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Processo n.º 1261/13
2ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., recorrente nos presentes autos em que é recorrido o Ministério Público, tendo sido notificado do despacho proferido pelo 3.º Juízo Criminal do Porto que indeferiu requerimento em que pedia a declaração de prescrição do procedimento criminal e, subsidiariamente, da pena (fls. 682 e seguintes), recorreu do mesmo para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando a inconstitucionalidade da concreta interpretação do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.
Por acórdão de 3 de julho de 2013, aquele Tribunal da Relação negou provimento ao recurso. Na sequência desse aresto, e de incidente pós-decisório, o recorrente interpôs recurso de constitucionalidade, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – “LTC”).
2. Após resposta a convite formulado pelo ora relator no sentido de vir completar o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, foi proferida decisão sumária de não conhecimento - a Decisão Sumária n.º 21/2014 – com base nos seguintes fundamentos:
« 3. Considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão (cfr., entre muitos, os Acórdãos n.ºs 463/94, 366/96, 687/2004 e 447/2012).
No caso dos autos, contudo, a decisão recorrida não aplicou os blocos normativos identificados pelo recorrente no sentido que o mesmo reputa de inconstitucional. Vejamos:
4. Quanto à primeira questão de inconstitucionalidade
4.1. Trata-se de questão respeitante à «interpretação que se extraia do disposto no artigo 97º, nº 5 do Código de Processo Penal, no sentido de que satisfaz o dever de fundamentação dos despachos decisórios, um despacho no qual o Tribunal dá como assente o trânsito em julgado de uma decisão condenatória, olvidando que o arguido deu entrada de um requerimento a requerer fosse conhecida e declarada a prescrição do procedimento criminal e da pena, e sem fundamentar por [que] razão não se atendeu a esse requerimento do arguido como fator impeditivo do trânsito em julgado da decisão condenatória», por alegada violação do direito ao recurso e do dever de fundamentação das decisões judiciais, nos termos dos artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, da Constituição.
Compulsados os autos, verifica-se – com meridiana evidência, aliás – que o Tribunal da Relação não procedeu à aplicação do critério normativo assim especificado, uma vez que fundamentou detalhadamente a razão da irrelevância do requerimento face ao trânsito em julgado da decisão condenatória. Com efeito, embora, num primeiro momento, o tribunal a quo tenha começado por certificar o acerto da decisão recorrida – à qual, efetivamente, poderia ser lícito imputar a aplicação da “norma” explicitada pelo recorrente na sua primeira questão de inconstitucionalidade –, tal instância não deixou de se debruçar sobre a questão do trânsito em julgado do Acórdão n.º 138/2012 deste Tribunal Constitucional, especificando, com algum detalhe, os motivos pelos quais, in casu, o requerimento a que se refere o recorrente não teve a virtualidade de afetar o trânsito em julgado da decisão condenatória. Atente-se no seguinte trecho (fls. 833 e 834):
«2.4. O trânsito em julgado da decisão recorrida.
Pretende o recorrido que a decisão recorrida ainda não transitou em julgado, porque ainda está pendente um incidente que impediu e impede o trânsito.
Comece-se por referir que tem razão o MP, quando clama, na sua resposta a este recurso, que a dar-se razão ao recorrente estaria encontrada a fórmula para impedir o trânsito de qualquer decisão. Porque, uma vez que a prescrição do procedimento criminal é uma exceção de conhecimento oficioso, a todo o tempo, nada parece impedir quem quiser invocá-lo de o fazer, quando lhe aprouver, mesmo a despropósito.
É um pouco isso o que defende o recorrente com a invocação, a seu favor do disposto no art.º 720.º que pode traduzir-se na legitimação do abuso como método processual de intervenção.
O recorrente começa por pôr em causa que o acórdão do tribunal constitucional tenha transitado em julgado em 26 de Março de 2012.
No entanto, não reagiu contra a certidão de fls. 688 dos autos, que tal atesta.
Como também não reagiu contra o despacho de 28 de Março de 20012, do Ex.mo Juiz Conselheiro relator no Tribunal Constitucional (cfr. fls. 687) que passamos a reproduzir:
Requerimento de fls. 682:
O requerimento apresentado pelo requerente não tem qualquer incidência na decisão de não conhecimento do recurso de constitucionalidade. Assim sendo, uma vez transitado em julgado o Acórdão n.º 138/2012 e contado o processo, oportunamente serão os autos remetidos ao tribunal recorrido.
