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Proc. nº 400/93
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1 – Por acórdão proferido em Subsecção da 2ª Secção do Tribunal de Contas, de 14 de Maio de 1992, foram os ora recorrentes J... e A..., entre outros, na qualidade de membros do Conselho Administrativo da Direcção-Geral da Cooperação
(DGC), condenados, a, solidariamente, 'reporem o montante de 616.020$00, como efectivação de responsabilidade financeira reintegratória por pagamentos indevidos, conforme o referido no nº 4.7, supra, deste acórdão, e nos juros respectivos, em conformidade com o artigo 22º do Decreto nº 26341, de 7/2/1936
(...)'.
2 – Inconformados com o assim decidido, recorreram para o Plenário da 2ª Secção do Tribunal de Contas. A terminar as alegações que então apresentaram, os ora recorrentes concluiram da seguinte forma:
'´1. A responsabilidade financeira tem uma natureza sancionatória de carácter misto, por um lado reintegratória, por outro, punitiva;
2. O princípio do contraditório, quando está em causa, como é o caso, a aplicação de sanções punitivas, tem como corolário o princípio da audiência e defesa do arguido;
3. Tal princípio compreende a obrigatoriedade da existência de um acto formal e individualizado que consubstancie a acusação que é dirigida ao arguido, bem como o direito de este apresentar, em sua defesa, quaisquer meios de prova e de constituir advogado;
4. No caso em apreço não existiu tal acto formal, nem foi dada ao arguido a possibilidade de, previamente à decisão ora recorrida, apresentar todos os meios de prova que entendesse e de constituir advogado, o que, em parte, até decorre da inexistência de tal formalização da acusação;
5. O direito de audiência e defesa do arguido nos termos expostos constitui um princípio de natureza constitucional, que decorre dos princípios do contraditório e da protecção da confiança, bem como dos regimes constitucionais particulares expressamente consagrados para outros processos punitivos, constituindo uma exigência do modelo adoptado no Estado de Direito;
6. Caso se entenda que deve ser dada diferente interpretação, quanto ao âmbito do direito de defesa, aos artigos 30º e 51º da Lei nº 86/89, então tal procedimento seria inconstitucional por violar aqueles princípios, o que se argui para todos os efeitos legais;
7. O caso em apreço no acórdão nº 139/92 do Tribunal de Contas subsume-se no artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 737/76;
8. O sentido normativo desse artigo é incompatível com os artigos 36º, nº 3 e
37º do Decreto nº 22 257, e 1º do Decreto-Lei nº 30 294, pelo que aquele deve prevalecer porque posterior;
9. A infracção punível apenas com multa fica, porém, amnistiada pela alínea cc) do art. 1º da Lei nº 23/91, extinguindo-se a respectiva responsabilidade;
10. A natureza punitiva (e não apenas reintegratória) da responsabilidade financeira justifica a existência do poder legal de relevação;
11. No caso sub-judice, tal poder deve ser exercido no quadro dos artigos 49º e
50º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, na medida em que sejam mais favoráveis para os recorrentes do que as normas anteriores;
12. A decisão entre exercer ou não o poder de relevação (um poder jurisdicional discricionário) assenta necessariamente na ponderação das circunstâncias do caso concreto segundo os parâmetros extraídos do art. 72º, nºs 1 e 2, do Código Penal, um preceito aplicável por analogia;
13. Não o tendo feito, o douto acórdão sob revista violou por erro de aplicação, os artigos 49º e 50º da Lei nº 86/89 e, também, o artigo 205º da Constituição e os nºs 1 e 2 do art. 72º do Código Penal (ou o princípio de determinação da medida da sanção que neles aflora);
14. Se assim não se entendesse, deveria considerar-se inconstitucional o artigo
50º da Lei nº 86/89, por violação do princípio constitucional da Justiça e da exigência constitucional de que os tribunais sempre a façam (art. 205º, nº 1, da Constituição);
15. Não obstante a falta de audiência dos recorrentes nos termos exigidos pela salvaguarda constitucional do direito de defesa, o douto Acórdão recorrido compendiou elementos suficientes para que uma sua ponderação nos termos acima sustentados permita sem dificuldades ao Venerando Tribunal de Contas relevar com justiça a responsabilidade financeira dos recorrentes'.
3 – O Plenário da 2ª Secção do Tribunal de Contas, por acórdão de 1 de Abril de
1993, decidiu negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar quanto aos ora recorrentes a decisão recorrida.
