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Proc. nº 689/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A Caixa Geral de Depósitos, SA (doravante C.G.D.), instaurou, na comarca de Sintra, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, contra A... e Outros, no seguimento da qual se efectuou penhora de imóvel e, mostrando-se registadas em datas anteriores outras penhoras sobre o mesmo bem, se procedeu à sustação da execução, por despacho judicial de 17 de Junho de 1997, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 871º do Código de Processo Civil (CPC).
Interposto agravo pela exequente, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 23 de Abril de 1998, concedendo provimento ao recurso, determinou a revogação daquele despacho e o prosseguimento da acção executiva, com observância do preceituado no artigo 864º, nº 1, daquele Código.
Considerou a Relação, para o efeito, que, após o Tribunal Constitucional ter declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da primeira parte do nº 1 do artigo 300º do Código de Processo Tributário (CPT) - 'na parte em que estabelece o regime de impenhorabilidade total dos bens anteriormente penhorados pelas repartições de finanças em execuções fiscais' (acórdão nº 451/95, publicado no Diário da República, I Série-A, de 3 de Agosto de 1995) - a considerar-se que a norma do nº 1 do citado artigo 871º abrange as execuções fiscais verificar-se-iam os mesmos inconvenientes e violações constitucionais detectados quanto àquele artigo 300º, nº 1, resultando evidente que a norma processual civil tem apenas em vista 'as execuções comuns e as penhoras nelas efectuadas, a tal se restringindo o seu âmbito de aplicação'.
'Portanto [acrescenta-se no acórdão], verifica-se haver uma lacuna legal, por falta de norma que determine o prosseguimento a seguir na execução comum em que, após a penhora, agora possível, se constate a existência duma ou mais penhoras anteriores sobre os mesmos bens, efectuadas em execuções fiscais pendentes, pelo que somos de parecer que, não sendo o disposto no nº 1 do artigo 871º do CPC aplicável a tal caso, não deverá ser sustada a execução comum, mas sim prosseguir, como se houvesse norma a determiná-lo, cumprindo-se o disposto no nº
1 do artigo 864º do CPC.'
De outro modo, observa-se ainda, 'serão violados os princípios constitucionais da proporcionalidade ou da proibição de excesso, do acesso aos tribunais, da defesa dos direitos patrimoniais do credor comum, do dever de administrar justiça em tempo útil e o de dirimir o conflito de interesses (artigos 18º, nº 2, 20º, nº 2, 62º, nº 1 e 205º, nº 2, da CRP)'.
2. - O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional desse acórdão, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e, ao alegar oportunamente, concluíu pela confirmação do expendido juízo de inconstitucionalidade, o que fez nos seguintes termos:
'1ª - A interpretação da norma constante do artigo 871º do Código de Processo Civil, traduzida em aplicar o normal regime de sustação da instância executiva, com fundamento na existência de anterior penhora dos mesmos bens à ordem de execução fiscal - sem que, porém, o regime vigente no Código de Processo Tributário faculte ao exequente a imediata reclamação na execução fiscal do seu crédito e da garantia que lhe é inerente, a qual só poderá verificar-se após a consumação da venda dos bens à ordem desta execução - constitui restrição excessiva e desproporcionada ao direito de acesso aos tribunais, destinado a obter, de forma eficaz e em tempo útil, a realização prática da garantia patrimonial do credor.
2ª - Na verdade, durante o hiato temporal que pode ocorrer entre a sustação da execução comum e o momento temporalmente adequado para o credor reclamar na execução fiscal a garantia emergente da penhora que obteve - sendo certo que nesta a instância poderá permanecer suspensa por períodos prolongados e indetermináveis - está o exequente privado de desencadear qualquer actuação processual tendente à efectivação da garantia patrimonial do seu crédito.
3ª - Tal restrição do direito de acesso aos tribunais - que decorreria da obrigatória e oficiosa sustação da execução comum, sem que se faculte ao exequente imediata intervenção principal na execução fiscal, cujos termos prosseguem - não é justificada pela específica natureza e necessidade de tutela dos créditos tributários, já que à Fazenda Nacional é lícito reclamar os seus direitos na execução comum, acautelando a hipótese de a venda dos bens duplamente penhorados acabar por preceder a venda à ordem da execução fiscal.'
A exequente veio também aos autos defender a confirmação do acórdão recorrido.
Cumpre apreciar e decidir.
II
1.1. - O artigo 871º do CPC, sob a epígrafe 'Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens', dispõe no seu nº 1:
'Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, sustar-se-á quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respectivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga; se a penhora estiver sujeita a registo, é por esta que a sua antiguidade se determina.'
O regime estabelecido neste preceito visa impedir que prossigam a sua normal tramitação, paralelamente, diferentes execuções em que hajam sido penhorados os mesmos bens, à ordem de diversos exequentes. Sustada a execução em que a penhora ocorreu posteriormente, o exequente pode reclamar o seu crédito na execução onde se realizou a primeira penhora, determinando-se a antiguidade pela ordem do respectivo registo, se a penhora estiver a este sujeita.
Nada impede que o credor vá reclamar o seu crédito a uma execução fiscal se, porventura, nesta teve lugar a penhora mais antiga - declarada que foi, nos termos do citado acórdão nº 451/95, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do nº 1 do artigo
300º do CPT.
1.2. - O juiz do processo, no caso sub judice, ao verificar que a penhora efectuada nos autos recaíra sobre bem imóvel já objecto de outras penhoras, com data anterior, ordenou a sustação da execução, em obediência ao comando da norma do nº 1 do artigo 871º do CPC.
Com efeito, consta dos autos que a penhora que neles teve lugar, resultante de conversão de hipoteca requerida pela C.G.D., é de 12 de Março de 1996, encontrando-se em vigor dois registos de penhora, ambos a favor da Fazenda Nacional, sendo um de 21 de Março de 1984 e outro de 21 de Março de 1994.
O Tribunal da Relação, no entanto, teve aquela norma por inaplicável, por inconstitucionalidade, convocando, para o efeito, o citado acórdão nº 451/95.
A identidade com a situação prevista nesse aresto não é, aliás, perfeita: ali só estava em causa a impenhorabilidade total e absoluta dos bens do executado penhorados em execução fiscal; agora, não se coloca a viabilidade de novas penhoras sobre o mesmo bem, antecedentemente penhorado em execução fiscal, mas equaciona-se, sim, a questão da sustação das execuções onde ocorram as penhoras mais recentes, sem prejuízo de os credores exequentes reclamarem os seus créditos na execução onde teve lugar a penhora primeiramente registada.
2.1. - Realizada segunda penhora, a sustação da respectiva execução é notificada ao exequente que tem o prazo de 15 dias para reclamar o seu crédito - que goza da preferência estabelecida pelo nº 1 do artigo 822º do Código Civil - na execução em que a penhora é mais antiga, passando a ter nela intervenção principal nas fases processuais subsequentes, nomeadamente no âmbito da venda, de acordo com o disposto nos artigos 885º, 886º-A, 893º e 904º, alínea a), do CPC, sendo certo que pode ainda impulsionar a execução em que interveio supervenientemente, no caso de extinção da instância, nos termos do preceituado no artigo 920º, nº 2, do mesmo Código.
Não se vê como é que este mecanismo colide, de algum modo, com o direito de acesso aos tribunais, a defesa dos direitos patrimoniais do credor comum, o dever de administrar justiça em tempo útil ou o de dirimir o conflito de interesses subjacente.
Na verdade, o procedimento a seguir é que passa a ser outro: a realização coerciva do crédito do exequente não ocorrerá nos próprios autos de execução que instaurou mas é obtida, por via da intervenção principal, na execução para cobrança de crédito cuja garantia real é prioritária.
