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Processo n.º 239/14
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. propôs no Tribunal Judicial de Vale de Cambra ação declarativa (processo n.º 155/12.1TBVLC.P1, do 1.º Juízo), em que pediu que se reconheça que A. é seu pai.
Este contestou, alegando, além do mais, que o direito invocado pelo Autor caducou.
Foi proferido despacho saneador em 26 de junho de 2012 que julgou improcedente esta exceção, com fundamento em que o artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, ao fixar um prazo de 10 anos após a maioridade para a propositura das ações de investigação da paternidade é inconstitucional.
Interposto recurso desta decisão pelo Réu para o Tribunal da Relação do Porto, foi proferido acórdão em 9 de abril de 2013 que confirmou o decidido na 1.ª instância.
O Réu interpôs recurso desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão proferido em 14 de janeiro de 2014, julgou improcedente o recurso, com fundamento na inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação introduzida pelo artigo 1.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, ao prever, para as ações de investigação de paternidade, um prazo geral de caducidade de dez anos contados da maioridade do investigante.
O Ministério Público e o Réu interpuseram recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, tendo o primeiro pedido a fiscalização da constitucionalidade da norma do nº 1, al. a), do artº 1842º do C.C., na medida em que entende que o prazo fixado para a impugnação da paternidade presumida, e o segundo a norma cuja aplicação foi efetivamente recusada pela decisão recorrida.
Foi proferida decisão sumária com o seguinte sentido:
“a) não conhecer do recurso interposto pelo Ministério Público;
b) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação introduzida pelo artigo 1.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, ao prever, para as ações de investigação de paternidade, um prazo geral de caducidade de dez anos contados da maioridade do investigante.
c) julgar procedente o recurso interposto pelo Réu, determinando a reforma da decisão recorrida de acordo com o antecedente juízo de não inconstitucionalidade.”
As decisões contidas nas alíneas b) e c) foram proferidas com a seguinte fundamentação:
“Quanto ao recurso interposto pelo Réu, constata-se que a constitucionalidade desta norma já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional que, reunido em Plenário, decidiu não a julgar inconstitucional no Acórdão n.º 401/2011.
Não existindo qualquer dado que motive uma reponderação da decisão então tomada, por adesão aos seus fundamentos deve ser proferida decisão sumária de procedência do recurso interposto pelo Réu, nos termos permitidos pelo artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.”.
O Recorrido, A., reclamou desta decisão para a conferência, nos seguintes termos:
“1. Salvo o devido respeito não é este o entendimento do reclamante/recorrido.
2. O recorrido não concorda com os fundamentos em que se baseou a douta decisão.
3. A verdade é que a norma do art. 1817, n.º 1 do C. Civil, ao limitar a ação de investigação de paternidade à menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, constitui um atentado aos DIREITOS FUNDAMENTAIS consagrados na CRP, como o DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL E A CONSTITUIR FAMILIA, DIREITO À INTEGRIDADE PESSOAL E À NÃO DISCRIMINAÇÃO (ART.s 26º, 18º, N.º 3 e 36º, N.º 1).
4. O direito à identidade pessoal, assim, consagrado no art. 26º, n.º 1 da CRP, abrange, não apenas o direito ao nome mas, também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores e biológica dos próprios.
5. A procura da verdadeira paternidade biológica prende-se com um direito constitucionalmente garantido, o qual não pode, nem deve ser restringido, como resulta do art. 18º, n.º 2 da CRP.
6. Sendo o direito à identidade pessoal, um direito fundamental de aplicação direta, constitucionalmente consagrado - art. 18º da CRP, a sua valoração enquanto direito pessoal, fazem-no prevalecer sobre os prazos de caducidade para as ações de estabelecimento de filiação.
7. A natureza destes direitos não se compagina com critérios de restrição temporal, conforme refere o Ex.mo Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro, no seu voto vencido no Tribunal Constitucional no Acórdão 401/2011, acórdão este referido pelo Exmo. Conselheiro Relator, na sua decisão sumária, que nos remete aos seus fundamentos, aos quais adere.
8. Efetivamente o direito do investigante à descoberta da sua ascendência parental não pode ter 'entraves temporais' ao exerci cio do mesmo.
9. Reconhecendo que o direito ao apuramento da paternidade biológica é um direito fundamental à identidade pessoal, consagrado constitucionalmente na Constituição da República Portuguesa.
10. Deve, ser dada primazia ao direito fundamental da identidade pessoal e que este se mantenha e garanta pelo tempo de vida do investigante, não sujeito a qualquer prazo de caducidade.
11. Devemos considerar também um novo direito fundamental intrinsecamente relacionado com esta questão que é o direito ao desenvolvimento da personalidade (art. 26º da CRP), sendo o exercício do direito de investigar indispensável para a determinação das origens, família, e a localização no sistema de parentesco.
12. A jurisprudência e a doutrina não são unanimes quanto a esta questão, tendo respondido á mesma de forma diversa.
13. Ter-se-á em consideração que o referido Acórdão 401/2011, para quais fundamentos nos remetem o Ex.mo Conselheiro Relator, para fundamentar a decisão sumária, teve os votos favoráveis de seis Juízes Conselheiros, votando vencidos igualmente o mesmo número de seis Juízes Conselheiros, com o decorrente voto de qualidade do Ex.mo Juiz Presidente, razão pela qual se concluí pela 'manifesta ausência de consenso, no que à questão respeita' (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no presente Processo l55/12.1TBVlC-A.Pl).
14. Conforme refere este último Acórdão a tendência é para considerar como contrário ao texto constitucional qualquer limitação ao exercício de ação desta natureza.
15. Razão pela qual a norma do art. 817, n.º 1 do C. Civil, deve ser considerada materialmente inconstitucional, nesse sentido Ac. STJ 21.09.2010, Ac. STJ de 15.11.2011 e Ac. R.P de 23.11.2011, que ressalvam o facto de tal prazo ser 'restrição não justificada, desproporcional e não admissível do filho saber de quem descende'.
16. O prazo estabelecido para a propositura das ações de investigação de paternidade é inconstitucional, tal prazo não tem cabimento constitucional, porque cerceia de forma injustificada um direito individual, o direito à historia pessoal, cuja investigação nunca deve ser considerada tardia (conforme referem os Acórdãos do STJ de 08/06/2010 e de 27/01/2011).
17. No ensinamento de Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. CRP anotada, 4ª Ed.,
Vol. I, pag. 462), o direito à identidade pessoal, consagrado no art. 26º, n.º 1 da Constituição, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores constitui fundamento bastante para erigir um direito à investigação da paternidade.
18. O respeito pela verdade biológica e pela descoberta da sua real identidade pessoal aponta para a imprescritibilidade das ações de paternidade.
19. Aceitar - se a caducidade destas ações é aceitar-se normas que atentam contra a proteção dos direitos cidadão no que de mais pessoalíssimo têm, a dignidade de saber qual a sua ascendência biológica.
20. Conforme entendeu o STJ no Acórdão no presente Processo 155/12.1T8VlC-A.Pl.S1 (RVISTA EXCECIONAL) estamos perante uma questão de alto relevo pessoal, no domínio das relações pessoais e familiares e no de que há de mais intimo como o direito à identidade pessoal e à tranquilidade pessoal e familiar.
21. Conforme se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão no presente Processo 155/12.1T8VLC-A.P1, “O estabelecimento da paternidade pertence ao núcleo restrito dos direitos pessoalíssimos, enquanto direito a conhecer a respetiva ascendência e marca genética com relevantes reflexos sociais e históricos'.
22. Ora estando no domínio da matéria de tal relevância social é inequívoco que a norma do art. 1817º, n.º 1 do Código Civil, na redação introduzida pelo art. 1º da lei n.º 14/2009, de 1 de abril, aplicável por força do art.1873º do mesmo Código, ao precisar para as ações de investigação de paternidade, um prazo geral de caducidade de dez anos contados da maioridade do investigante, deve ser reponderada pela salvaguarda de princípios e direitos constitucionais.
23. Acentuado por vários Acórdãos as razões apontadas para a previsão do prazo limitativo de caducidade da ação de investigação de paternidade eram a segurança jurídica, envelhecimento das provas e a tese do 'caça fortunas', naturalmente, hoje, têm de ceder perante o desenvolvimento cientifico e social, onde o Direito à identidade pessoal e o direito à integridade pessoal, foram ganhando uma grande dimensão que não deve nem pode ser desvalorizada.
24. Os ditames da Segurança Jurídica e a proteção que nos é conferida pela Constituição da República Portuguesa ao direito fundamental da identidade pessoal, tendo em consideração a atual evolução do Direito, são de impor que se garanta a possibilidade do apuramento da verdade biológica pelo tempo de vida do investigante.
25. O apuramento da paternidade, dado o avanço cientifico, é realizado de forma a que não haja a intrusão na vida privada dos seus familiares.
26. Pelo que o direito fundamental do suposto pai, decorrente da reserva da intimidade da vida privada e familiar, deve ceder perante o direito de constituir família, o direito á identidade pessoal, direito à integridade pessoal e o direito à não discriminação.
27. A identidade pessoal, ao caracterizar cada pessoa como ser único e irrepetível que se diferencia de todos, derivando o direito fundamental ao reconhecimento da paternidade ou maternidade, têm de se sobrelevar a qualquer prazo que restrinja o direito a cada um conhecer as suas origens, de onde vem, quem são os seus ascendentes, quais as suas raízes culturais, geográficas e genéticas (Acórdão do STJ de 14/01/2014).
28. Fazendo ainda referência ao Acórdão do STJ, de 21/09/2010, deverá ser considerado que o direito à verdade biológica é igualmente um direito do próprio Estado, uma vez que a ordem pública, estatui no artigo 1602º do C.C., como impedimento dirimente absoluto o casamento entre duas pessoas parentes a linha reta ou no segundo grau da linha colateral.
29. Na modesta opinião do recorrido/reclamante, configura uma intolerável restrição do direito em violação dos preceitos constitucionais a interpretação feita na douta decisão Sumária.
30. A jurisprudência em que se abona a decisão está envaida de inconstitucionalidade por vedar ao recorrido o direito fundamental à identidade pessoal, nos termos do art. 26º, n.º 1 da CRP.
31. Uma vez que o artigo 80º, n.º 1 da LTC, prevê que as decisões do Tribunal Constitucional não têm força obrigatória geral, uma vez que só valem para o processo judicial em que são proferidas,
32. Reconhecer que existe divergência na Jurisprudência, até mesmo na Jurisprudência Constitucional, é na modesta opinião do reclamante, motivo para considerar que a douta decisão pode e deve ser motivo de reapreciação, atendendo ainda ao facto de terem decorrido cerca de três anos, desde que foi proferido o Acórdão 401/2011, a cujos fundamentos o Ex.mo Juiz Conselheiro Relator aderiu e remeteu a douta decisão sumária.
33. O Autor, aqui recorrido/reclamante, defende um direito próprio, à verdade biológica, em matéria de paternidade, um direito estruturante de personalidade, constitucionalmente consagrado.
34. Conforme se encontra consagrado no art. 26º, n.º 3 da CRP – “A LEI GARANTIRÁ A DIGNIDADE PESSOAL E A IDENTIDADE GENÉTICA DO SER HUMANO (...), considerando-se neste caso a identidade genética, a que é dada pela ascendência biológica, tratando-se de um direito de personalidade imprescritível.
35. O recorrido/reclamante considera-se prejudicado por haver uma violação clara dos ART.s 26º, n.º 1, 18º, N.ºs 2 e 3 e 36º, N.º 1 todos da CRP, que foram aplicados de forma redutora e limitativa, pela específica ilegalidade crítica e dogmática à fundamentação jurídica da questionada decisão-sumária.
36. 'O direito à identidade pessoal postula um princípio de verdade pessoal, ninguém deve ser obrigado a viver em discordância com aquilo que pessoalmente e identitarimente é' (crf. Jorge Miranda e Rui Medeiros - CRP anotada, Tomo I, 2ª Edição, 2010, pág. 609).
Nestes termos, requer a V.ª Ex.ª se digne a submeter à Conferência a douta decisão
Com o que se requer a reapreciação e ponderação da decisão reclamada, em face da Constituição Portuguesa.”
O Ministério Público e o Recorrente pronunciaram-se pelo indeferimento da reclamação.
*
Fundamentação
A questão de constitucionalidade objeto do presente recurso já foi decidida pelo Tribunal Constitucional, em Plenário, no Acórdão n.º 401/2011.
O Reclamante não invoca razões que não tenham sido ponderadas pelo Acórdão referido, pelo que não se justifica uma reponderação da questão, revelando-se justificada a prolação de decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, com remissão para os fundamentos do Acórdão n.º 401/2011.
Por esta razão deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de maio de 2014. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.