4 – É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade. Pretendem os recorrentes, nos termos do respectivo requerimento de interposição, ver apreciada a constitucionalidade da interpretação que a decisão recorrida deu aos artigos 30º, 51º, 49º e 50º da lei nº 86/89, de 8 de Setembro, por violação, respectivamente, dos princípios constitucionais do contraditório e da protecção da confiança e dos princípios constitucionais da justiça e da determinação das penas.
5 – Recebido o recurso foram os recorrentes notificados para alegar, o que fizeram, tendo concluído nos seguintes termos:
'´1. A responsabilidade financeira tem uma natureza sancionatória de carácter misto, por um lado, reintegratória, por outro, punitiva;
2. O princípio do contraditório, quando está em causa, como é o caso, a aplicação de sanções punitivas, tem como corolário o princípio da audiência e defesa do arguido;
3. Tal princípio compreende a obrigatoriedade da existência de um acto formal e individualizado que consubstancie a acusação que é dirigida ao arguido, bem como o direito de este apresentar, em sua defesa, quaisquer meios de prova e de constituir advogado;
4. No caso em apreço não existiu tal acto formal, nem foi dada ao arguido a possibilidade de, previamente à decisão ora recorrida, apresentar todos os meios de prova que entendesse e de constituir advogado, o que, em parte, até decorre da inexistência de tal formalização da acusação;
5. O direito de audiência e defesa do arguido nos termos expostos constitui um princípio de natureza constitucional, que decorre dos princípios do contraditório e da protecção da confiança, bem como dos regimes constitucionais particulares expressamente consagrados para outros processos punitivos, constituindo uma exigência do modelo adoptado no Estado de Direito;
6. Deverá, pois, o Venerando Tribunal Constitucional julgar inconstitucionais os artigos 30º e 51º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, se foi correcto o entendimento deles extraído pelo Tribunal de Contas quanto à suficiência – à sua luz – das notificações para esclarecimentos feitas aos ora recorrentes, ou,
7. Se considerar que tais preceitos devem ser entendidos na acepção da exigência de um acto formal e individualizado de acusação, deve o Tribunal determinar a aplicação daquelas normas no caso vertente com a interpretação que justifica o juízo da sua constitucionalidade;
8. Acresce que a natureza punitiva (e não apenas reintegratória) da responsabilidade financeira justifica a existência do poder legal de relevação;
9. No caso sub-judice, tal poder deve ser exercido no quadro dos artigos 49º e
50º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, na medida em que sejam mais favoráveis para os recorrentes do que as normas anteriores;
10. A decisão entre exercer ou não o poder de relevação (um poder jurisdicional discricionário) assenta necessariamente na ponderação das circunstâncias do caso concreto segundo os parâmetros extraídos do art. 72º, nºs 1 e 2, do Código Penal, um preceito aplicável por analogia;
11. Se assim não se entendesse, e se não se entendesse igualmente que carência e deficiências da organização dos serviços por razões alheias aos contáveis nunca constituirão razões justificativas da não relevação ou redução, deveriam ser julgados inconstitucionais os artigos 49º e 50º da Lei nº 86/89, por violação do princípio constitucional da Justiça e da exigência constitucional de que os tribunais sempre a façam (art. 205º, nº 1, da Constituição);
12. Se se considerar que tais preceitos merecem um entendimento constitucional, deve o Tribunal Constitucional determinar a sua aplicação no caso vertente com a interpretação que justifica o juízo da sua constitucionalidade'.
Corridos os vistos legais cumpre decidir. II – Fundamentação
6 – São, fundamentalmente, duas, as questões de constitucionalidade que os recorrentes pretendem ver apreciadas: A primeira é a da compatibilidade com a Constituição do sentido normativo que, no seu entender, a decisão recorrida extraiu dos artigos 30º e 51º da Lei nº
86/89, de 8 de Setembro - segundo a qual no processo tendente a apurar a responsabilidade financeira prevista naquele diploma não é necessária a existência de 'um acto formal e individualizado que consubstancie a acusação que
é dirigida ao arguido, nem tem este o direito de apresentar, em sua defesa, quaisquer meios de prova e de constituir advogado' - sentido normativo esse que, na sua perspectiva, é incompatível com os princípios constitucionais do contraditório e da protecção da confiança (conclusões 1ª a 7ª das alegações de recurso apresentadas neste Tribunal). A segunda é a da compatibilidade com a Lei Fundamental da interpretação que, no seu entender, a decisão recorrida deu aos artigos 49º e 50º da Lei nº 86/89, de
8 de Setembro, - segundo a qual 'por um lado a decisão de exercer ou não exercer o poder de relevação ai previsto não assenta, necessariamente, na ponderação das circunstâncias do caso concreto segundo os parâmetros do artigo 72º, nºs 1 e 2 do Código Penal, e, por outro lado, segundo a qual a carência e deficiências da organização dos serviços por razões alheias aos contáveis nunca constituirão razões justificativas da não relevação ou redução' - interpretação essa que os recorrentes consideram violadora dos princípios constitucionais da justiça e da determinação das penas (conclusões 8ª a 12ª das alegações de recurso apresentadas neste Tribunal).
7 - Importa, porém, começar por decidir, como questão prévia, se pode conhecer-se do objecto do recurso assim delineado. Constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal que o recurso de constitucionalidade interposto pelos recorrentes, o previsto na alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pressupõe, além do mais, que
(a) o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica – ou de uma sua dimensão normativa –; (b) e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado como ratio decidendi. Vejamos, então, se, in casu, se podem ter por verificados, em relação a cada uma das questões de constitucionalidade que os recorrentes agora pretendem ver apreciadas, os pressupostos de admissibilidade antes enunciados.
7.1. – Pretendem os recorrentes, em primeiro lugar, ver apreciada a constitucionalidade da norma que, numa determinada interpretação se extrai dos artigos 30º e 51º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, segundo a qual no processo tendente a apurar a responsabilidade financeira prevista naquele diploma não é necessária a existência de um acto formal e individualizado que consubstancie a acusação que é dirigida ao arguido, nem tem este o direito de apresentar, em sua defesa, quaisquer meios de prova e de constituir advogado.
É, porém, manifesto, que não pode, nesta parte, conhecer-se do objecto do recurso. Não porque os recorrentes não tenham suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade dessa interpretação normativa dos artigos 30º e 51º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro - fizeram-no, inequivocamente, nas alegações de recurso que apresentaram perante a 2ª Secção do Tribunal de Contas, mais especificamente nas conclusões 1ª a 6ª dessa peça processual -, mas fundamentalmente porque a decisão recorrida – a decisão da 2ª Secção do Tribunal de Contas, de 1 de Abril de 1993 – não aplicou, como ratio decidendi, a norma assim arguida de inconstitucional. Nas alegações de recurso que apresentaram perante a 2ª Secção do Tribunal de Contas começaram os recorrentes por alegar - e, em consequência, pedir ao Tribunal que apreciasse – a existência de uma situação de nulidade processual, por violação dos seus direitos de audiência e de defesa, decorrente de um errado entendimento de quanto se dispõe nos artigos 30º e 51º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro. Entendeu, porém, o Tribunal de Contas, que não podia, nessa parte, conhecer do objecto do recurso, porquanto, no seu entender, um eventual vício desse tipo, a existir, já estaria sanado. Nesse sentido disse-se na decisão recorrida, a concluir esta questão:
'(...) a eventual nulidade derivada da alegada insuficiência de audiência e defesa encontrar-se-ia sanada, pelo que nos abstemos de conhecer da matéria condensada nos pontos 1. a 5. das alegações dos recorrentes João Alberto Bacelar da Rocha Páris e Aldemiro Carlos Pereira e, consequentemente, das inconstitucionalidades invocadas subsidiariamente no ponto 6.'.
Ao decidir desta forma não utilizou a decisão recorrida, como racio decidendi, a norma que os recorrentes arguiram de inconstitucional. E, não o tendo feito, não pode agora o Tribunal Constitucional conhecer, nesta parte, do objecto do recurso, por falta de um dos seus pressupostos de admissibilidade.
7.2. – Pretendem ainda os recorrentes ver apreciada a constitucionalidade da norma que, no seu entender, a decisão recorrida extraiu dos artigos 49º e 50º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro - segundo a qual 'por um lado a decisão de exercer ou não exercer o poder de relevação ai previsto não assenta, necessariamente, na ponderação das circunstâncias do caso concreto segundo os parâmetros do artigo 72º, nºs 1 e 2 do Código Penal, e, por outro lado, segundo a qual a carência e deficiências da organização dos serviços por razões alheias aos contáveis nunca constituirão razões justificativas da não relevação ou redução'. Ainda que se admita que os recorrentes suscitaram, durante o processo e de forma processualmente adequada, a questão da constitucionalidade da dimensão normativa dos artigos 49º e 50º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, que agora pretendem ver apreciada – e não é claro que o tenham feito - a verdade é que mais uma vez a decisão recorrida não utilizou, como ratio decidendi, a interpretação normativa que foi arguida de inconstitucional. Vejamos. O artigo 50º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro – norma que, fundamentalmente, está em causa – dispõe que: 'O Tribunal de Contas pode relevar ou reduzir a responsabilidade financeira em que houver incorrido o infractor, quando se verifique a existência de mera culpa, devendo fazer constar do acórdão as razões justificativas da relevação ou redução'. No entender dos recorrentes tal norma foi interpretada e aplicada com o seguinte sentido: por um lado a decisão de exercer ou não exercer o poder de relevação ai previsto não assenta, necessariamente, na ponderação das circunstâncias do caso concreto segundo os parâmetros do artigo 72º, nºs 1 e 2 do Código Penal; e, por outro lado, a carência e deficiências da organização dos serviços por razões alheias aos contáveis nunca constituirão razões justificativas da não relevação ou redução. É, pois, esta dimensão normativa da norma em análise que os recorrentes pretendem ver apreciada por este Tribunal. Verifica-se, porém, como já deixámos enunciado, que a decisão recorrida não extraiu do preceito em análise esse sentido normativo. Para o demonstrar basta atentar na parte da decisão recorrida em que se sustenta a decisão de não exercer o poder de relevação conferido por aquele preceito. É o seguinte o teor, nesta parte, da decisão recorrida:
'(...) De qualquer modo, vejamos se no caso «sub judice» há razões atendíveis que justifiquem a relevação, ao abrigo do artigo 50º da Lei nº 86/89, como pretendem os mencionados recorrentes. Tal como escrevem J. Alves Cardoso e M. Simas Santos (Legislação das Finanças Públicas Anotada, pág. 53), entendemos que, apesar do termos «pode» utilizado nos artigos 48º e 49º da Lei nº 86/89, o Tribunal de Contas não ficou dispensado do princípio da obediência à lei, consagrado no artigo 206º da Constituição, para, ao arrepio de toda a tradição legislativa portuguesa, enveredar pelo princípio da oportunidade ou pela discricionaridade na aplicação de multas ou na condenação em reposições. O uso do termo «pode» nestas duas disposições legais está em íntima conexão com a possibilidade de relevação ou redução da responsabilidade prevista no artigo 50º da mesma lei. Assim, verificados os elementos objectivos e subjectivos da infracção, o Tribunal só pode deixar de aplicar a multa respectiva ou não condenar nas reposições, se se verificarem os pressupostos da relevação ou redução da responsabilidade. Deste modo, é inteiramente pertinente a expressão do acórdão recorrido no sentido de que, «mesmo havendo apenas mera culpa», «em princípio», «a repetição
é devida, e só a título excepcional e de modo devidamente justificado» poderá ser reduzida ou relevada a responsabilidade. Na verdade, como escrevem também J. Alves Cardoso e M. Simas Santos (o.c., pág. 55), não é imperativa a relevação ou redução da responsabilidade sempre que se verifique o pressuposto da mera culpa, devendo ocorrer razões justificativas que o Tribunal terá de mencionar no acórdão. No caso que agora nos ocupa, o acórdão recorrido deu apenas como provada a mera culpa, conclusão que não foi posta em causa por nenhum dos recorrentes, nem compete a este Plenário alterar de ofício. Cumpre, por isso, averiguar se, além desta, ocorrem razões que justifiquem a relevação pedida pelos recorrentes João Alberto Bacelar da Rocha Páris e Aldemiro Carlos Pereira. Alegam os recorrentes que justificam a relevação as seguintes circunstâncias mencionadas no acórdão recorrido: a) o organograma legal da Direcção-Geral de Cooperação não corresponde às necessidades práticas (pág. 4); b) a Divisão de Gestão carece de uma estrutura dotada de meios humanos em quantidade e preparação profissional adequada a fim de permitir observar o cumprimento das «Regras de Contabilidade Pública» (pág. 5); c) algumas bolsas têm de ser atribuídas (a não portugueses) por motivos políticos (pág. 6); d) os serviços sediados na Av. da Liberdade não dispõem de condições aceitáveis para o seu bom funcionamento (pág. 7); e) a verba em causa foi despendida no pagamento de bolsas a estagiários da República Popular de Moçambique que frequentaram um estágio em unidades dependentes do Estado Maior da Força Aérea (pág. 11); f) são razões legais e políticas as que impedem a obtenção da reposição pelos beneficiários das quantias pagas a mais (pág. 11); g) o relatório inicial do Tribunal de Contas reconheceu que o lapso de processamento e a falha de controlo se ficaram a dever «a insuficiência dos meios técnicos e humanos... para o cumprimento rigoroso e atempado de muitas tarefas que lhe estavam cometidas (só em 1989 as bolsas de estudo originaram quinze mil processamentos e outros tantos pagamentos (pág. 11 e 12). Todavia, nenhuma destas circunstâncias, salvo o devido respeito pela douta opinião dos recorrentes, revela reduzido grau de ilicitude, escassa intensidade de culpa ou menos gravidade das consequências da infracção. Com efeito, tanto as deficiências da organização da Direcção-Geral referidas na alínea a) como as carências relativas ao pessoal mencionadas nas alíneas b) e g), como as restantes condições dos serviços apontadas na mesma alínea g) e na alínea d), não só não são desculpabilizam a falta de cuidado dos responsáveis, como a tornam mais grave. Os dinheiros envolvidos nas bolsas eram recursos públicos, pertença de todos os cidadãos e não propriedade de um determinado serviço ou organismo. Eram, por isso, recursos escassos e sensíveis cujo dispêndio, em nome alheio, a lei exige que seja feito com as maiores cautelas. Assim, quanto maiores forem as deficiências dos serviços ou as carências do pessoal, maior controlo exigem e maior cuidado impõem àqueles a quem a lei atribui a responsabilidade pela autorização ou pelo pagamento das despesas públicas. Por outro lado, o número anual de bolsas, referido na alínea g), não pode ser invocado só para desculpar os lapsos, tem de ser tido em conta também para a necessidade da implementação de um sistema de controlo aperfeiçoado, que não existia. Quanto aos motivos políticos da atribuição das bolsas – alínea c) – à entidade de que dependiam os estágios – alínea e) – ou às razões que obstam à reposição por parte dos estagiários – alínea f) – não se vê como possam minimizar a responsabilidade. Ao invés, talvez seja exigível maior prevenção quando se sabe que é mais difícil remediar os erros. Mas, se estas razões não apontam decisivamente para a relevação, há outras circunstâncias dadas como assentes no acórdão recorrido que a afastam. Com efeito, conclui-se nesse aresto que «é perturbadora a verificação de que o sistema de controlo e de segurança, com âmbito geral, praticamente não existia no momento da auditoria» (pág. 19) e que «na Divisão de Gestão também não existia sequer uma mínima segregação de funções» (idem). Ora, o elevado número de bolsas e os montantes envolvidos exigiam um mínimo de controlo e de segregação de funções e a implementação desses sistemas era da responsabilidade do Conselho Administrativo. Sem eles, é por demais evidente que os seus elementos não podiam confiar nas autorizações e pagamentos que os serviços lhes apresentavam para assinar. Por outro lado, como resulta da matéria de facto assente, houve nexo de causalidade entre uma falha de controlo e os pagamentos indevidos. Mas existe ainda uma outra circunstância que resulta dos documentos juntos ao processo e que claramente desaconselha a relevação. Se se observar a folha de pagamento relativa ao mês de Dezembro de 1989 – na qual se verificou o erro – com um mínimo de atenção e mesmo sem se recorrer a outros elementos, facilmente se verificará que não era verosímil pagar-se 17
500$00 a cada estagiário, relativamente a todo o mês de Dezembro e 59 333$00, relativamente a apenas 11 dias de Setembro. Visto objectivamente, o erro ronda, assim, salvo o devido respeito, a quase grosseria jurídica. Por outro lado, o Despacho de 17.10.89, lavrado na Informação de Serviço nº
755/SE/89, e junto aos autos pelo recorrente Joaquim A. Osório Alves de Castro, só autorizou a atribuição das fracções das bolsas mensais a partir de 9 de Outubro de 1989, pelo que nenhum pagamento relativo a Setembro do mesmo ano deveria ser feito sem novo Despacho. Mais um factor, pois, que, se não pode ser atendido para acentuar a ilegalidade da despesa, uma vez que só agora foi trazido ao processo, também em nada abona a favor da relevação da responsabilidade. Improcede, assim, também a conclusão das alegações dos recorrentes relativa à relevação da responsabilidade financeira.'
Em face do teor da decisão recorrida é, pois, manifesto, que esta não deu ao artigo 50º da Lei nº 86/89 o sentido normativo que os recorrentes reputam de inconstitucional. Nem a decisão recorrida diz, em parte alguma, - nem dela se pode implicitamente extrair - que a decisão de exercer ou não exercer o poder de relevação ai previsto não assenta na ponderação das circunstâncias do caso concreto segundo os parâmetros do artigo 72º, nºs 1 e 2 do Código Penal (na sua redacção originária) - pelo contrário, se atentarmos nos critérios utilizados pelo Tribunal para se decidir pela não relevação da responsabilidade financeira constataremos que eles estão muito próximos daqueles que segundo o então artigo
72º do Código Penal (actual artigo 71º) devem ser tidos em conta para efeitos de determinação da medida da pena –; nem, por outro lado, nela se diz que a carência e deficiências da organização dos serviços por razões alheias aos contáveis nunca constituirão razões justificativas da não relevação ou redução. Diz-se apenas que, no caso concreto, tais circunstâncias não revelam 'reduzido grau de ilicitude, escassa intensidade de culpa ou menos gravidade das consequências da infracção', pelo que não abonam a favor da relevação da responsabilidade financeira dos arguidos mas, pelo contrário, em sentido inverso. Em suma: também no que se refere aos artigos 49º e 50º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, não foram estes preceitos aplicados com o sentido normativo que o recorrente tinha arguido de inconstitucional, o que, de acordo com a jurisprudência antes expressa, obsta a que este Tribunal possa agora, também nesta parte, conhecer do objecto do recurso.
III – Decisão Por tudo o exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 2 unidades de conta. Lisboa, 28 de Abril de 1999 José de Sousa e Brito Messias Bento Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa
'(...) A primeira questão a apreciar é a da eventual violação do direito de defesa dos recorrentes e sua natureza, uma vez que se esta questão for julgada procedente, poderá eventualmente obstar ao conhecimento de mérito (art.s 713º, nº 2 e 660º, nº 1, do Código de Processo Civil). Tal como os dois recorrentes que levantaram esta questão confessam, a seu respeito, no ponto II.6 da respectiva alegação, todos os responsáveis financeiros – membros do Conselho de Administração da DGC - «foram ouvidos sobre a matéria em apreço», estando juntos aos autos cópias dos ofícios ou certidões que consubstanciaram as respectivas notificações (fls. 224 a 229 do Proc. nº 1
761/89). Por outro lado, todas as notificações esclareceram expressamente que eram feitas
«nos termos e para os efeitos de eventual aplicação dos artigos 30 e 51º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro», que consagram a audição dos responsáveis e o princípio do contraditório, aliás de acordo com as respectivas epígrafes, e foram acompanhadas de cópia do relatório inicial. Além disso, nas notificações foram sugeridos os esclarecimentos tidos por convenientes, nomeadamente sobre o pagamento a estagiários referido no nº
3.1.3.2.2 do Relatório Inicial de que foi entregue fotocópia.
«Simplesmente, tal audiência», no entender expresso dos recorrentes, «não foi suficiente para assegurar a defesa mínima a que os arguidos tinham ireito». E não foi suficiente – explicam mais adiante – porque «em suma, aos arguidos não lhes foi apresentada uma acusação formal relativa aos factos pelos quais foram condenados, o que desde logo não lhes permitiu tomar consciência da possibilidade de constituirem advogado e oferecer quaisquer meios de prova, que de resto nem lhes foi referido como possível». O que os recorrentes invocam é, pois, decididamente, insuficiência – e não falta
– de audição e defesa. Alegam irregularidades na audição e defesa e não a sua falta. Ora, a violação do direito de audiência e defesa do arguido só releva para efeitos constitucionais, ou seja, para poder determinar nulidade insuprível, quando se traduza na falta absoluta de audiência ou na omissão de formalidades essenciais à defesa, como seja a falta absoluta de notificação do libelo acusatório, a não entrega de cópia do mesmo ou a individualização e discriminação dos factos puníveis (cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª Edição, 2ª Vol., nota VII ao art. 269). E de nada disto se queixam ou podiam queixar os recorrentes. As suas queixas limitam-se, como se vê, à qualidade formal da acusação e à falta de indicação no acto da notificação de que podiam constituir advogado ou oferecer meios de prova (aliás expressamnete pedidos no despacho que ordenou a audição dos responsáveis – fls. 216 – vº. do Proc. 1 761/89). Acontece, porém, que, independentemente