Ora, o requerimento a que se refere o despacho acabado de transcrever, é justamente o que veio a ser indeferido, em primeira instância, pelo despacho ora recorrido.
Aliás não suscita qualquer dúvida, não só que o requerimento para conhecimento da prescrição do procedimento criminal – e da pena – não tem qualquer incidência na decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, como também que o mesmo requerimento, pelo seu objeto, se situa fora do âmbito de competência do mesmo tribunal (cfr. art.º 71.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC)).
Diz, agora, o recorrente que o acórdão do Tribunal Constitucional não transitou em julgado na data certificada, porque ele, requerente, dispunha ainda de prazo para reclamar.
Mas não é certo que assim fosse. O acórdão foi proferido em 13 de Março de 2012 e notificado ao ora recorrente nesse mesmo dia, por correio registado. Assim, a notificação presume-se feita em 16 seguinte. Decorrido o prazo para reclamação e arguição de nulidades, que é de 10 (dez) dias, nos termos dos art.os 667.º, 668.º, n.º 4, 669.º e 153.º, todos do CPC, ex vi do disposto no art.º 69.º da LTC, o acórdão transitou em julgado, o que ocorreu, tal como se certificou a fls. 688, em 26 de Março de 2012.
E com o trânsito em julgado do acórdão do tribunal constitucional transitou, também a decisão recorrida, por estarem esgotados os recursos ordinários, conforme dispõe o art.º 80.º, n.º 4, da LTC.»
4.2. Não pode, por conseguinte, afirmar-se que a decisão recorrida não fundamentou «por [que] razão não se atendeu a esse requerimento do arguido como fator impeditivo do trânsito em julgado da decisão condenatória». A fundamentação de um tal entendimento é expressa e abundante, sendo portanto evidente a dissonância, quanto a esta primeira questão, entre o objeto da mesma e aquela que foi a ratio decidendi da pronúncia recorrida.
5. Quanto à segunda questão de inconstitucionalidade
5.1. Reporta-se a mesma à «interpretação que se extraia do disposto nos artigos 669º, 670º, 677º e 720º do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, no sentido de que não obsta ao trânsito em julgado da sentença condenatória o requerimento do arguido interposto no prazo de dez dias após a prolação de acórdão do Tribunal Constitucional», por eventual violação dos artigos 32.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º, n.º 2, da Constituição.
O objeto do recurso assim enunciado tem o efeito de silenciar, em absoluto, aquela que foi a ratio decidendi, no que toca a esta questão, da decisão recorrida. Com efeito, a decisão entende que o referido requerimento não teve a virtualidade de impedir o trânsito da decisão em causa, uma vez que o mesmo nada tinha que ver com o objeto da decisão que julgou crime. E referiu igualmente que «não (…) basta, após a prolação de certa decisão, apresentar um qualquer requerimento ou deduzir um qualquer incidente para que, por mero efeito desse ato e da tramitação que lhe suceda, a decisão proferida deixe de transitar em julgado» (fl. 834). E acrescentou logo de seguida que «[i]sso seria escancarar as portas à chicana processual».
5.2. Estava assim em causa não um qualquer requerimento mas sim uma peça processual à qual, pela sua específica natureza e relação com a decisão em causa, o tribunal a quo atribuiu irrelevância para efeitos de impedir o trânsito em julgado da anterior decisão do Tribunal Constitucional. Esta específica valoração e ponderação é totalmente omitida pelo recorrente na identificação da presente questão de constitucionalidade. Ao aludir, muito simplesmente, à dedução de um requerimento dentro de determinado prazo na sequência da prolação da decisão, silenciando, olimpicamente, a valoração que do mesmo fez o tribunal a quo, o recorrente desconsiderou por completo o sentido que esta instância atribuiu ao bloco normativo cotejado e que esteve subjacente, nesta parte, à decisão ora impugnada.
Assim, por se verificar, também quanto a esta questão, ausência de identidade entre o objeto do recurso e a fundamentação da decisão recorrida, resta concluir pela impossibilidade de conhecimento do mesmo.»
3. É desta decisão que o recorrente vem agora reclamar nos termos seguintes:
«Concretamente, e quanto à primeira questão de constitucionalidade suscitada pelo Reclamante, entende a decisão reclamada que “Com efeito, embora num primeiro momento o Tribunal a quo tenha começado por certificar o acerto da decisão recorrida – à qual efetivamente, poderia ser licito imputar a aplicação da norma explicitada pelo recorrente na sua primeira questão de inconstitucionalidade, - tal instância não deixou de se debruçar sobre a questão do trânsito em julgado do acórdão, especificando, com algum detalhe, os motivos pelos quais, in casu, o requerimento a que se refere o recorrente não teve a virtualidade de afetar o trânsito em julgado da decisão condenatória. Atente-se no seguinte frecho:”
Deste breve trecho vindo de transcrever, resultam então duas diferentes vertentes que, devidamente, escalpelizadas, demostrarão a procedência da presente reclamação,
Em primeiro lugar, começa a decisão reclamada por expressamente atribuir razão ao aqui Reclamante quando imputou ao despacho proferido em Primeira Instância “aplicação da norma explicitada pelo recorrente na sua primeira questão de inconstitucionalidade”
Ora, estando essa decisão proferida em Primeira Instância ferida de uma inconstitucionalidade que este próprio Tribunal reconhece, (pelo menos eventualmente), não fica a mesma sanada por Tribunal a quid se debruçar sobre a mesma, e ao invés de a declarar, proceder à aplicação de paliativos processuais, como que fundamentando o que quem de direito o devia ter feito mas não fez.
A decisão que sem qualquer fundamentação decretou o trânsito em julgado da sentença condenatório do arguido nestes autos, foi a decisão proferida em 1ª instância.
Atenta a falta de fundamentação dessa decisão, o reclamante desde logo interpôs recurso da mesma, suscitando a primeira das questões de inconstitucionalidade que aqui se pretende ver conhecida.
Numa segunda vertente, toda a suposta fundamentação que o acórdão proferido pelo Tribunal a quo expendeu na defesa da solução que propugnou, e no qual este Tribunal também se ancorou no âmbito da decisão reclamada, assenta num pressuposto que essa mesma Relação veio a assumir como errado.
É que, esse Tribunal da Relação afirma que, quando o ora reclamante deu entrada do requerimento no qual suscitou a questão da prescrição do procedimento criminal e da pena, já havia decorrido o prazo para reclamar dessoutra decisão deste mesmo Tribunal.
NA verdade, diz-se nesse acórdão do Tribunal da Relação a fls. 833 e 834 que: “Diz agora o recorrente que o acórdão do Tribunal Constitucional não transitou em julgado, na data certificada, porque ele, requerente, dispunha ainda de prazo para reclamar.
Mas não é certo que assim fosse. O acórdão foi proferido em 13 de Março de 2012 e notificado ao ora recorrente nesse mesmo dia, por correio registado. Assim, a notificação presume-se feita em 16 seguinte. Decorrido o prazo para reclamação e arguição de nulidades, que é de 10 (dez dias), nos termos dos art.º 667º, 668º º 4, 669º e 153º todos do CPC, ex vi do disposto no art.º 69º da LTC, o acórdão transitou em julgado, o que ocorreu, tal como se certificou a fls. 688, em 26 de Março de 2012.
E com o trânsito em julgado do acórdão do Tribunal constitucional transitou também a decisão recorrida, por estarem esgotados os recurso ordinários, conforme dispõe o art.º 80º n.º 4 da LTC.
Alega, ainda, o recorrente que a interposição, em 2012/03/27 do requerimento de fls. 686 em que requereu fosse declarada a prescrição do procedimento criminal e da pena teve a virtualidade de obstar à verificação do trânsito em julgado da decisão condenatória.” - sublinhado e negrito nossos.
Repare-se que, ao invés de estará a fundamentar a decisão proferida em Primeira Instância, entendimento que este Tribunal perfilhou quando transcreveu esse longo trecho e concluiu pelo não conhecimento do recurso interposto,
Tal parte dessa fundamentação do acórdão proferido pelo Tribunal a quo estava na realidade, a demonstrar que, quando deu entrada do requerimento no qual suscitou a questão da prescrição e da pena, já havia decorrido esse prazo de dez dias para reclamar dessoutra decisão deste mesmo Tribunal.
É por isso que aí expressamente se diz que “(...) o acórdão transitou em julgado, o que ocorreu, tal como se certificou a fls. 688, em 26 de Março de 2012(...)
Alega, ainda, o recorrente que a interposição, em 2012/03/27 (...)” - sublinhado e negrito nossos.
E aqui resulta que, no entendimento do Tribunal a quo, o prazo que o reclamante dispunha para reclamar dessoutra decisão deste mesmo Tribunal terminava a 26 de Março de 2012, mas apenas no dia 27 desse mesmo mês deu entrada do seu requerimento.
E foi na defesa desse entendimento que proferiu o longo trecho transcrito pela decisão reclamada, razão pela qual, inversamente ao agora decidido sumariamente, tal tribunal não sanou o vício de que padece a decisão proferida em Primeira Instância.
Mas, resta também realçar que, nesta parte, o Tribunal a quo incorreu em erro que posteriormente reconheceu e corrigiu em acórdão proferido na sequência de requerimento de aclaração deduzido pelo aqui reclamante.
Na verdade, esse requerimento do arguido, ora reclamante, no qual suscitou a questão da prescrição da procedimento criminal e da pena deu entrada, por via postal registada em 26 de Março de 2012, ou seja, no último dia suscetível para reclamação dessoutra decisão deste Tribunal.
Na procedência da aclaração deduzida pelo arguido a fls. .., foi proferido o acórdão de 9 de Setembro de 2013 a folhas 846 e sgs.,, que ordenou a retificação de fls. 833 de modo a que “onde se escreveu “alega ainda o recorrente que a interposição, em 2012/03/27 do requerimento de fls. 686(…)” passará a constar alega ainda o recorrente que a interposição, em 2012/03/26 do requerimento defls. 686(...)” – sublinhado e negrito nossos.
Assim, e como se veio de demonstrar, nunca ao arguido, ora reclamante foi devidamente fundamentada a decisão que declarou o trânsito em julgado da sentença condenatória, antes o Tribunal a quo enveredou, ainda que em erro que posteriormente corrigiu, numa terceira via de defesa da decisão proferida em Primeira Instância, isto porque afirmou que o requerimento do arguido deu entrada, um dia depois, de ter decorrido o prazo para apresentar reclamação dessoutra decisão deste meso Tribunal,
Razão pela qual deve se admitido o presente recurso de constitucionalidade.
Quanto à segunda questão de constitucionalidade levantada pelo Reclamante, assume-se, ainda de maior relevo a discordância com a decisão reclamada, quando esta concluiu, por uma “ausência de identidade entre o objeto do recurso e a fundamentação da decisão recorrida
Atente-se que, aí, se pretende aferir da interpretação que se extraia do disposto nos artigos 669º, 670º, 677º e 720º do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, no sentido de que não obsta ao trânsito em julgado da sentença condenatória o requerimento do arguido interposto no prazo de dez dias após a prolação de acórdão do Tribunal Constitucional que decidiu no conhecer do objeto do recurso do arguido, uma vez que a mesma se tem por inconstitucional por violação dos artigos 32º n.º1 e 2 e 202º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
A decisão reclamada volta a centrar-se na fundamentação do acórdão proferido para indeferir o recurso do Reclamante no que a esta parte diz respeito, chegando mesmo a afirmar,” Esta específica valoração e ponderação é totalmente omitida pelo recorrente na identificação da presente questão de constitucionalidade. Ao aludir, muito simplesmente, à dedução de um requerimento dentro de determinado prazo na sequência de prolação da decisão, silenciado, olimpicamente a valoração que do mesmo fez o Tribunal a quo, o recorrente desconsiderou por completo o sentido que esta instância atribui ao bloco normativo cotejado e que esteve subjacente, nesta parte, à decisão ora impugnada.
Ora, o recurso de constitucionalidade, destina-se, por sua natureza, precisamente a este fim, ou seja, sindicar interpretação que um determinado Tribunal quo fez de determinado cotejo legislativo.
Por muito meritória que seja a fundamentação do Tribunal a quo, certo é que dessa fundamentação resultou uma interpretação normativa com a qual o reclamante não se conforma, por entender violada a Lei Fundamental.
Atente-se, que, nesta sede, a questão é simples: Existe, ou não, trânsito em julgado de uma decisão condenatória, se no decorrer do prazo para reclamar de uma decisão de um Tribunal superior, (in casu deste próprio Tribunal), a parte processual afetada, da mesma não reclamou, mas deu entrada de um requerimento no qual suscitou a questão da prescrição do procedimento criminal e da pena?
O Tribunal a quo entendeu e decidiu que tal requerimento não obsta ao trânsito em julgado da decisão, fundamentando a sua decisão.
Mas independentemente da fundamentação de tal decisão, entende o Reclamante que tal requerimento obsta ao trânsito em julgado da decisão, sob pena de violação dos preceitos constitucionais supra indicados.
Não se pode esquecer que, como se defende nos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 248/90 e 17/97 (sublinhados, respetivamente, no D.R. 2ª série, de 23/01/1991 e de 30/04/1997), “No domínio dos processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, ao contrário do que acontece em sede de fiscalização abstrata, não é possível dissociar-se a norma ou normas postas em causa, da própria relação jurídica substancial a que foi ou foram aplicadas, nem tão pouco das circunstâncias objetivas em que essa aplicação ocorreu. E isto é assim porque será a partir da norma concretamente aplicada que se há-de formar o juízo deste Tribunal sobre a eventual invalidade constitucional da referida norma.”
In casu, não se pode, sequer, afirmar que não foram aplicados concretamente os blocos normativos em causa, isto porque, o que muito se afirma nestes autos, é que a sobredita decisão transitou em julgado não havendo, assim, qualquer dúvida da aplicação, nestes autos, do instituto do trânsito em julgado.
Resta agora a este Tribunal sindicar, como pretende o Reclamante, da conformidade constitucional da aplicação do instituto do trânsito em julgado na pendência processual de um requerimento interposto pela parte afetada.»
4. O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
5. Na presente reclamação, o reclamante insurge-se contra o não conhecimento das duas questões de constitucionalidade que integrou no objeto do recurso. No entanto, não logra refutar os fundamentos que conduziram, em ambos os casos, ao não conhecimento.
6. A primeira questão de inconstitucionalidade respeita à «interpretação que se extraia do disposto no artigo 97º, nº 5 do Código de Processo Penal, no sentido de que satisfaz o dever de fundamentação dos despachos decisórios, um despacho no qual o Tribunal dá como assente o trânsito em julgado de uma decisão condenatória, olvidando que o arguido deu entrada de um requerimento a requerer fosse conhecida e declarada a prescrição do procedimento criminal e da pena, e sem fundamentar por [que] razão não se atendeu a esse requerimento do arguido como fator impeditivo do trânsito em julgado da decisão condenatória», que, segundo o recorrente, viola o direito ao recurso e ao dever de fundamentação das decisões judiciais (artigos 32.º, n.º 1, e 205.º, n.º 1, ambos da Constituição).
Entendeu-se não conhecer do objeto do recurso pelo facto de tal critério – assim enunciado – não ter sido aplicado pelo tribunal recorrido. Com efeito, o teor normativo que o recorrente enuncia corresponde, literalmente, à inconstitucionalidade que havia suscitado previamente, na sequência da sentença da primeira instância, no recurso interposto da mesma perante a Relação. Ora, e como se explicou na decisão ora reclamada, o modo como o Tribunal da Relação apreciou e decidiu esta questão não permite que lhe seja imputada uma interpretação daquele (ou de outro) preceito no sentido de que não é necessário fundamentar por que razão é que o requerimento do arguido não foi valorado como sendo impeditivo do trânsito em julgado da decisão condenatória. Pelo contrário, o Tribunal da Relação – como resulta das transcrições patentes na decisão reclamada – fundamentou expressa e abundantemente uma tal valoração. O que significa que a questão colocada pelo recorrente não diz respeito a «norma aplicada pela decisão recorrida». Quando muito, tal questão poderia dizer respeito à «norma» aplicada pela primeira instância. No entanto, o objeto imediato deste recurso de constitucionalidade é a decisão proferida pela Relação, e não uma pronúncia anterior, não definitiva, quanto à questão controvertida. Assim, qualquer «inconstitucionalidade» que pudesse ter afetado a decisão da primeira instância seria, nesta sede, irrelevante, uma vez que tal decisão não corresponde ao objeto imediato do recurso de constitucionalidade, tendo sido, para estes efeitos, substituída pela posterior apreciação levada a cabo pelo Tribunal da Relação do Porto.
Invoca ainda o reclamante que «nunca ao arguido, ora reclamante foi devidamente fundamentada a decisão que declarou o trânsito em julgado da sentença condenatória, antes o Tribunal a quo enveredou, ainda que em erro que posteriormente corrigiu, numa terceira via de defesa da decisão proferida em Primeira Instância, isto porque afirmou que o requerimento do arguido deu entrada, um dia depois, de ter decorrido o prazo para apresentar reclamação dessoutra decisão deste mesmo Tribunal» (fl. 879). Ora, do que se trata aqui é de sindicar a concreta fundamentação da decisão que declarou o trânsito, bem como de questionar eventuais erros de julgamento. Esta matéria em nada se conexiona com o objeto do recurso de constitucionalidade e, designadamente, não se reporta ao fundamento do não conhecimento do objeto do recurso, o qual não só não é atacado na presente reclamação, como não é pela mesma afastado (não coincidência entre a interpretação efetivamente aplicada pela decisão recorrida e aquela cuja inconstitucionalidade é sindicada).
7. A segunda questão de constitucionalidade reporta-se à «interpretação que se extraia do disposto nos artigos 669º, 670º, 677º e 720º do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional, no sentido de que não obsta ao trânsito em julgado da sentença condenatória o requerimento do arguido interposto no prazo de dez dias após a prolação de acórdão do Tribunal Constitucional», por alegada violação dos artigos 32.º, n.ºs 1 e 2, e 202.º, n.º 2, da Constituição. O não conhecimento, quanto a esta questão, assentou igualmente na ausência de identidade entre o objeto (mediato ou em sentido material) do recurso de constitucionalidade e a ratio decidendi da decisão recorrida.
O reclamante sustenta que, independentemente da concreta fundamentação da decisão de considerar transitada em julgada a decisão condenatória, não se poderia deixar de considerar que foi aplicado critério normativo traduzido no parâmetro que havia identificado e que se traduz na interpretação dos preceitos legais cotejados no sentido de que «não obsta ao trânsito em julgado da sentença condenatória o requerimento do arguido interposto no prazo de dez dias após a prolação de acórdão do Tribunal Constitucional». Invoca ainda que a fiscalização normativa – própria do recurso concreto de constitucionalidade – impõe a construção do objeto do recurso em termos autónomos, isto é, diferenciados das circunstâncias concretas da situação fáctica em apreço.
Com efeito, correspondendo o objeto (mediato ou em sentido material) do recurso de constitucionalidade a uma questão normativa, a mesma deve ser enunciada em termos destacados da factualidade concreta do caso. O que significa que, sempre que se questione a constitucionalidade de um preceito (ou conjunto de preceitos) num certo sentido, deve tal sentido ser enunciado em termos normativos, de forma a que o Tribunal Constitucional, em caso de procedência do recurso, possa identificar um tal parâmetro enquanto norma de conduta ferida de desconformidade com a Constituição. Nisto tem razão o reclamante.
Mas já não tem razão quando sustenta que o critério que enunciou – e que corresponde, para estes efeitos, a uma norma – foi efetivamente aplicado na decisão recorrida. Com efeito, o fundamento determinante do acórdão do Tribunal da Relação do Porto – no que a esta questão se refere – residiu precisamente na negação de qualquer efeito impeditivo do trânsito de uma sentença condenatória a um requerimento que não apresenta qualquer relação com o objeto dessa mesma decisão. É esta a sua ratio decidendi e a mesma não se confunde com qualquer especificidade da situação controvertida, contrariamente ao pretendido pelo reclamante.
Subsiste, por conseguinte, uma insuficiência de conteúdo no critério normativo contestado pelo reclamante, a qual, desvirtuando a ratio decidendi da pronúncia recorrida, demonstra a inexistência de identidade – por defeito – entre o objeto mediato do recurso de constitucionalidade e a interpretação normativa concretamente aplicada pelo tribunal a quo.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (cfr. o artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de março de 2014. – Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.