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Proc. nº 5/99
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - J..., identificado nos autos, foi condenado, por acórdão de 19 de Dezembro de 1997, da 2ª Vara Criminal de Lisboa, pela autoria de:
a) quatro crimes de prevaricação previstos e punidos pelos artigos 369º, nº 4, do Código Penal, com referência ao nº 3 do mesmo preceito, na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um;
b) um crime de homicídio previsto e punido pelo artigo
131º do Código Penal, na pena de 12 (doze) anos de prisão;
c) um crime de ocultação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão;
d) um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254º, nº 1, alínea b), do mesmo Código, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
Efectuado o cúmulo jurídico das penas aplicadas, foi o arguido condenado na pena única de 17 (dezassete) anos de prisão.
Recorreu este do assim decidido para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que, no entanto, por acórdão de 12 de Novembro de 1998, negou provimento ao recurso, não só do acórdão final da 2ª Vara Criminal como de dois recursos interpostos por si de decisões interlocutórias.
2. - Com efeito, na audiência ocorrida em 26 de Setembro de
1997 (cfr. acta de fls. 1456 e segs.), concluído o interrogatório de todos os arguidos, foi, pelo mandatário do ora recorrente, requerida a prestação de esclarecimentos pelo co-arguido P..., diligência essa indeferida por se entender tratar-se de pontual matéria de facto, já, directa ou indirectamente, versada no interrogatório havido, considerando-se, 'pelo menos por ora', que se trata de repetir essas questões, pretendendo-se retomar o interrogatório, quando o recorrente teve plena oportunidade de formular questões ao arguido P... incidindo em todos os aspectos pertinentes à respectiva defesa.
Arguida a nulidade do despacho de indeferimento por nele se ter interpretado o nº 1 do artigo 340º do Código de Processo Penal (CPP), em violação do disposto no nº 1 do artigo 32º da Constituição da República (CR), sustentou-se, na respectiva motivação, admitido o recurso, por despacho de 7 de Outubro de 1997 (a fls. 1535), terem sido violados os artigos 125º, 340º, nº 1,
343º, nº 1, e 120º, nº 2, do CPP e 18º, nºs. 1 e 2, e 32º, nº 1, da CR, devendo o despacho em causa 'ser considerado nulo, na interpretação que lhe foi dada, por não atender à admissibilidade e à necessidade da prova invocada'.
Por sua vez, requerida pelo recorrente a junção aos autos de um 'parecer balístico' (fls. 1639), ao abrigo do nº 1 do citado artigo
340º do CPP, foi indeferida essa junção, por despacho de 31 de Outubro de 1997
(fls. 1841 e ss.), dado não se configurar necessária à descoberta da verdade e se tratar de meio de prova inadmissível.
Reagiu o arguido, recorrendo igualmente dessa decisão
(fls. 1887) e, na motivação respectiva, alegou-se não só a violação do disposto nos artigos 165º, nºs. 1, 2 e 3, e 340º, nºs. 1 e 4, do CPP, como do nº 1 do artigo 32º da CR (fls. 1888 e segs.).
3. - Inconformado, o arguido atravessou requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Pretendia ver apreciadas:
a) 'quanto aos recursos interlocutórios', a inconstitucionalidade da norma do artigo 340º, nº 4, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal (CPP), no respeitante à não admissão da junção do parecer, na interpretação dada pela decisão recorrida, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República (CR);
b) 'quanto ao segundo recurso interlocutório', a inconstitucionalidade das normas dos artigos 125º, 340º e 343º, nº 1, do CPP, na interpretação que lhes foi dada, por violação do nº 1 do artigo 32º e dos nºs. 1 e 2 do artigo 18º da CR;
c) no tocante ao acórdão final, a inconstitucionalidade da norma do artigo 359º, nºs. 1 e 3, do CPP (subentende-se), 'no que respeita à sua interpretação e aplicação na decisão recorrida', por violação do disposto nos artigos 29º, nº 4, e 32º da CR.
