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Processo nº 3/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- M... requereu, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, ao abrigo do nº 2 da Base XXIII da Lei nº 2118, de 3 de Abril de 1963, autorização para internamento compulsivo, em regime fechado, de A..., no hospital do Conde de Ferreira ou, eventualmente, noutro hospital psiquiátrico dependente do Ministério da Saúde.
Invocou, para o efeito, na sua qualidade de tia e curadora do requerido, a doença do foro psíquico que afecta este, a exigir o seu internamento em estabelecimento hospitalar como forma de o obrigar a ser medicamentado e melhorar a sua saúde, pois, devido à doença, pratica o mesmo distúrbios e agri de as pessoas, além de pedir dinheiro e o gastar incontroladamente.
O Senhor Juiz do 8º Juízo Cível do Porto, por despacho de 13 de Dezembro de 1994, declarou o Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da questão e ordenou o arquivamento dos autos.
Em seu entendimento, considerando o disposto na Base XXIV daquele diploma legal, o pedido de admissão para internamento em regime fechado deve ser dirigido ao Centro de Saúde Mental.
Inconformada, interpôs a requerente recurso para o Tribunal da Relação do Porto, defendendo que o internamento forçado para fins terapêuticos não deixa de constituir uma medida de segurança 'sui generis', privativa de liberdade, só tendo competência para a aplicar os tribunais cíveis, e argumentando que o processo legal de internamento compulsivo previsto naquela Base XXIV, na medida em que permite, administrativamente, o internamento forçado, ainda que para fins terapêuticos, viola a Constituição, nos seus artigos 27º, nºs. 1 e 2, 30º, nº 2, e 293º, nº 1.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 25 de Setembro de 1995, deu provimento ao agravo, declarando o tribunal cível o competente e ordenou o prosseguimento dos autos.
Para o efeito, 'desaplicou', por inconstitucionalidade, a mencionada Base XXIV da Lei nº 2118.
2.- O respectivo magistrado do Ministério Público competente interpôs, então, recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, 'na parte em que [o acórdão] deixou de aplicar a Base XXIV da Lei nº 2118, de 3 de Abril de 1963 (Lei de Saúde Mental) por a considerar revogada pelo artigo 290º, nº 2 (artigo 293º, nº 1 da Constituição de 1976), ao ofender princípios fundamentais nela consignados e, desde logo, o artigo 205º, nº 1 (princípio da soberania dos tribunais relativamente à administração da Justiça)'.
Recebido o recurso neste Tribunal, só o Ministério Público viria a alegar, concluindo do seguinte modo:
'1º- A medida de internamento em regime fechado do portador de anomalia psíquica, prevista na Base XXIV da Lei nº 2118, de 3 de Abril de 1963, tem natureza civil e finalidades essencialmente terapêuticas, visando facultar ao requerido o tratamento psiquiátrico adequado, cuja eficácia pressupõe o referido internamento em regime fechado.
2º- Tal medida implica limitação relevante de liberdade ambulatória do requerido, pelo que - não estando este em condições que lhe permitam prestar espontaneamente o seu consentimento quanto a tal restrição - deverá ser judicialmente suprida a impossibilidade de o prestar.
3º- Tal suprimento, a efectivar em sede de jurisdição voluntária, integra-se de pleno no âmbito da reserva da função jurisdicional, prevista no artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, atenta a circunstância de o internamento 'compulsório' em regime fechado afectar o núcleo essencial dos direitos e liberdades fundamentais do portador da anomalia psíquica.
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade normativa constante da decisão recorrida.'
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II
1.- Constitui objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade a norma contida na Base XXIV da Lei nº 2118, de
3 de Abril de 1963 (texto conhecido por Lei da saúde Mental), nos termos da qual:
'1.- O pedido de admissão para internamento em regime fechado será dirigido ao centro de saúde mental do domicílio do internando ou, na sua falta, ao da residência, excepto quando razões ponderosas, devidamente comprovadas, justifiquem a escolha doutro centro.
2.- Quando o pedido respeitar a estabelecimento oficial, o centro autorizará o internamento se o entender justificado, mas deverá submeter a sua decisão a confirmação do tribunal de comarca; quando o pedido respeitar a estabelecimento particular, o centro dará o seu parecer e, se este for favorável, remeterá o processo ao tribunal da comarca para concessão da necessária autorização.
3.- ------------------------------
4.- -----------------------------.'
Está, assim, em causa, a primeira parte do nº 2 deste preceito pelo que competiria ao Centro de Saúde Mental proferir primeiramente decisão sobre o internamento do requerido em regime fechado, incumbindo ao Tribunal, apenas, a eventual confirmação ou homologação da decisão administrativa proferida por aquele Centro.
Questiona-se se esse regime legal, anterior à Constituição de 1976, é compatível com os princípios e fundamentos desta lei fundamental.
A Relação qualificou o internamento como medida de segurança destinada a possibilitar o tratamento do requerido e a defender a comunidade de possíveis actos agressivos, importando perigosidade social, após o que, tomando em conta o princípio constitucional da reserva do juiz, consubstanciado no artigo 205º, nº 1, da CR, ponderou do seguinte modo:
'Partindo destes princípios para o caso dos autos conclui-se que a Base XXIV se encontra revogada nos termos do art. 290º nº 2 da C.R. ao estabelecer que o pedido de internamento para os doentes mentais em regime fechado será dirigido ao centro de saúde mental, acrescentando no nº 2 que quando o pedido respeitar a estabelecimento oficial, este deverá submeter a sua decisão à confirmação do tribunal da comarca e quando o internamento tenha lugar em estabelecimento particular o internamento carece de autorização do tribunal
No primeiro caso é de concluir que o tribunal exerce uma função tutelar, sendo a decisão do centro, o que brigaria com os princípios acima enunciados sobre a decisão quanto à liberdade das pessoas. Na segunda hipótese já a decisão é do tribunal, o que respeitaria o princípio de que compete ao juiz decidir sobre a liberdade.
Todavia, em ambos os casos a lei é omissa sobre a impugnação da autorização ou confirmação e decorre da lei que o processo seguiria os seus termos perante a autoridade administrativa (ver v.g., Base XXXIII) que instruiria o processo, limitando-se o juiz ao acto confirmativo ou de autorização. Ora, um tal procedimento não está de acordo com o nº 2 do art. 30 da C.República e não se adequa ao art. 1411 do C.P.Civil, na medida em que se permite ao tribunal nos processos de jurisdição voluntária alterar as medidas tomadas. Nos termos da Base XXIV o controle judicial ficaria limitado, depois do internamento, às questões que a autoridade administrativa lhe viesse a suscitar, o que contraria o poder-dever de controle que a Constituição pretende atribuir ao tribunal (ver, v.g., o nº 2 do artº 30).'
2.- No desenvolvimento lógico do acórdão, seguir-se-ia responder à questão enunciada.
No entanto, as circunstâncias que acompanharam o iter processual colocam, preliminarmente, o problema da utilidade do conhecimento do objecto do recurso.
Com efeito, na sequência de despacho do Desembargador relator, foi extraído traslado das peças processuais havidas por pertinentes e, a seguir, prosseguiram os trâmites relativos às diligências de internamento do requerido, o que viria a ser decretado por decisão judicial emanada do 8º Juízo Cível da Comarca do Porto, medida que, aliás, já cessou, segundo informa este Tribunal, tendo o requerido já obtido alta.
Ouvido sobre a utilidade do prosseguimento dos presentes autos, pronunciou-se o recorrente no sentido de lhe parecer não interessar a apreciação de mérito, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade.
E, com efeito, decorre da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que sempre que a decisão de mérito a proferir não produza qualquer efeito útil no processo, falta o pressuposto da existência de interesse processual, dando lugar, por inutilidade superveniente no conhecimento do recurso, à extinção da instância [alínea e) do artigo 287º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 69º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) - cfr., neste sentido, entre outros os acórdãos nºs. 192/91, publicado in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., págs. 291 e segs., 746/95, 306/96 e
913/96, inéditos).
O caso vertente, como decorre do anteriormente exposto, integra uma situação reconduzível a este enquadramento.
3.- Nestes termos, decide-se julgar extinto o recurso, por inutilidade superveniente.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 1998 Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa