 70, nº 1 al. b) e d) da Lei do Tribunal Constitucional) no requerimento de interposição do recurso, e na alegação escrita:
Artigos 21, 23 e 43, nº 4 do D.L. 37/A/89 de 25 de Novembro;
Foi violado o principio constitucional da presunção de inocência
(artigos 32, nº 1 e nº 2 da actual Constituição).
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Esse recurso veio a ser admitido por despacho proferido em 9 de Dezembro de 1997 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça.
4. Não obstante essa admissão, porque um tal despacho
(cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) não vincula este Tribunal e porque entende o ora relator que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma lei, a vertente exposição, na qual se propugna por se não dever tomar conhecimento da presente impugnação.
Efectivamente, como resulta da matéria que acima se veio de expôr, o recorrente, antes da decisão intentada pôr sob censura deste Tribunal, suscitou, de modo expresso, a questão da inconstitucionalidade da norma ínsita no artº 43º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras aprovado pelo Decreto- -Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro, e - aceita-se - de modo menos claro e perceptível, idêntica questão tocantemente às normas constantes dos artigos 21º e 23º do mesmo Regime.
Todavia, o vício de inconstitucionalidade assacado a esses normativos decorria, na óptica do recorrente, de uma sua dimensão interpretativa que, no seu entender, teria sido perfilhada pelo tribunal de 1ª instância.
Como parece nítido, o raciocínio do recorrente, neste particular, foi o de, ao se interpretarem aqueles normativos no sentido de, não se sabendo a quantidade e respectivo valor das mercadorias alegadamente contrabandeadas, ser permitido presumir- -se aquele valor num montante tal que levaria a subsumir a conduta do agente à prática de crime de contrabando qualificado, isso seria contrário ao «princípio constitucional da presunção da inocência».
Sendo a questão posta nestes termos, e situando-nos, como nos situamos, perante um recurso estribado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82 [não tem qualquer cabimento o apelo, efectuado pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso, à alínea d) dos mesmo número e artigo], mister seria, para que se pudesse admitir um tal tipo de recurso, por entre o mais, que a decisão pretendida impugnar tivesse aplicado as normas sobre que incidiu a suscitação de inconstitucionalidade, na interpretação ou, se se quiser, com o sentido que o recorrente entende por violador da Lei Fundamental.
Ora, in casu, como facilmente se extrai da transcrição feita do aresto prolatado no Supremo Tribunal de Justiça, no mesmo não foram, minimamente, aplicadas as normas constantes dos artigos 21º, nº 1, 23º, alínea a), e 43º, nº 4, todos do R.J.I.F.A. com o sentido interpretativo a que acima se fez referência e que foi aquele cuja inconstitucionalidade foi questionada pelo recorrente.
Antes, e pelo contrário, o que resulta do acórdão desejado pôr em crise foi que, tratando-se de tabaco, não releva a quantidade e valor para tornar qualificado o crime de contrabando e, no tocante à importância fixada pela decisão tomada na 1ª instância como devendo reverter a favor do Estado, nos termos do nº 3 do citado artº 43º, não teve ela por base qualquer presunção de valor, mas sim que se tratava de uma «compensação» a fixar equitativamente pelo tribunal.
Daí que, de todo em todo, não se possa dizer que o acórdão de 6 de Novembro de 1997 tivesse aplicado normas com uma dimensão interpretativa que foi questionada pelo recorrente do ponto de vista da sua compatibilidade constitucional.
O que significa que, no caso, se não pode considerar como presente um dos requisitos do recurso a que alude a já mencionada alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82.
Cumpra-se a parte final do nº 1 do falado artº 78º-A do mesmo diploma. Lisboa, 27 de Fevereiro de 1998.