Questão de constitucionalidade, acrescenta, que foi suscitada nos autos.
4. - Não obstante o recurso ter sido admitido pelo Conselheiro relator, foi, neste Tribunal, convidado o recorrente a prestar os desejáveis esclarecimentos quanto ao objecto do mesmo, nos termos do nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, vindo dizer:
a) quanto aos recursos interlocutórios, pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação e aplicação das (normas) das alíneas a) e c) do nº 4 do artigo 340º do CPP, por violação do artigo 32º, nº 1, da CR, uma vez que a recusa da junção do parecer balístico na audiência de julgamento, com o fundamento da falta de competência técnica dos subscritores do documento, negou ao recorrente o direito à defesa;
b) quanto ao acórdão final pretende a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 359º, nºs. 1 e 3, do CPP, denegatórias do direito à defesa contemplado no referido artigo 32º, nº 1, da Lei Fundamental, interpretadas na medida em que, condenando-o por crime diverso do constante da pronúncia, como se não tivesse ocorrido alteração substancial dos factos, não lhe foi dada oportunidade de exercer o respectivo direito de defesa.
5. - Notificados para alegações, apresentaram-nas oportunamente recorrente e recorrido.
Concluíu assim, o primeiro:
'1º. Porque o documento 'parecer' se afigurava necessário à descoberta da verdade e à defesa do arguido, ao ser rejeitada a junção nos termos das alíneas a) e c) do nº m4 do artigo 340º, deverão estes normativos, na interpretação e aplicação que o Tribunal 'a quo' lhes deu quanto ao caso 'subjudice' ser declarada violadora do nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
2º. O Recorrente ao ser pronunciado por um crime e ao ter sido condenado por outro, sem que, lhe tenha sido facultado prazo para a sua defesa, quanto ao novo crime, o Trib. 'a quo' na interpretação e aplicação que deu aos nºs. 1 e 3 do artigo 359º do Cod. Proc. Penal, violou o nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
3º. Pelo que, em face do que se deixa exposto, deverá, o Tribunal Constitucional julgar a interpretação e aplicação dos normativos referidos violadora do nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.'
E, por sua vez, o magistrado do Ministério Público concluíu do seguinte modo:
'1º. O arguido não suscitou, durante o processo - isto é, antes da prolação da decisão recorrida - podendo perfeitamente tê-lo feito, qualquer questão de inconstitucionalidade de normas ou interpretações normativas, em termos idóneos e adequados, limitando-se a imputar directamente às decisões impugnadas a violação de normas constitucionais e a pugnar pela nulidade das mesmas.
2º. O dever de audição do arguido - decorrente nomeadamente do decidido no acórdão nº 445/97 - apenas tem cabimento quando o tribunal convole do crime porque o arguido fora pronunciado para crime mais gravemente punido, só então se justificando - e tendo sentido - a concessão ao arguido de oportunidade para rever a 'estratégia de defesa' adoptada no decurso do processo.
3º. Não traduz obviamente qualquer 'alteração substancial' do objecto do processo a convolação em audiência do crime qualificado, por que vinha pronunciado o arguido, para o correspondente crime simples, menos gravemente punido, como decorrência de se não ter dado como provada a matéria de facto integradora das invocadas circunstâncias qualificativas.
4º. Termos em que não deverá, pelas razões apontadas, conhecer-se do objecto do recurso.'
Notificado para responder, querendo, à questão prévia levantada pelo Ministério Público quanto ao conhecimento do objecto do recurso, o recorrente nada disse.
Cumpre decidir.
II
1. - A delimitação do objecto do recurso.
O confronto entre o requerimento de interposição do recurso e a resposta ao convite formulado ao recorrente, nos termos do artigo
75º-A, nº 5, da Lei nº 28/82, onde se surpreende restrição do elenco de normas cuja apreciação de constitucionalidade se pretende obter, alegadamente aplicadas nas decisões interlocutórias e final, torna necessário delimitar, num primeiro momento, em termos inequívocos, o objecto do recurso.
Considerando que este se fixa no respectivo requerimento de interposição e que esta peça processual foi aclarada, ao abrigo daquela disposição legal, conclui-se constituir objecto dos designados recursos interlocutórios a norma do nº 1 do artigo 340º do CPP, na interpretação que o tribunal recorrido lhe deu, estando em causa, no tocante à decisão final impugnada, a interpretação concedida às normas dos nºs. 1 e 3 do artigo 359º do mesmo Código.
2. - A questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso.
Defendendo o Ministério Público que as questões de constitucionalidade não foram suscitadas adequada e oportunamente, convém distinguir consoante se trate das decisões interlocutórias ou da final.
2.1. - No que respeita ao primeiro dos recursos interlocutórios, assenta este em nulidade alegadamente cometida pelo tribunal do julgamento ao recusar novo interrogatório a um dos arguidos, desse modo interpretando - segundo o recorrente - a norma do nº 1 do artigo 340º do CPP - que dispõe: 'o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa' - com preterição das garantias de defesa constitucionalmente garantidas pelo nº 1 do artigo 32º da Lei Fundamental.
Ora, para além da dificuldade em surpreender a verdadeira dimensão interpretativa questionada, permitindo duvidar se não está a pretender sindicar-se a decisão judicial, em si mesma considerada, o certo é que o tribunal recorrido não aplicou a referida norma, independentemente da interpretação que se lhe der (e, de resto, é duvidoso que o recorrente não tenha deixado 'cair' a questão).
O acórdão recorrido pondera esclarecedoramente a este respeito:
'O que é impugnado neste recurso [está a referir-se ao primeiro recurso interlocutório] é o despacho que desatendeu a arguição de nulidade assacada ao despacho de indeferimento do pedido de esclarecimentos ao arguido P.... Ora não se vê que esse despacho de indeferimento enferme de qualquer nulidade. O que o recorrente ataca é o conteúdo dessa decisão de indeferimento e isso não cabe na previsão normativa das nulidades. Estas respeitam aos vícios formais, à forma dos actos e sua documentação, à sua publicidade ou segredo, ao tempo, ao lugar e ao modo da sua prática, à sua comunicação e convocação para eles e às atribuições dos tribunais. A ilegalidade do conteúdo da decisão, na medida em que traduza um erro de julgamento, pode ser fundamento de recurso, mas não constitui em si mesma qualquer nulidade. Por isso não merece qualquer censura o despacho que indeferiu a arguição da nulidade, único que é objecto deste recurso. E no que respeita ao despacho de indeferimento dos esclarecimentos que se pretendiam obter do co-arguido P..., na parte em que ele possa exceder a mera disciplina da audiência, mesmo que tivesse sido objecto de recurso (e não foi) nunca poderia ser conhecido por este Supremo Tribunal, visto que na sua base está a apreciação, necessidade e oportunidade de captação de matéria de facto. Ora, isso escapa aos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça como claramente resulta do disposto no artigo 433º do CPP. Como repetidamente tem afirmado este Supremo o juízo de necessidade ou desnecessidade de diligências de prova não vinculadas, tributário da livre apreciação crítica dos julgados, na própria vivência e imediação do julgamento, constitui pura questão de facto insusceptível de fiscalização e crítica pelo STJ. Improcede, assim, este recurso.'
2.2. - A segunda questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente respeita ao recurso da decisão que indeferiu a junção aos autos de um designado 'parecer balístico', por se considerar desnecessário à descoberta da verdade, configurando, aliás, um meio de prova inadmissível.
Também aqui o acórdão do Supremo é elucidativo ao escrever-se:
'Mau grado a roupagem formal que o recorrente lhe pretendeu emprestar, formulando ‘quesitos’ a 3 pessoas que identifica como ‘Peritos’ e que subscrevem
‘respostas’ em jeito de ‘relatório pericial’, é evidente que não estamos perante qualquer prova pericial. Desde logo porque não foi ordenada pela autoridade judiciária competente, pois as pessoas que subscreveram o relatório não receberam do juiz qualquer incumbência para averiguar e depois se pronunciar sobre o que averiguaram, sendo seleccionadas apenas pelo arguido com base em critérios seus e completamente alheios ao tribunal. E não se tratando de prova pericial, como o próprio recorrente parece admitir, classificando-o como mero documento, não faz sentido pretender-se que o seu teor só pode ser abalado fundamentando-se a divergência, pois isso apenas se aplica ao juízo inerente à prova pericial – artigo 163º nºs. 1 e 2 do CPP. Por outro lado, face ao teor das ‘perguntas’ formuladas e ao teor das
‘respostas’ dadas, verifica-se que as pessoas que subscrevem o documento estão a narrar factos e não a emitir pareceres técnicos (que aliás não são instrumentos ou meios de prova, nem os pontos de vista que neles se contêm são vinculantes). Nessa medida, é de subscrever o entendimento expresso no despacho recorrido de que se está perante testemunho escrito de quem não foi arrolado como testemunha e que portanto não pode ser valorado. Além disso, e na medida em que se considerou o documento desnecessário à descoberta da verdade, valem aqui as considerações feitas aquando da apreciação do 1º recurso interlocutório: - o juízo sobre a necessidade de junção de documentos é questão que escapa à censura do Supremo, por respeitar a matéria de facto cujo conhecimento está fora dos seus poderes de cognição, pois não é subsumível ao artigo 410º nº 2 do CPP e portanto é insusceptível de ser sindicado pelo STJ. Do que se deixa dito resulta que este recurso também não merece provimento.'
Ou seja, neste caso - como no anterior - não aplicou o Tribunal recorrido a norma cuja sindicância se pede, o que constitui um dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º citado, de indispensável verificação: o da aplicação pelo tribunal da norma questionada, de forma efectiva, de modo a constituir essa norma, na sua totalidade ou em algum dos seus segmentos ou, ainda, numa dada interpretação, uma das rationes decidendi da decisão.
Obviamente, não foi este o caso - tal como na anterior questão. O Supremo, convocando e conjugando as normas dos artigos 433º e 410º, nº 2, do CPP, cuidou de sublinhar os seus poderes cognitivos em matéria de facto e os limites da sua fiscalização nesse domínio que, in casu, o impedem de conhecer e censurar as decisões interlocutoriamente tomadas, essencialmente valorativas de matéria de facto.
Assim, e uma vez que nem sequer foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade a respeito daquelas normas dos artigos 433º e
410º, nº 2 - relativamente às quais, de resto, o Tribunal Constitucional tem lavrado vasta jurisprudência que, se fosse caso de a aplicar, importaria um juízo de não inconstitucionalidade - também no tocante à impugnada interpretação normativa do nº 1 do artigo 340º do CPP, nesta outra vertente, não se conhece do objecto do recurso.
2.3.- Coloca-se, por último, a questão de constitucionalidade reportada à normação contida no artigo 359º do CPP, preceito que prevê a alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, admitindo-a nos seguintes termos:
'1.- Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos.
2.- Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
3.- Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente aditamento da audiência, se necessário'.
Segundo a tese defendida pelo recorrente, a decisão recorrida deu aos nºs. 1 e 3 do artigo uma interpretação e aplicação violadoras das garantias constitucionais de defesa, previstas no nº 1 do artigo 32º da CR, quando não observa o contraditório, não obstante o arguido ter sido pronunciado por um determinado crime - o previsto e punido nos termos da alínea g) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, integrando homicídio qualificado - vindo, no entanto, a ser condenado por outro crime - o previsto e punido pelo artigo 131º do mesmo Código (homicídio simples) -, uma vez que não lhe foi dada oportunidade
(e prazo) para se defender do 'novo crime', como se lhe refere.
2.4. - Para o magistrado do Ministério Público, no entanto, esta questão, relacionada com a convolação em audiência de um crime de homicídio qualificado para um crime de homicídio simples, não foi, como questão de constitucionalidade, suscitada nos autos adequada e tempestivamente.
Com efeito, observa, o arguido limitou-se, na motivação que apresentou perante o Supremo, a afirmar 'ter o acórdão recorrido violado o disposto no nº 4 do artigo 29º e os nºs. 1 e 5 do artigo 32º da Constituição da República, pelo que deverá ser julgado nulo'. E só na sequência do convite que lhe foi dirigido para aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade - consequentemente, muito depois da prolação da decisão recorrida e com manifesta extemporaneidade - enunciou a questão de constitucionalidade normativa a que pretendia reportar o recurso - o que podia e devia ter feito, obviamente, de forma clara e inequívoca, quando suscitou a questão perante o Supremo Tribunal de Justiça.
O magistrado do Ministério Público vai mais longe, no entanto, num segundo grau de considerações, uma vez que tem a questão por manifestamente infundada, pelo que deveria, nesta parte, o recurso ser julgado como liminarmente improcedente.
É que tem por 'perfeitamente absurdo' questionar-se representar 'alteração substancial dos factos' a convolação de um homicídio qualificado para o correspondente homicídio simples, pela circunstância de o tribunal do julgamento não ter dado como provada a matéria de facto que integrava a circunstância qualificativa que servira de base à pronúncia.
A este respeito, pondera, não se está perante 'crimes diferentes', a implicar uma estratégia de defesa e um tipo de provas em audiência que, desse modo, teriam sido afectados: a imputação do crime de homicídio doloso simples já se encontrava implícita e subjacentemente no despacho de pronúncia, como minus que suportava necessariamente a acrescida imputação ao arguido de circunstâncias qualificativas de tal crime.
Por outro lado, não representando a convolação operada em julgamento subsunção da matéria de facto a crime mais gravemente punido, a situação a que ao autos se reportam nada tem a ver com a contemplada no acórdão deste Tribunal nº 445/97 - publicado no Diário da República, I Série-A, de 5 de Agosto de 1997 - que o recorrente invoca, nas respectivas alegações.
2.5. - Compulsados os autos, verifica-se que o arguido, na motivação do recurso que oportunamente interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, alegou que, perante uma alteração substancial dos factos constantes da pronúncia, foi condenado por 'novo crime' sem lhe ter sido dada a ocasião para se defender, o que, em seu critério, determina a nulidade do acórdão, que, assim, violou o disposto no nº 4 do artigo 29º e os nºs. 1 e 5 do artigo 32º, ambos da CR.
O Supremo, por sua vez, não deixou de ter em consideração a enunciada problemática, que afastou, tendo-a por improcedente.
No entanto, ao fazê-lo, esse Alto Tribunal não a analisou sob a perspectiva constitucional.
Escreveu-se a este respeito, no acórdão ora recorrido:
'Resta, finalmente, apreciar a conclusão de que houve alteração substancial dos factos constantes da pronúncia ao condenar-se o recorrente pelo crime de homicídio simples, sem se conceder oportunidade de defesa ao recorrente. Parece-nos evidente que não houve alteração substancial, ou mesmo não substancial, dos factos que constavam da acusação e da pronúncia. O recorrente foi pronunciado como autor de um crime de homicídio qualificado p.p. pelo artigo 132º, nº 2, alínea g), com referência ao artigo 131º do Código Penal e veio a ser condenado por um crime de homicídio simples p.p. pelo referido artigo 131º. Isto porque se entendeu que os factos apurados não configuravam aquela circunstância susceptível de preencher tal qualificação. O artigo 132º não é um tipo de crime diverso ou autónoma em relação ao artigo
131º. Um e outro têm a mesma natureza e o interesse violado é o mesmo. O crime de homicídio qualificado não representa um diferente tipo legal, mas somente uma variação de circunstâncias do tipo fundamental (cfr. Fernanda Palma,
'O Homicídio Qualificado no Novo Código Penal Português', in Revista do Ministério Público, ano 4º, vol. 15, págs. 59 e segs.).
É evidente que o recorrente não foi condenado por factos ou conjunto de factos, com relevância jurídico-penal, que escapem ou não se integrem no núcleo essencial dos factos por que foi acusado, pelo que não se pode falar em crime diverso ou factos diversos dos descritos na pronúncia; e muito menos dizer-se que da condenação pelo homicídio simples (e não pelo homicídio qualificado) pudessem resultar afectados minimamente os seus direitos de defesa. E é óbvio que da condenação pelo crime simples resultou até uma desagravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pelo que não faz sentido falar-se em aplicação de uma pena mais grave do que a que corresponderia ao crime que constava da pronúncia. Improcede, assim, claramente a conclusão de que deveria ter sido aplicado o disposto no artigo 359º do CPP e a alegação de que, não o fazendo, o acórdão seria nulo nos termos do nº 2 do artigo 379º.'
3.1. - A passagem transcrita ilustra que o Supremo afrontou a questão relativa à alteração substancial dos factos constantes da pronúncia, na oportunidade suscitada na motivação do recurso penal, e decidiu-a nessa sede, ou seja, sem apreciar a dimensão constitucional da mesma que, na verdade, não lhe foi colocada, ou, se quisermos, não lhe foi adequadamente colocada. Com efeito, não obstante a ductilidade inerente a este tipo de matéria, não pode considerar-se idoneamente levantada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente, na ocasião processual própria, se limite a afirmar perante o tribunal para o qual recorre, em fecho de conclusões, que o acórdão recorrido deve ser julgado nulo por ter violado o disposto no nº 4 do artigo 29º e os nºs.
1 e 5 do artigo 32º da CR.
Por outras palavras, a impugnação não foi direccionada à norma - como teria sido correcto - mas sim a decisão, em si. E nada obstava a uma adequada suscitação perante o Supremo, de modo a que este conhecesse a questão nas seus precisos contornos e sobre ela decidisse.
3.2. - Mas, sendo assim, não se verificam todos os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade: reportada a questão que se suscitou à própria decisão judicial, fica a mesma subtraída à competência do controlo normativo do Tribunal Constitucional, destinada à apreciação do sentido e da interpretação da norma aplicada nos parâmetros de constitucionalidade
(cfr., entre tantos outros, o acórdão nº 18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996).
Não afecta nem invalida este juízo conclusivo o facto de, na oportunidade, se ter dado cumprimento ao disposto no nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82. Em causa estava, então, o elenco das normas impugnadas na sua convocada projecção constitucional, de harmonia com matizes interpretativas não explicadas de modo inequívoco, sendo certo que, ultrapassada a fase que as alegações posteriormente apresentadas complementaram, está-se agora perante um quadro mais nítido que leva a concluir pela não congregação de todos os pressupostos processuais quanto à admissibilidade do recurso. É que, como se salientou no acórdão deste Tribunal nº 26/99, inédito, uma decisão de não conhecimento do recurso pode resultar de uma questão complexa, que as próprias alegações contribuam para dilucidar.
Ora, no caso vertente, pode dizer-se que tal não resultou, não obstante o desenvolvimento dialéctico do processo.
3.3. - Não se apreciará, assim, a questão de fundo, relacionada com a liberdade que aos tribunais deve assistir quanto à qualificação jurídica no domínio do processo penal - designadamente quanto à alteração da subsunção jurídico-criminal dos factos descritos na acusação ou na pronúncia - na sua compatibilização com a real eficácia das garantias de defesa constitucionalmente exigidas, sem prejuízo de se registar que este Tribunal já entendeu que a redução da matéria de facto da acusação, por supressão de alguns dos factos aí constantes, não põe em causa essas garantias, como não coloca o problema da reformulação da defesa nem tão pouco bule com o contraditório (cfr. acórdão nº
330/97, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Julho de 1997). III
Em face do exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em _6___ unidades de conta. Lisboa, 5 de Maio de 1999 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida