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Processo n.º 210/2013
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2ª Secção, do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, a título obrigatório, em cumprimento do artigo 280º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 70º, n.º 1, alínea a) e 72º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), de acórdão proferido, em conferência, pela 5ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, em 14 de janeiro de 2013 (fls. 91 a 110), que desaplicou a norma extraída do artigo 189º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico da Organização Tutelar de Menores, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de outubro, de acordo com a redação conferida pela Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto, quando interpretada no sentido de “não se definir qualquer base mínima da pensão social que possa ser afetada ao pagamento da prestação alimentar a filho menor, podendo, assim, permitir que, na sua aplicação concreta, se afronte diretamente o princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, com referência aos n.ºs 1 e 3, do artigo 63º da CRP” (fls. 115)
2. Notificado para o efeito, o recorrente produziu alegações, que ora se sintetizam, nos termos das quais expressa a sua discordância face ao Acórdão n.º 306/2005, proferido na 3ª Secção do Tribunal Constitucional, cuja fundamentação foi acolhida pela decisão recorrida:
«22º
Vejamos, então, os valores dos interesses conflituantes em presença, nos presentes autos.
O menor B., atualmente com 18 anos, viu ser-lhe atribuída uma pensão mensal de alimentos de € 65, devida, mas nunca paga, desde junho de 2010, sendo o valor global dos alimentos em falta de € 1.300 (cfr. supra nºs 1, 2 e 5 das presentes alegações).
A mãe do menor invocou o facto de viver “com extremas dificuldades financeiras, pois os seus rendimentos são inferiores ao salário mínimo nacional” e ser ela “quem tem de suportar todas as despesas da vida familiar”.
Nessa medida, “a prestação mensal de alimentos é essencial para a sobrevivência do menor” (cfr. supra nº 2 das presentes alegações).
23º
Por outras palavras, é a mãe do menor que suporta, presentemente, e em exclusivo, embora com “rendimentos inferiores ao salário mínimo nacional”, “todas as despesas da vida familiar”.
Sendo certo, por outro lado, que, como expressamente reconhecido pela jurisprudência constitucional atrás citada, há que, igualmente, reconhecer, em relação ao menor alimentando, a “dimensão negativa da garantia do mínimo de existência, isto é o reconhecimento de um direito a não ser privado do que se considera essencial à conservação de um rendimento indispensável a uma existência minimamente condigna”.
Garantia essa, tanto mais premente, quanto é certo, que o progenitor nunca efetuou o pagamento da pensão de alimentos a que se encontrava vinculado, não satisfazendo, pois, o “mínimo necessário a assegurar a autossobrevivência” do seu filho.
24º
Vejamos, agora, as responsabilidades e proventos do progenitor do menor.
Aufere, o mesmo progenitor (cfr. supra nºs 6 e 7 das presentes alegações), uma reforma por invalidez, ou uma pensão por velhice, de € 274, residindo num lar de idosos, onde paga mensalmente a quantia de € 198, suportando os seus filhos o pagamento de mais € 75.
Gasta, por outro lado, em medicamentos, cerca de € 46,97 por mês.
Não possui quaisquer bens móveis ou imóveis.
25º
Por decisão proferida em 1ª instância (cfr. supra nº 5 das presentes alegações), a digna magistrada judicial determinou, oportunamente, que o progenitor do menor pagasse a quantia de € 65 por mês, a título de alimentos, e mais um complemento de cerca de € 26, durante 50 meses, até perfazer o valor de € 1.300,00 das prestações alimentares já vencidas.
Ou seja, um valor total de 81 € por mês.
Por outras palavras, a pensão de alimentos e respetivo complemento representam cerca de € 29,56% do rendimento total auferido pelo progenitor do menor.
Ora, pergunta-se, se uma pensão de invalidez de € 274 é, indubitavelmente, diminuta, ofendendo a dignidade humana do seu beneficiário, como qualificar uma pensão de alimentos de cerca de um terço desse valor, que, aliás, nunca foi, sequer, paga?
Não deverá, neste caso, concluir-se, como no voto de vencido a que atrás se fez referência (cfr. supra nº 19 das presentes alegações)?
Sobretudo quando a jurisprudência deste Tribunal Constitucional não deixou, muito justamente, de destacar que, “do lado do progenitor inadimplente não está somente em causa satisfazer uma dívida, mas cumprir um dever que surge constitucionalmente autonomizado como dever fundamental e de cujo feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial. É o que diretamente resulta de no n.º 5 do artigo 36.º da Constituição se dispor que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”?
Para além de se dever ter em consideração o facto de o requerido dispor, apesar de tudo, do apoio financeiro dos seus (outros) filhos, enquanto o menor B. apenas conta com o apoio – aliás, muito diminuto, atendendo aos rendimentos desta - de sua mãe.
26º
Convirá atender, também, ao facto de as prestações sociais terem vindo a ser significativamente reduzidas pelo atual Governo - designadamente o rendimento social de reinserção, atualmente fixado em € 178,15 -, bem como acentuadamente restringidas as condições relativas à respetiva atribuição.
No entanto, e apesar disso, o remanescente da pensão, por velhice ou invalidez, concedida ao progenitor do menor, uma vez descontada a pensão de alimentos em que foi condenado, bem como o suplemento destinado a pagar os alimentos devidos ao seu filho desde 2010, é superior ao rendimento social de reinserção (€ 274 - € 81 = € 193).
27º
Por outro lado, o argumento, relativo à possível intervenção corretiva do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, embora teoricamente válido, terá de ter em devida conta a jurisprudência estabelecida, em Plenário, por este Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 400/11, de 22 de setembro, que concluiu pela não inconstitucionalidade da “norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, na interpretação de que a obrigação de o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as prestações a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor de alimentos, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão”.
Nessa medida, a intervenção do mesmo Fundo de Garantia, para além de não ser imediata, teria efeitos, apenas, para o futuro, não assegurando, designadamente, o pagamento das prestações de alimentos já vencidas, no valor, nos presentes autos, de € 1.300.
Quantia, essa, que, naturalmente, continuará a fazer bastante falta ao menor, filho do requerido, uma vez que tal quantia representa o valor de prestações não pagas ao longo dos últimos 3 anos.» (fls. 162 a 166)
3. Devidamente notificado para o efeito, o recorrido apresentou contra-alegações, das quais se extraem as seguintes conclusões:
«I. QUESTÃO PRÉVIA
a. Requerido e requerente regularam as responsabilidades parentais do menor B..
b. Da regulação das responsabilidades parentais resulta que, o requerido ficou judicialmente obrigado a prestar alimentos ao seu filho B., no valor de EUR. 65,00 mensais.
c. Foi intentada por apenso ao processo principal ação de incumprimento das responsabilidades parentais contra o requerido por falta de pagamento da referida prestação de alimentos.
d. O douto Tribunal Judicial de Lousada determinou o desconto na pensão de invalidez que o requerente aufere (EUR 274,00), do valor de EUR 65,00 mensais a título de pensão de alimentos e do valor de EUR 26,00 mensais para descontar no montante em dívida referente às prestações de alimentos por cumprir.
e. Sucede que, o até então menor B., filho do requerido, atingiu a maioridade no dia 30 de março de 2013.
f. Ora nos termos do art 1877º do C.C., os filhos estão sujeitos às responsabilidades parentais até à maioridade ou emancipação.
g. Significa este preceito que com a maioridade cessam as responsabilidades parentais, ou seja, cessa a obrigação de prestar alimentos ao filho que atingiu a maioridade.
h. Cabe ainda referir que nos termos do art. 1880º do C.C. a obrigação de prestar alimentos mantem-se ao filho que atingiu a maioridade ou for emancipado, quando este não houver completado a sua formação, e na medida do que seja razoável e pelo tempo normalmente necessário para completar a formação.
i. Contudo, a obrigação de prestar alimentos embora mantenha-se para completar a formação, esta cessa automaticamente por efeito da maioridade, cabendo ao filho agora maior requerer, em ação própria, a continuação da prestação de alimentos, caso necessite de completar a sua formação.
j. Além do mais, o maior não se encontra a estudar.
k. Razão pela qual cessou a obrigação legal do recorrido prestar alimentos ao seu filho já maior
l. Neste sentido, surgem vários acórdãos da jurisprudência portuguesa, que é dominante neste aspeto.
m. Entre os mais, floresce o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.02.2008, bem como o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.09.2011, o qual refere que...”.com a maioridade (aos 18 anos) ou a emancipação (pelo casamento) o filho fica habilitado a reger a sua pessoa e a dispor dos seus bens (…), cessando o poder paternal e os deveres que integram o seu conteúdo; se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, a obrigação de alimentos manter-se-á (...) mas tem de ser fixada na ação prevista no artº 1412º do CPC, mediante alegação e prova dos pressupostos constantes do art 1880º: (a) não ter o requerente completado a sua formação profissional no momento da emancipação ou maioridade, (b) ser razoável exigir dos pais o seu cumprimento e (c) definição do tempo normalmente requerido para complemento da formação”.
n. Assim sendo, dúvidas não restam que a obrigação de prestar alimentos a B. cessou desde o dia 30 de março de 2013, ou seja, desde que o mesmo atingiu a sua maioridade.
o. Isto porque, e subsidiariamente, mesmo a não entender-se que -a obrigação de prestar a1imentos cessou automaticamente por efeito da maioridade de B., não se encontram preenchidos os requisitos do art. 1880º do C.C., uma vez que B. já não se encontra a frequentar qualquer estabelecimento de ensino e, por isso, não necessita de completar a sua formação.
p. Pelo que, o presente recurso deverá ser considerado inútil na parte da obrigação de pagar alimentos, na medida em esta obrigação cessou em 30 de março de 2013, data em que o menor atingiu a maioridade.
Os Factos:
q. Decidiu o douto Tribunal da Relação do Porto que a norma do art. 189º nº 1 al. c) da OTM, por não definir qualquer base mínima da pensão social que possa ser afetada, pode, na sua aplicação concreta, afrontar diretamente a dignidade da pessoa humana, com tutela constitucional.
r. Julgou procedente a apelação, e ordenou o cancelamento dos descontos no rendimento do recorrido.
s. Está em causa a dignidade da pessoa humana.
t. O recorrido aufere um parco rendimento, que é canalizado para o pagamento da despesa com o Lar de Idosos onde reside, e onde lhe são prestados todos os cuidados de saúde e higiene, atenta a idade avançada do mesmo.
u. Têm sido os seus filhos maiores que têm prestado auxílio monetário para permitir a sua manutenção no Lar de Idosos.
v. O filho já maior não se encontra a estudar, nem a trabalhar, possuindo capacidade para o trabalho, pelo que pode e deve contribuir para a sua própria subsistência.
w. Não somos da opinião que se deva sacrificar o direito do recorrido em favor do menor, apenas porque é menor, violando-se o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
bb. 20. O recorrido não conseguiu nem consegue satisfazer o mínimo necessário a assegurar a autossobrevivência do seu filho, porque efetivamente os seus rendimentos não são suficientes para sequer satisfazer a sua autossobrevivência.
cc. Mantendo-se a dedução no seu rendimento, o que só por mero dever de patrocínio se concebe, o recorrido vê-se obrigado a sair do Lar de Idosos, na medida em que não possui mecanismos para recorrer e aumentar o seu rendimento.
dd. O recorrido nunca pretendeu eximir-se das suas responsabilidades, e tal encontra-se verificado abundantemente nos autos principais, apenas não cumpriu por não possuir meios económicos para tal.
ee. Pelo que, a decisão recorrida deverá manter-se, pois caso contrário estaríamos a colocar em causa a dignidade de uma pessoa.» (fls. 172 a 173-verso)
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Para boa decisão da causa, importa frisar que se encontra dado como provado, no âmbito dos autos recorridos, o seguinte:
a) O recorrente aufere 274 €/mensais, a título de pensão de invalidez;
b) A pensão de alimentos cujo pagamento lhe foi jurisdicionalmente fixado corresponde a 91 €/mensais, correspondendo 65 € à pensão mensal devida e 26 €/mensais, a título de complemento, durante 50 meses, até pagamento dos montantes entretanto em dívida;
c) Após o pagamento mensal da pensão de alimentos (nela incluída o complemento), o recorrente passaria a dispor de 183 €/mensais;
d) O recorrente tem gastos mensais de 198 €, com o lar de idosos onde reside (suportando os restantes filhos os remanescentes 75 €), e de cerca de 50 €/mensais, com despesas em medicamentos.
e) O montante do rendimento social de inserção considerado, à data de prolação da decisão recorrida, era de 189,52 € (vide fls. 108, 3º parágrafo), que correspondia a 45,208% do valor do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), por força do artigo 31º da Portaria n.º 257/2012, de 27 de agosto, que regulamentou a Lei n.º 13/2003, de 21 de maio, tal como alterada pelo Decreto-Lei n.º 133/2012, de 27 de junho.
5. A norma cuja inconstitucionalidade se aprecia, nos presentes autos, consta do artigo 189º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico da Organização Tutelar de Menores, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de outubro, de acordo com a redação conferida pela Lei n.º 32/2003, de 22 de agosto, que estabelece o seguinte:
«Artigo 189.º
(Meios de tornar efetiva a prestação de alimentos)
1 – Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida dentro de dez dias depois do vencimento, observar-se-á o seguinte:
a) (…)
b) (…)
c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução será feita nesses prestações, quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários.
(…)»
A discussão acerca da intocabilidade de rendimentos decorrentes do recebimento de pensões sociais tem girado em torno da impenhorabilidade parcial de tais rendimentos, por força da aplicação do “princípio da dignidade da pessoa humana” (cfr. artigo 1º da CRP). Nesse sentido, o Tribunal Constitucional já entendeu serem impenhoráveis as pensões sociais que não excedam o salário mínimo nacional (cfr. Acórdão n.º 177/2002, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos) ou que não excedam o rendimento social de inserção (cfr. Acórdãos n.º 66/2002 e n.º 509/2002, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).
Esta orientação foi estendida aos rendimentos do trabalho, inviabilizando a penhora que conduzir à privação da disponibilidade do rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional, quando o devedor não for titular de outros bens ou rendimentos suscetíveis de penhora (cfr. Acórdão nº 96/04, www.tribunalconstitucional.pt).
Especificamente sobre a questão em apreço, o Tribunal Constitucional também já notou que quando estão em causa obrigações alimentares, o direito do filho menor em assegurar uma existência condiga pode pôr em causa o “direito fundamental a uma existência condigna” do progenitor quando este dispõe de uma concreta pensão social abaixo do rendimento social de inserção. Ou seja, os direitos do filho menor podem entrar em colisão com os direitos fundamentais do progenitor. Assim, «o princípio da essencial dignidade da pessoa humana [impõe que tenha] de ser salvaguardado relativamente a todas as pessoas envolvidas, procurando-se a concordância prática dos respetivos direitos» (vide Acórdão n.º 312/2007, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).
Ora, em pleno juízo acerca dessa concordância prática, a decisão recorrida entendeu abraçar o entendimento já expresso pelo Acórdão n.º 306/2005 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), nos termos do qual foi entendido que:
«6. Nesta situação não bastará, porque não seria adequado à repartição dos “custos do conflito” tal como ele, no plano constitucionalmente relevante, se apresenta perante a norma em apreciação, proceder à simples transposição da ponderação que foi feita e sumariamente se expôs quando estava em causa a satisfação de uma dívida indiferenciada. E não é adequado porque o elemento constitucional que aí foi decisivo (o princípio da dignidade da pessoa humana) não pode aqui ser lançado a um só prato da balança, uma vez que a insatisfação do direito a alimentos atinge diretamente as condições de vida do alimentando e, ao menos no caso das crianças, comporta o risco de pôr em causa, sem que o titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida, pelo menos o direito a uma vida digna.
O dever de alimentos a cargo dos progenitores, um dos componentes em que se desdobra o dever de assistência dos pais para com os filhos menores, não pode reduzir-se a uma mera obrigação pecuniária, quando se trata de ponderação de constitucionalidade dos meios ordenados a tornar efetivo o seu cumprimento. Ainda que se conceba o vínculo de alimentos como estruturalmente obrigacional, a natureza familiar (a sua génese e a sua função no âmbito da relação de família) marca o seu regime em múltiplos aspetos (v.gr. tornando o direito correspondente indisponível, intransmissível, impenhorável e imprescritível – cf. maxime o artigo 2008.º do Código Civil).
Mesmo quando já tenha sido objeto de acertamento judicial, isto é, quando corporizado, para o pai que não tem a guarda, numa condenação a uma prestação pecuniária de montante e data de vencimento determinados, do lado do progenitor inadimplente não está somente em causa satisfazer uma dívida, mas cumprir um dever que surge constitucionalmente autonomizado como dever fundamental e de cujo feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial. É o que diretamente resulta de no n.º 5 do artigo 36.º da Constituição se dispor que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.
(…)
Não é, portanto, pela perspetiva da garantia contida no artigo 62.º da Constituição, aplicável aos direitos de crédito, que a posição do filho, credor da prestação de alimentos, deve ser observada no momento da compatibilização prática com a salvaguarda do princípio da dignidade da pessoa do progenitor afetado pela dedução no seu rendimento periódico para realização coativa do direito daquele.
(…)
Deste modo, o critério de determinação da parcela do rendimento do progenitor que não pode ser afetado ao pagamento coativo da prestação de alimentos devidos ao filho não pode alcançar-se por equiparação ao montante do salário mínimo nacional, montante este que pode servir de referencial quando os “custos do conflito” se hão de repartir, em sede constitucional, entre a preservação de um nível de subsistência condigna do devedor e a garantia do credor à satisfação do seu crédito, tutelada pelo artigo 62.º, n.º 1 da Constituição, mas não quando entram em colisão o dever e o direito correlativo de manutenção dos filhos pelos progenitores, situação em que, de qualquer dos lados, fica em crise o princípio da dignidade da pessoa humana, vetor axiológico estrutural da própria Constituição. De um modo ainda aproximativo, pode reter-se a ideia geral de que, até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimento do que o requerido para providenciar às suas necessidades de autossobrevivência.
7. Porém, não basta concluir que o critério do salário mínimo nacional – na designação atual, retribuição mínima mensal garantida (artigo 266.º do Código do Trabalho) – é imprestável como referencial de isenção de penhorabilidade em casos deste género, para obter resposta à questão de constitucionalidade colocada. Efetivamente, com isso admite-se que não ofende a Constituição operar a dedução forçada, para satisfação da prestação alimentar a favor do filho menor, em rendimento do progenitor que não ultrapasse o correspondente ao valor daquela retribuição mínima, mas continua por resolver o problema concretamente colocado de saber se e a que nível deve considerar-se constitucionalmente vedada essa dedução em pensão social de invalidez do devedor de alimentos.
Para isso, há que ter presente, como se afirmou no acórdão n.º 509/02 (Diário da República, I Série-A, de 12 de fevereiro de 2003), que “este Tribunal, na esteira da Comissão Constitucional (cfr. Acórdão nº 479, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 327, junho de 1983, págs. 424 e segs.), tem vindo a reconhecer, embora de forma indireta [no acórdão de que esta transcrição é feita esse reconhecimento é direto, fundando o julgamento de inconstitucionalidade a que se chegou], a garantia do direito a uma sobrevivência minimamente condigna ou a um mínimo de sobrevivência”. No caso, a vertente que pode ser posta em causa pelo não reconhecimento de um montante mínimo imune à dedução forçada, aliás como nos demais em que estava em causa a constitucionalidade da penhora de pensões ou salários, é a chamada dimensão negativa da garantia do mínimo de existência, isto é o reconhecimento de um direito a não ser privado do que se considera essencial à conservação de um rendimento indispensável a uma existência minimamente condigna. E, por outro lado, moderando a premência do lado do alimentando, há que levar em conta que a impossibilidade de realização coativa da prestação desencadeia a intervenção de prestações públicas que se filiam na tarefa do Estado de proteção à infância (artigo 69.ºda Constituição), nomeadamente a do “Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores”, criado pela Lei n.º 75/98, de 19 de novembro e regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, que assegura o pagamento em substituição do progenitor de quem não foi possível obter a prestação através dos meios previstos no artigo 189.º da OTM, embora em montante não necessariamente coincidente com a da prestação em falta.
(…)
8. Assim enquadrada a questão, pode voltar-se ao concreto juízo de desaplicação contido na decisão recorrida.
Considerou-se nesta decisão que o requerido, toxicodependente, de paradeiro desconhecido e não exercendo qualquer atividade remunerada, não tem outros proventos conhecidos além da pensão social de invalidez no montante de €189,54, de modo que, mesmo a adjudicação do necessário ao pagamento das prestações vincendas – €75 mensais, menos portanto do que a dedução pretendida de €100 (€75 + €25) que se fosse deferida deixaria o rendimento remanescente reduzido a €89,54 –, colocaria em eminente risco a sua subsistência. De modo que a norma da alínea c) do n.º1 do artigo 189.ºda OTM, interpretada no sentido de, não definindo qualquer montante mínimo isento, impor tal dedução, seria inconstitucional, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, contido no artigo 1º da Constituição. Na verdade, mesmo na hipótese implícita na ponderação do tribunal a quo de limitação da dedução às prestações vincendas, o requerido ficaria com um rendimento remanescente de €114,54, ainda claramente inferior ao valor do rendimento social de inserção, que no subsistema de solidariedade social se assume como o mínimo dos mínimos compatível com a dignidade da pessoa humana.
Consequentemente, tendo presente o que anteriormente se disse sobre o que identifica e o que distingue a norma apreciada das hipóteses sobre que recaiu a jurisprudência formada a propósito do artigo 824.º do Código de Processo Civil, o juízo de inconstitucionalidade contido na decisão recorrida, que levou à desaplicação da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º da OTM, merece confirmação.»
Partindo, então, do pressuposto de que o progenitor obrigado a alimentos não pode ser privado de qualquer quantitativo que não exceda o valor do rendimento social de inserção – tal como se verifica nos presentes autos – no momento em que foi proferida a decisão recorrida – momento relevante para a ponderação dos direitos em causa, acolhe-se o entendimento preconizado pelo Acórdão acabado de mencionar, considerando-se assim feita a devida ponderação entre os direitos fundamentais conflituantes do recorrido e do respetivo filho menor. A afetação do “direito fundamental a uma existência condigna” do filho menor não se apresenta como desproporcionada, na medida em que nem a sua sobrevivência pode ser (juridicamente) obtida à custa da sobrevivência do seu progenitor, nem tão pouco aquele fica desprovido de mecanismos alternativos tendentes a acautelar a sua subsistência. Isto porque o “direito fundamental a uma existência condigna” do filho menor pode ser acautelado por via do mecanismo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
Com efeito, tal como já fez o Acórdão n.º 306/2005, importa reafirmar que o “direito fundamental a uma existência condigna”, de que o filho menor beneficia, se encontra suficientemente garantido pelo mecanismo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, criado pela Lei n.º 75/98, de 19 de novembro e regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, que assegura o pagamento, em substituição do progenitor incumbido do dever de prestação de alimentos inadimplente, de quem não foi possível obter a prestação através dos meios previstos no artigo 189º do Regime Jurídico da Organização Tutelar de Menores, ainda que esse montante possa não coincidir, integralmente, com o da prestação em falta. Ora, ao contrário da argumentação então esgrimida pelos vencidos, no âmbito do Acórdão n.º 306/2005, no caso em apreço, nem sequer subsiste o risco de o filho menor não beneficiar do mecanismo do Fundo de Garantia, por ter rendimentos líquidos superiores ao salário mínimo nacional. Com efeito, encontra-se alegado pela mãe do menor (cfr. fls. 5, § 6º) – e admitido pelo recorrido, por falta de impugnação – que aquela aufere rendimentos inferiores ao salário mínimo nacional, pelo que o “direito fundamental à existência condigna” do filho menor se encontra devidamente acautelado pelo mecanismo do Fundo de Garantia.
A argumentação do Ministério Público acerca da insuficiência da proteção conferida por aquele mecanismo – fundada na decisão de não inconstitucionalidade do artigo 4º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, proferida pelo Acórdão n.º 400/2011, do Plenário do Tribunal Constitucional, quando interpretado no sentido de que a substituição do dever de alimentos, pelo Fundo, só opera com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação – não abala, na sua essência, o sentido da presente decisão. Isto porque naquele Acórdão a questão de constitucionalidade que estava em causa, embora tivesse alguma relação com a que atualmente se decide, era outra, a saber, a “inconstitucionalidade da norma constante do n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de maio, na interpretação segundo a qual a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores consistente em assegurar as pensões de alimentos a menor, judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do Tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão”.
Assim sendo, mais não resta do que corroborar a decisão recorrida, concluindo pela inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 189º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico da Organização Tutelar de Menores, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de outubro, de acordo com a redação conferida pela Lei n.º 32/2003, de 22 de agosto, quando interpretada no sentido de não se ter em consideração qualquer base mínima da pensão social que possa ser afetada ao pagamento da prestação alimentar a filho menor, por pôr em causa o direito fundamento à existência condigna de que beneficia o recorrido.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 189º, n.º 1, alínea c), do Regime Jurídico da Organização Tutelar de Menores, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de outubro, de acordo com a redação conferida pela Lei n.º 32/2003, de 22 de agosto, quando interpretada no sentido de não se ter em consideração qualquer base mínima da pensão social que possa ser afetada ao pagamento da prestação de alimentos a filho menor, na medida em que prive o obrigado à prestação de alimentos do mínimo indispensável à sua sobrevivência, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, tal como previsto no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa;
E, em consequência:
b) Negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 7 de maio de 2014. – Ana Guerra Martins – Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano – Pedro Machete (vencido conforme a declaração em anexo) - Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO
Votei vencido, porque, na linha do decidido nos Acórdãos n.os 306/2005 e 312/2007, o artigo 189.º, n.º 1, alínea c), da Organização Tutelar de Menores (OTM) não é inconstitucional, se interpretado no sentido de permitir a dedução, para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez do progenitor que não prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades de sobrevivência, o qual deve ser aferido em função do valor da garantia constitucional do mínimo de existência. Correspondendo o rendimento social de inserção (RSI) à realização, na sua dimensão positiva, da citada garantia constitucional, afigura-se-me ser esse o valor do rendimento que deverá considerar-se como correspondendo ao mínimo necessário a assegurar a autossobrevivência do devedor, quando esteja em causa a realização coativa da prestação alimentar em que o progenitor tenha sido condenado para com os filhos menores. Com efeito, estando em causa uma colisão de direitos, a mesma deve ser resolvida mediante critérios objetivos, apresentando-se o RSI, dado o seu alcance jurídico-constitucional, como o único referencial objetivo do rendimento intangível adequado ao balanceamento dos interesses em conflito.
Deste modo, teria concedido provimento ao recurso e determinado a reforma da decisão recorrida de acordo com a citada interpretação conforme do artigo 189.º, n.º 1, alínea c), da OTM, ao abrigo do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
Pedro Machete