2.2. - É certo, no entanto, que, perante uma execução fiscal, a disciplina a seguir sofre alteração: as normas do Código de Processo Tributário vigentes na matéria, assentes no pressuposto da impenhorabilidade dos bens já penhorados em execução fiscal, que o nº 1 do artigo 300º desse Código, pressupunha - norma objecto de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral - obstam a que o exequente comum reclame o seu crédito na execução fiscal antes de nesta se efectuar a venda dos bens penhorados, dado o disposto nos artigos 321º e 329º deste último diploma legal, sem deixar de se ter em conta ser possível a execução fiscal ficar suspensa nos casos contemplados nos artigos 255º a 258º ou sujeita a pagamento em prestações das dívidas exequentes, nos termos do artigo 109º, nº 2, 259º a 267º, 279º a 283º e
294º, não podendo a penhora ser levantada qualquer que seja o tempo por que se mantiver parada a execução fiscal (artigo 317º, todos estes preceitos do mesmo Código) - pagamento a prestações, aliás, hoje também previsto no processo executivo comum, se bem que em diferentes moldes, de acordo com o disposto no nº
1 do artigo 882º do CPC.
Não se crê, que por via da norma em sindicância, ainda que na sua conjugação com as normas citadas no Código de Processo Tributário, se depare ao credor a inviabilidade de conseguir a satisfação do seu crédito ou que, pelo menos, esta se represente de forma excessivamente onerosa, de modo a poder qualificar-se de desproporcionada, como tal passível de censura jurídico-constitucional.
A este propósito, ponderou-se recentemente neste Tribunal, no acórdão nº 51/99, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Abril último :
'Não pode dizer-se que, por força do mecanismo legal previsto no normativo em apreço, a posição do credor saia prejudicada ou seja para ele mais difícil a cobrança do seu crédito, tanto mais que a dívida não é estática, procedendo-se à contagem dos respectivos juros, que obviamente revertem a favor do credor. Por outro lado, o credor pode sempre impulsionar a execução sustada ao abrigo do artigo 871º do CPC nomeando à penhora outros bens do devedor, se os houver, podendo, igualmente, acordar com o devedor o pagamento da dívida exequenda em prestações, nos termos do artigo 882º do Código de Processo Civil, forma de pagamento inovadora instituída pelo Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12.12 e pelo Decreto-Lei nº. 180/96, de 25.09. Não resulta do regime previsto no citado artigo 871º do Código de Processo Civil nenhuma diminuição (afectação) da garantia do direito do credor à satisfação do seu crédito, garantia constitucional que é abrangida pelo direito de propriedade previsto no artigo 62º da Lei Fundamental. Poder-se-á, todavia, questionar se o sacrifício exigido ao credor que viu a execução sustada por força do mecanismo legal previsto no artigo 871º do Código de Processo Civil é ou não excessivo, violando-se o princípio da proporcionalidade, nos casos de a penhora anterior ser uma penhora ordenada e efectuada em execução fiscal. Pelo já exposto, nomeadamente no que tange à imutabilidade da natureza e da garantia do crédito por intervenção do artigo 871º do Código de Processo Civil, entendemos que tal sacrifício não é excessivo, já que estão previstos mecanismos processuais para o credor impulsionar a execução e obter a mais célere satisfação do seu crédito, mas ainda porque há que não esquecer que a tramitação própria para cobrança das dívidas ao Estado, com dilatados prazos que possibilitam o pagamento em prestações, tem em conta os relevantes interesses públicos em jogo, não se podendo 'estranhar' que o legislador tutele mais fortemente os direitos do Estado. Como Casalta Nabais refere in Contratos Fiscais/Reflexões acerca da sua admissibilidade, Coimbra, 1994, pág. 278, o processo executivo tributário que permite obter uma cobrança fácil e oportuna dos créditos do Estado intenta assegurar o interesse público, no caso o interesse fiscal, 'vital para a colectividade, já que só a sua satisfação torna possível o regular funcionamento dos serviços públicos'. Essencialmente preservada a garantia do crédito, não pode dizer-se que as vicissitudes da execução fiscal – a que o exequente comum se sujeita – sejam de tal forma gravosas que, num quadro de necessária ponderação do interesse público em jogo naquela execução, afectem de forma desproporcionada tal garantia. Não é por força do disposto no nº. 1 do artigo 871º do Código de Processo Civil
(ainda que conjugado com as normas constantes v.g. dos artigos 317º; 321º; 329º e ss; 279º e ss. do Código de Processo Tributário) que o credor fica impossibilitado de conseguir a satisfação do crédito, ou que essa satisfação se torna desproporcionadamente mais difícil ou onerosa, tanto mais, como já se disse, existindo mecanismos processuais ao dispor do credor e dependentes do seu exclusivo impulso para obter, por outras vias, o pretendido ressarcimento. Em nada fica impedido o funcionamento do concurso e graduação dos credores, assegurando-se ao credor formas/mecanismos processuais adequados que respeitem o núcleo essencial do direito de propriedade.'
As considerações expendidas no acórdão parcialmente transcrito, independentemente de perspectivadas em primeira linha nos parâmetros de constitucionalidade então questionados - centrados na garantia do direito de propriedade - são transponíveis para a situação ora em apreço, a essa luz se entendendo deverem ser acolhidas.
Não há, assim, contrariamente ao que defende o recorrente, uma restrição excessiva e desproporcionada ao direito de acesso aos tribunais, destinado a obter, de forma eficaz e em tempo útil, a realização prática da garantia patrimonial do credor - nesta aplicação do regime normal de sustação, com fundamento na existência de anterior penhora dos mesmos bens à ordem de execução fiscal. Convém ter presente, aliás, que não há, propriamente, sustação da instância executiva, privando o exequente de desencadear qualquer actuação processual tendente à efectivação da garantia patrimonial do seu crédito, como, aliás, igualmente se salienta no citado acórdão nº 51/99: a execução é sustada, nos termos do nº 1 do artigo 871º do CPC, tão só na medida em que haja pluralidade de execução sobre os mesmos bens, ou seja, nada impede o seu prosseguimento relativamente a outros bens.
Neste sentido, note-se, tem vindo a pronunciar-se também a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como o ilustram, entre outros, os acórdãos ainda inéditos da sua 1ª Secção, de 31 de Março e 20 de Outubro de 1998, proferidos, respectivamente, nos processos nºs. 280/98 e
787/98.
Neste último, designadamente, após se sublinhar que a demora suportada pelo credor particular perante o regime de prestações admitido no processo fiscal - aliás, limitadamente - pode converter-se em benefício, porque a totalidade dos créditos dos credores particulares só será paga - em princípio - pelo facto de os fiscais terem sido pagos em prestações, observa-se que a não aplicação do disposto no artigo 871º, se fosse esse o caso, sempre implicaria que o Estado e entidades equiparadas reclamassem na execução comum os seus créditos, que, em regra, seriam pagos preferencialmente aos credores particulares.
Tão pouco se perfila violação ao disposto no artigo 205º da CR (hoje, artigo 202º), uma vez que não surpreende como, por este meio, possa estar vedada a dirimição dos conflitos de interesses, nem sequer no que respeita
à administração da justiça em tempo útil.
Resulta das considerações descritas não se julgar inconstitucional a norma do nº
1 do artigo 871º do CPC, no entendimento de que, ao referir-se à pendência de mais de uma execução sobre os mesmos bens abrange, também, nessa expressão, as execuções fiscais.
III
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida que deverá ser reformulada em consonância com o juízo de não inconstitucionalidade formulado.
Custas pela recorrida, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 5 de Maio de 1999- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida