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Processo n.º 851/11
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
(Conselheira Maria Lúcia Amaral)
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e são recorridas A., S.A., e B., S. A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão do Tribunal Arbitral (ACL/Centro de Arbitragem Comercial) de 14 de outubro de 2011.
2. Nos autos de processo arbitral n.º 24/2010/AHC/AVS, em que é demandante “A., S.A.” e demandada “B., S.A.”, foi proferido acórdão, em 14 de outubro de 2011, pelo qual se decidiu «recusar a aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, das normas da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, por violação do princípio da segurança jurídica e do princípio da proteção da confiança legítima, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático, a que se refere o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa»; e, em consequência, «julgar improcedente o pedido, formulado pela Demandante, de anulação do «Aditamento» ao Contrato de Concessão do Direito de Exploração em Regime de Serviço Público do Terminal de Contentores de Alcântara, celebrado em 21 de outubro de 2008, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 188/2008, de 23 de setembro, entre a Demandante A., S. A., e a Demandada B., S.A., partes do mesmo Contrato». Decidiu-se, ainda, «não conhecer do pedido reconvencional da Demandada, por o mesmo haver ficado prejudicado pela improcedência do pedido inicial da Demandante».
A fundamentação da decisão recorrida, no que se refere à recusa de aplicação das normas da Lei n.º 14/2010, é a seguinte:
«38. Resta, assim, analisar esse outro fundamento, invocado pela Demandada, da inconstitucionalidade da Lei nº 14/2010: o de que ela viola o princípio da segurança jurídica e o princípio da proteção da confiança legítima, que é una específica dimensão ou um específico corolário do primeiro, ínsitos na ideia de Estado-de-direito.
a) Alega a Demandada que a emissão da Lei nº 14/2010 se traduziu – com a consequente violação desse princípio – na frustração ilegítima de uma sua expectativa, inteiramente fundada, na manutenção de uma determinada situação jurídica. Aduz, mais especificamente, a tal respeito, e em resumo: – que essa expectativa não podia deixar de haver-lhe sido criada por todo o iter que culminou na celebração do «Aditamento» e pelas posições nele adotadas pela Concedente, pela Administração e pelo Governo; – que para ela, Demandada, se gerou, assim, uma situação de «confiança» na manutenção da situação criada, «confiança», de resto, não apenas «substancial», mas formalizada em termos contratuais; – que passou a agir em conformidade com essa fundada expectativa, havendo realizado avultados investimentos, no cumprimento das suas obrigações contratuais; – que a solidez de tal expectativa não podia ter sido abalada pela iniciativa da apreciação parlamentar do Decreto-Lei nº 188/2008, iniciativa, aliás, sem consequências quanto à vigência desse diploma; – que não podia prever, de modo algum, a superveniência da Lei nº 14/2010; – e que não se mostra que a esta se encontre subjacente um interesse público relevante, suscetível de prevalecer sobre a expectativa fundada e legítima da Demandada.
b) Pois bem: é ponto indiscutido e indiscutível que, entre as decorrências da ideia ou da conceção normativa do Estado-de-direito, vão os princípios da segurança jurídica e da confiança – os quais se traduzem (para usar uma, de entre as múltiplas formulações doutrinais que encontram), desde logo, «na fiabilidade (credibilidade), calculabilidade (previsibilidade) e cognoscibilidade» do direito, mas, depois, também na exigência de «previsibilidade e calculabilidade da atuação estadual» e de «transparência dos atos dos poderes públicos, designadamente os suscetíveis de afetarem negativamente os particulares».
É usual falar, a esse respeito, de uma vertente «objetiva» do princípio (a primeira), que se exprime mais propriamente no princípio da «segurança jurídica», e de uma vertente «subjetiva» (a segunda), que se traduzirá justamente no princípio da «confiança» – da garantia da confiança dos particulares nas regras jurídicas com base nas quais ordenam a sua vida e nos efeitos jurídicos, produzidos pelos poderes públicos, que lhes digam respeito.
As exigências destes princípios projetam-se desde logo sobre a Administração pública, adstrita a atuar segundo, inter alia, um princípio de boa-fé (como, entre nós, a Constituição expressamente proclama: artigo 266º, nº 2); mas estendem-se ao próprio legislador – ao qual também não será consentido que opere toda e qualquer mudança do ordenamento, independentemente do seu grau de previsibilidade, da extensão dos efeitos temporais de que se revista e da intensidade com que afete a situação jurídica ou a razoável expectativa dos respetivos destinatários.
No tocante ao legislador, porém, há-de esta exigência (decorrente da conceção do Estado de direito) compaginar-se com outro princípio (este ligado ou mais ligado – diz-se – à conceção do Estado democrático), qual o da «revisibilidade» da lei. Decerto: não pode toda e qualquer expectativa da comunidade jurídica em geral, ou dos membros dela que vão ser diretamente afetados, constituir obstáculo à alteração da ordem jurídica exigida pelo interesse público, ou pela nova avaliação que dele faz o legislador (o legislador democrático). Há aí, pois, uma «ponderação» a fazer, mas há, de todo o modo, limites – sob pena da subversão da «estadualidade de direito».
Uma indicação desses limites encontra-se logo no princípio geral (e «comum às nações civilizadas») da «não retroatividade» das leis (artigo 12º do Código Civil) – princípio que, se não assume o carácter de uma vinculação constitucional, salvo em medida parcelar (artigos 18º, nº 3, e 29º, nº 1, e 103º, nº 3, da Constituição), não deixa de se traduzir justamente no primeiro dos instrumentos da «ponderação» a que acabou de aludir-se – e um instrumento a que não pode negar-se, senão um determinante significado hermenêutico, seguramente um relevante valor heurístico, mesmo no plano constitucional e fora das situações neste contempladas especificamente. Mas não será esse o único limite – pois bem podem ocorrer situações que, ficando embora aquém da «retroatividade», ou seja (e de acordo com uma qualificação hoje muito comum) situações de simples «retrospetividade», que se justifique acautelar (é dizer, impedir) em nome do princípio da confiança.
c) Este sentido, este significado e este alcance do princípio da segurança jurídica e, em particular, do princípio da proteção da confiança legítima, encontram um inequívoco, continuado e consistente reconhecimento na jurisprudência constitucional portuguesa. São já incontáveis os arestos em que o tema foi versado; e se, na maioria deles, o Tribunal Constitucional concluiu pela não violação desses princípios pelo legislador, estão longe de ser raros aqueles em que a sua conclusão foi a contrária.
Um dos acórdãos – em que justamente se conclui pela violação do princípio da confiança – e em que se faz uma elaborada análise e sistematização dos requisitos que devem reunir-se para que tal violação ocorra, foi o Acórdão nº 287/90, cujas formulações foram depois retomadas em muitos outros. Aí se postulou que, para tal acontecer, importava, desde logo, que fossem postas em causa «expectativas legitimamente fundadas» dos cidadãos, mas, depois, que a afetação de expectativas «constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar» e, ainda, que não haja sido ditada «pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes», havendo, quanto a este último ponto, que «recorrer-se ao princípio da proporcionalidade».
Trata-se de uma formulação consideravelmente apertada – e, por isso, bem se compreende que, revisitando-a, numa espécie muito posterior, o Tribunal haja salientado que tais «apertados critérios foram estabelecidos para situações em que os cidadãos detinham apenas meras expectativas legítimas, sendo obviamente distinta a situação quando estejamos perante situações de direitos já completamente formados e, ainda mais, de direitos já exercitados», como ocorria no caso (realce no original): Acórdão nº 158/2008, nº 2.2.
Entretanto, e retomando ainda os critérios do Acórdão no 287/90, veio o Tribunal, mais recentemente, no Acórdão no 128/2009, como que explicitá-los, clarificando que eles se reconduzem a quatro diferentes testes, de tal modo que, «para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da ‘confiança’ é necessário»: em primeiro lugar «que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados ‘expectativas de continuidade’»; depois, «devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões»; em terceiro lugar, «devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do ‘comportamento’ estadual»; e, por último, «é necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa» (nº 8.2 do Acórdão; realçou-se agora).
Passará a situação invocada pela Demandada estes testes? Ou, dito ao invés: claudicará a Lei nº 14/2010, face a estes testes?
d) A resposta afigura-se de primeira evidência quanto aos três primeiros testes – devendo logo começar por destacar-se que, no caso, não está em causa, sequer, uma simples «expectativa», mas verdadeiramente um direito, um direito legal e contratualmente fundado, e consolidado, da Demandada.
Seja como for: é indiscutível que, já não só a A., mas o Estado – através do Governo e de organismos que integram a sua administração direta – praticou atos, se não já desde a aprovação das «Orientações Estratégicas para o Setor Marítimo- Portuário», em Dezembro de 2006 (supra, II.I., nº 10º), pelo menos desde a aprovação do «Memorando de Entendimento», de 28 de Abril de 2008 (supra, II.I., nº 17º), que insofismavelmente geraram logo na Demandada uma fundada expectativa na «constituição» da situação jurídica que veio a plasmar-se no «Aditamento» ao Contrato de Concessão. E atos, depois, pelo menos a partir da aprovação do Decreto-Lei nº 188/2008, que nela geraram uma fundada expectativa na «continuidade» dessa situação jurídica, é dizer, na «continuidade» da titularidade dos direitos em que o «Aditamento» a investiu.
Em segundo lugar, é manifesto que, fundando-se na lei e havendo-se consolidado com a celebração do «Aditamento», tal «expectativa», sendo já a da continuidade de um direito (deve insistir-se), não podia ser mais «legítima» e «justificada», nem encontrar fundamento em «melhores razões».
Por outro lado, é também óbvio que a mesma «expectativa» não podia ter ficado abalada pela circunstância de o Decreto-Lei nº 188/2008 haver sido submetido a apreciação parlamentar (supra, II.I, nº 33º e nº 12) – quando esse procedimento se saldou pela manutenção em vigor do diploma, sem alterações. Ao invés: este resultado só podia ter reforçado a confiança da Demandada na continuidade do seu direito, pois que reforçou a convicção da continuidade na ordem jurídica as normas em que o mesmo encontra a sua base. Face a um tal desfecho, na verdade, não era razoável que a Demandada tivesse de contar com uma futura alteração desse estado de coisas.
Entretanto, e neste contexto, virá ainda a propósito referir que tal confiança também não podia considerar-se abalada por quaisquer discordâncias que, antes ou depois dessa apreciação parlamentar, se hajam manifestado, no plano do debate político-partidário e, mais amplamente, da opinião pública, relativamente à celebração do «Aditamento» subjudicio e à realização dos correspondentes objetivo e projeto: é claro e indiscutível que tais manifestações de discordância esgotam nesse plano o seu relevo e o seu efeito, nenhum se lhes podendo atribuir no plano jurídico (jurídico-constitucional).
Em terceiro lugar, também não pode estar em causa que a Demandada haja feito «planos de vida» na perspetiva da «continuidade do comportamento estadual», é dizer, da manutenção em vigor do Decreto-Lei nº 188/2008 (e, claro, do «Aditamento»): não só fez esses planos, como, mais do que isso, passou a executá-los, pois que, formalizado que foi o «Aditamento», passou de imediato a Demandada à realização do Plano de Investimentos nele contemplado – isso, com o aval da A. e de outras entidades públicas às quais competia o licenciamento das obras envolvidas nessa realização, e sendo que essa efetivação do Plano de Investimentos atingia, à data da Contestação da presente ação, a expressão que ficou descrita no anterior Acórdão deste Tribunal, de 28 de Abril (supra, II.I., nº 36º). É inquestionável, pois, que a Demandada fez, não apenas um grande, mas um total «investimento de confiança» na continuidade do diploma em que se fundara a celebração do «Aditamento» e, assim, também na continuidade deste – e do direito, e correlativas obrigações, que do mesmo lhe advinham.
Não pode, por conseguinte, subsistir nenhuma dúvida, de que a revogação, e a revogação retroativa, do Decreto-Lei nº 188/2008, passados quase dois anos de vigência do «Aditamento» ao Contrato de Concessão, a que deu lugar, representou para a Demandada – para voltar a dizer agora com o acima citado Acórdão nº 287/90 – uma frustração inesperada e «extraordinariamente onerosa», não apenas de uma sua «expectativa» inteiramente legítima, mas de um seu «direito» consolidado.
e) Resta saber se, havendo a Lei nº 14/2010 afetado, nos termos acabados de caracterizar e qualificar, e sem que ela pudesse razoavelmente contar essa alteração, não apenas uma «expectativa» justificada da Demandada, mas um seu «direito» legal e contratualmente fundado, e vindo ela a agir na base da manutenção e continuidade dessa situação jurídica – resta saber se, sendo assim, ainda alguma razão de interesse público ocorria no caso, suficientemente séria e ponderosa (isto é, não arbitrária) para dever prevalecer sobre a confiança da Demandada e justificar (constitucionalmente) a emissão daquele diploma.
Ora, atentas a «Exposição de motivos» do Projeto de Lei nº 63/XI, do qual justamente veio a resultar a Lei nº 14/2010, e a respetiva discussão parlamentar (em que há que descontar o estilo de retórica que muitas vezes a caracteriza), feita em conjunto com outras iniciativas legislativas sobre a mesma matéria (cfr. lugares citados supra, nº 12), o que se pode concluir é que a revogação do Decreto-Lei nº 188/2008 ficou a dever-se essencialmente a uma divergência «política» (ou político-partidária) relativamente à opção do Governo que se traduziu e concretizou na sua emissão. É certo que, seja naquela «Exposição», seja naquela discussão, não deixam de se encontrar referências a factos ou circunstâncias que se poderão dizer «supervenientes» (como a de uma evolução menor do que a prevista, que se terá verificado na movimentação de cargas contentorizadas e na diminuição de capacidade portuária disponível); mas, na verdade, não são essas referências e factos que avultam. O que emerge – nesse ponto e nesses termos, pois, havendo de concordar-se com o que a Demandada alega e foi referido a outro propósito [supra, nº 35, a) e, depois, g)] quanto ao que foi o fundamento da lei em apreço – é, fora de dúvida, uma discordância quanto à escolha e à decisão iniciais ou originárias do Governo, que estiveram na base do Decreto-Lei nº 188/2008: seja uma discordância quanto ao alargamento e prolongamento do TCA, à sua necessidade e aos seus impactos, seja uma discordância quanto ao caminho adotado para o efeito, de alteração e prorrogação, e por um prazo assaz longo, do Contrato de Concessão em vigor (caminho seguido, como oportunamente se registou, não sem a ponderação de outas alternativas: cfr. supra, II.I., nºs 15º e 16º).
Que é assim, de resto, só o confirma o precedente percurso do Decreto-Lei nº 188/2008 pela Assembleia da República, ou seja, a «imediata» iniciativa de submetê-lo a apreciação parlamentar. Foi o inêxito da tentativa de revogação do diploma, nesse ensejo, que conduziu à iniciativa sua repetição (com a apresentação do Projeto de Lei no 63/XI e de projetos similares ou convergentes sobre o mesmo tema), aproveitando- se agora a mudança do quadro parlamentar entretanto verificada: naturalmente que as razões subjacentes a esta nova iniciativa já haveriam de reverter às que determinaram a primeira.
Não é portanto, na emergência de uma qualquer razão «excecional», ou «específica» ou tão-só «nova» de interesse público que pode fundamentar-se e se fundamenta a Lei nº 14/2010 – é dizer, a revogação retroativa do Decreto-Lei nº 188/2008. Motivou-a e fundamentou-a unicamente um novo juízo sobre o interesse público, reportado à data e às circunstâncias do diploma revogado.
Pois bem: numa «ponderação» segundo «o princípio da proporcionalidade» – regressando, mais uma vez, aos Acórdãos nº 287/90 e 128/2009 – poderia essa simples alteração «pretérita» (porque referida a um momento anterior) do juízo sobre o interesse público justificar uma normação tão onerosa e tão drástica e radical como a da Lei nº 14/2010? A saber: uma normação cuja eficácia se fez intencionalmente retroagir à do início da vigência do diploma revogado, para eliminar, com ele, todos os efeitos à sua sombra produzidos e, muito especificamente, o «Aditamento» ao Contrato de Concessão ora em apreço e o direito ou direitos subjetivos (que não meras «expectativas») adquiridos pela Concessionária, por força e nos termos do mesmo «Aditamento» – ou seja, eliminar este direito ou estes direitos, não só para o futuro, mas também para o passado?
O Tribunal entende que não – e que, por isso, se está aqui perante uma normação que só pode qualificar como «arbitrária».
E a «arbitrariedade» está justamente (como já se deixa perceber) no alcance retroativo dessa mesma normação – o qual foi manifestamente determinante dela e, por isso, a inquina na sua totalidade – combinado com a circunstância de esse efeito retroativo se ir repercutir necessariamente (e foi isso que se pretendeu) sobre um acordo já celebrado, e, desse modo, não sobre meras «expectativas», mas sobre direitos adquiridos de um particular. Sublinhe-se, portanto, que se não está, nem perante uma situação de «retroatividade autêntica» que vá afetar apenas situações jurídicas «objetivas» passadas (e a expectativa fundada de que elas produziriam, ou não, certos efeitos), nem perante uma normação meramente «retrospetiva», que só vá repercutir-se ex nunc sobre efeitos de uma situação jurídica já constituída: está-se perante o que se poderá qualificar como uma retroatividade (autêntica, claro é) de grau máximo, pois que vai, ao cabo e ao resto, afetar ex tunc a validade dos atos (neste caso, um contrato) que se fundava no diploma revogado e os direitos subjetivos deles derivados. Afigura-se assim bem claro que se está aqui perante uma normação singular e excecionalmente onerosa, na perspetiva da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima dos destinatários das normas jurídicas. Não se vê realmente que tão- só um juízo «pretérito» sobre o interesse público chegue para justificá-la.
Mas uma outra consideração definitivamente revela – de algum modo por analogia – a «desproporção» ou o «excesso» e, logo, a «arbitrariedade» da solução legislativa em presença: é ela a relativa aos princípios jurídicos que regem os contratos administrativos. Como já se recordou neste aresto, a outro propósito, está aí garantido, em geral, à parte pública a faculdade de promover sua modificação, em nome do interesse público, como o está, em nome do mesmo interesse, o direito de promover à sua revogação ou resolução, mas apenas para o futuro: são esses os instrumentos que a ordem jurídica tem por adequados para fazer prevalecer, nessas situações contratuais, o novo juízo sobre o interesse público que o Governo ou a Administração em cada momento façam – não podendo, em nome e em razão só desse interesse ir mais além, v.g., resolver «retroativamente» o contrato. À luz da lei e, naturalmente, em razão dos princípios de justiça em que aquela há de inspirar-se, esta outra possibilidade está-lhes vedada. Ora, o mesmo há de entender-se quando seja o próprio legislador a visar, indireta mas intencionalmente, esse objetivo, revogando retroativamente o diploma legal específico em que o contrato se fundou. Não podia fazê-lo – consoante o fez, ou intentou fazê-1o, no caso – a Assembleia da Repúb1ica, como tão-pouco o poderia ter feito, também no caso, o Governo-1egis1ador, através de um decreto-lei.
Eis o que só confirma o carácter «arbitrário» das normas da Lei nº 14/2010 – e a conclusão de que elas violam de modo inaceitável, não só o princípio da proteção da confiança legítima dos destinatários da ordem jurídica, mas inclusivamente, na sua vertente objetiva, o princípio da segurança jurídica, enquanto um dos essentialia da ideia ou conceção do Estado-de-direito.
39. Concluindo-se, assim, pela inconstitucionalidade, com o fundamento acabado de assinalar, da Lei nº 14/2010, segue-se que ela não operou o efeito revogatório do Decreto-Lei nº 188/2008, que constituía o seu objeto e conteúdo normativos.
Donde que, devendo entender-se que este outro diploma se mantém na ordem jurídica, produzindo todos os seus efeitos, nele continua o «Aditamento» ao Contrato de Concessão, celebrado pelas Partes em 21 de Outubro de 2008, a encontrar o seu fundamento de validade.
Assim, há que julgar improcedente o pedido inicial, formulado na presente ação pela Demandante, A.».
3. Atento o disposto no artigo 280.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, o acórdão arbitral foi comunicado ao Ministério Público junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, tendo a comunicação dado entrada neste tribunal no dia imediato ao do envio, ou seja, no dia 25 de outubro de 2011.
De acordo com o carimbo aposto na comunicação ao Ministério Público, a mesma deu entrada nos respetivos serviços em 23 de novembro de 2011. O requerimento de interposição do presente recurso foi então interposto diretamente no Tribunal Constitucional, tendo dado entrada em 29 de novembro de 2011.
Verificando-se que não fora proferido o despacho a que se refere o artigo 76.º, n.º 1 da LTC, a Relatora proferiu despacho, com data de 15 de dezembro de 2011, a determinar a remessa dos autos, a título devolutivo, ao tribunal que proferiu a decisão recorrida.
4. Em 17 de janeiro de 2012, o Presidente do Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho:
«1. Por requerimento apresentado diretamente no Tribunal Constitucional, veio o Ministério Público interpor recurso para o mesmo Venerando Tribunal – o recurso previsto no artigo 70º n.º 1 alínea a), da respetiva Lei (LTC) – do Acórdão final proferido, em 14 de outubro de 2010 por este Tribunal Arbitral.
Verificando que «não foi proferido o despacho a que se refere ao artigo 76º, n.º 1, da LTC», determinou a Ex.ma Juíza Conselheira Relatora naquele Tribunal que, «para esse efeito», os autos fossem remetidos, a título devolutivo ao tribunal que proferiu a decisão recorrida.
2. É entendimento e prática comum que, tratando-se de admitir, num tribunal arbitral de composição coletiva, recurso «ordinário» da decisão por este proferida, a competência para o efeito é deferida ao respetivo árbitro presidente. Por força do princípio que emerge do artigo 69º da LTC, o mesmo há de entender-se, pois, quanto ao recurso para o Tribunal Constitucional.
Nesta conformidade, é exclusivamente ao Signatário que, por despacho singular seu, cabe dar seguimento ao Despacho da Ex.ma Relatora no Tribunal Constitucional.
Assim, e passando a apreciar:
3. A circunstância de o requerimento de recurso haver sido dirigido ao Tribunal Constitucional e nele apresentado não deve ter-se como impeditiva da sua apreciação pela entidade jurisdicional à qual – segundo o entendimento da lei perfilhado naquele (e que, de resto, o Signatário compartilha) – deveria ter sido endereçado.
O facto é que tal requerimento é inequívoco quanto à vontade, que nele se manifesta, de recorrer para o Tribunal Constitucional e quanto à natureza e objeto do recurso que se pretende interpor. Por outro lado, não pode deixar de considerar-se incluído no poder jurisdicional desse Tribunal o de decidir sobre questões estritamente atinentes à tramitação dos recursos que para ele cabem – e, no caso, para sustar o andamento do recurso antes de cumprido o disposto no artigo 76º, n.º 1, LTC, com remessa dos autos, para esse efeito, ao tribunal a quo.
Acresce que uma tal solução ou um tal caminho não podem haver-se como insólitos no quadro do direito processual português e brigando com princípios estruturantes deste: bastará lembrar, para uma conclusão que será antes a contrária, o disposto no artigo 111º n.º 3, e mesmo no artigo 105º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil e o preceituado no artigo 14º n.º 1 do Cód. Proc. Trib. Admin. Posto isto:
3. O recurso interposto é, em si mesmo, admissível e o Ministério Público não apenas dispõe de legitimidade para a sua interposição, como se achava adstrito a fazê-lo – consoante decorre do disposto no artigo 280º, n.º 1, alínea a), e nº 3, da Constituição da República, e no artigo 70º n.º 1, alínea a), e no artigo 72º, n.º 3, da LTC. Para isso, de resto, não deixou logo de advertir-se no acórdão recorrido.
4. Há que apurar, todavia, se o recurso é tempestivo. E, isso, porquanto – segundo o que o próprio Tribunal Constitucional, desde o início, nunca deixou de entender uniformemente – a circunstância de se estar perante um recurso «obrigatório» não dispensa a necessidade de interpô-lo no prazo legal, fixado hoje em 10 dias pelo artigo 75º, n.º 1, da LTC, sob pena do trânsito em julgado (pelo menos quanto à questão da constitucionalidade) da decisão recorrida ou suscetível de recurso: assim, v. Acórdãos n.ºs 278/86, 96/88, 265/90, 190/91 e Decisões Sumárias n.ºs 9/00, 92/02 e 269/02, e cfr. ainda, implicitamente, Acórdão nº 111/11.
Ora, segundo o respetivo carimbo, aposto na comunicação do Acórdão recorrido ao Ministério Público do TAC de Lisboa, determinada por este Tribunal, tal comunicação deu entrada nos respetivos Serviços em 23 de novembro do ano findo; mas, por outro lado, a verdade é que do Aviso de Receção a fls. 1132 dos autos, correspondente à Nota de Registo da remessa postal, efetuada pelos serviços deste Tribunal, da mesma comunicação, a fls. 1131, resulta que a entrada dela (da dita comunicação) no referido TAC se verificou logo no dia imediato a tal remessa, ou seja, em 25 de outubro também do ano findo.
Não se dispõe de elementos para explicar este hiato temporal entre os dois factos – que, de tão longo, não deixa certamente de surpreender. Mas o certo é que, havendo ele ocorrido, e tendo o requerimento de recurso dado entrada no Tribunal Constitucional em 29 de novembro (conforme se regista no Despacho da Ex.ma Relatora nesse Tribunal), segue-se que o recurso só estará em tempo se houver de considerar-se como dies a quo do prazo para a sua interposição o da entrada nos Serviços do Ministério Público recorrente da dita comunicação da decisão recorrida – mas já não se esse dia dever ser determinado em função logo da data da entrada da mesma comunicação no TAC de Lisboa.
Por outro lado, e ainda entendendo-se as coisas no primeiro sentido, a tempestividade do recurso só ficará assegurada se se atribuir relevância, para esse efeito, à data da entrada do respetivo requerimento no Tribunal Constitucional, onde foi diretamente apresentado (solução esta suscetível, designadamente, de poder abonar-se em princípio que se dirá implícito, de algum modo, no supra citado artigo 111º, n.º 3, do Código Proc. Civil e com tradução expressa no artigo 14º, n.º 3, do Cód. Proc. Trib. Admin.) – e não já à data em que, incorporado nos autos de recurso a cuja abertura aí deu lugar, veio a ser remetido a este Tribunal Arbitral e recebido na Secretaria respetiva, data, esta última, que foi a de 22 de dezembro do ano findo.
5. Evidenciadas estas dúvidas, não deve, entretanto, deixar de reconhecer-se que se está, no caso, perante uma situação bastante singular.
E não deve, em particular, deixar de levar-se em conta que – independentemente do entendimento a esse respeito perfilhado pela Ex.ma Relatora no Tribunal Constitucional, e subscrito (como já se disse) pelo Signatário – na doutrina se regista, de todo o modo, uma hesitação quanto ao modus faciendi da apresentação do recurso de decisões arbitrais, não faltando quem entenda que essa apresentação deve ter lugar diretamente no tribunal ad quem: assim, PAULA COSTA SILVA, «Anulação e Recursos da Decisão Arbitral», na Revista Ordem dos Advogados, ano 52º, dezembro de 1992, p. 994 e 995; diversamente, depois de considerar o ponto, LUÍS DE CARVALHO FERNANDES, «Dos Recursos em Processo Arbitral», em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Raul Ventura, vol. II, 2003, pp. 160 e 161.
6. Em face do exposto, é com as dúvidas enunciadas – dúvidas que sempre caberia e caberá ao Venerando Tribunal ad quem resolver – que se admite o recurso do Acórdão proferido por este Tribunal Arbitral em 14 de outubro de 2010, interposto para o Tribunal Constitucional pelo Ministério Público.
O recurso terá efeito suspensivo e subirá nos próprios aulos, nos termos do disposto no artigo 75º n.º 3 da LTC – pelo que nele se incorporarão os recebidos daquele Tribunal.
8. Notifiquem-se as Partes e o Representante do Ministério Público no TAC de Lisboa, enviando-se a este último e à Demandante cópia do requerimento (e dos documentos juntos ao mesmo) entretanto apresentado pela Demandada neste Tribunal Arbitral, em 28 de dezembro do ano findo – requerimento que (explicita-se agora) ficou considerado, no que cabia, no despacho que antecede.
9. Remetam-se os autos ao Tribunal Constitucional».
5. Foi então determinada a produção de alegações, que o Ministério Público apresentou, concluindo o seguinte:
«1.º
O princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, postula uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas.
2.º
No entanto, não é suficiente que se demonstre que um novo regime legal vem afetar expectativas dos seus destinatários para que se conclua, automaticamente, pela sua inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança jurídica. Essencial, é ainda, para que se verifique tal inconstitucionalidade, que as alterações não sejam motivadas por interesse público suficientemente relevante.
3.º
A nosso ver, o novo regime legal, estabelecido pela Lei n.º 14/2010, não se afigura – muito pelo contrário – inadmissível ou arbitrário, nem desproporcionado, encontrando, isso sim, justificação em prementes e atendíveis razões de ordem pública, devidamente enunciadas na exposição de motivos do Projeto de Lei n.º 74/XI, que antecedeu a referida Lei.
4.º
Com efeito, a Lei n.º 14/2010 foi a solução encontrada pelo legislador para pôr fim à situação de cedência, por parte do concedente público, aos interesses da concessionária B. (e até às exigências dos bancos), uma vez que, em manifesto detrimento do interesse público, a A. acabou por assumir garantias e obrigações manifestamente desproporcionadas e desrazoáveis, a coberto do Decreto-Lei n.º 188/2008 (como vem demonstrado, nomeadamente, no Relatório do Tribunal de Contas, com o n.º 26/2009, elaborado no âmbito da Auditoria à “Gestão das Concessões/PPP Portuárias – Concessão do Terminal dos Contentores de Alcântara – Porto de Lisboa”).
5.º
Assim, são fundamentalmente razões de interesse público (sobretudo de cariz económico e financeiro), que, na ponderação de interesses em confronto, justificam a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa e a revogação do regime decorrente do Decreto-Lei n.º 188/2008, de 23 de setembro.
6.º
Ora, visando as normas da Lei n.º 14/2010 a salvaguarda de um interesse público que, dada a sua magnitude, deve ser tido por prevalecente, na ponderação de interesses a que atrás se aludiu, concluímos não se estar, no caso dos presentes autos, perante uma desproteção da confiança, que se possa ter por constitucionalmente desconforme.
7.º
Nestes termos, deve o presente recurso obter provimento».
6. A recorrida B., S. A. contra-alegou, concluindo, entre o mais, o seguinte:
“1. Ressalvando, desde já, o devido respeito, cumpre dizer que a decisão adotada no despacho proferido em 17 de janeiro de 2012 pelo Exmo. Senhor Árbitro Presidente do Tribunal Arbitral, no sentido da admissão do presente recurso jurisdicional, não se afigura juridicamente correta.
2. No entendimento da B., o Exmo. Senhor Árbitro Presidente do Tribunal Arbitral deveria ter-se eximido de conhecer o requerimento de recurso apresentado pelo Ministério Público, visto que o mesmo não lhe era dirigido, não se vislumbrando, assim, qualquer base legal para o exercício da competência estabelecida no artigo 76.º, n.º 1, da LTC.
3. Este não é, em todo o caso, o único reparo a apontar ao despacho proferido pelo Exmo. Senhor Árbitro Presidente do Tribunal Arbitral: é que, tendo, não obstante o exposto, decidido proceder a tal conhecimento, esse despacho acabou por admitir o recurso interposto pelo Ministério Público, sem, antes disso, formular um juízo seguro a tal respeito.
4. E a verdade é que o único juízo que se impunha formular apontava no sentido precisamente oposto ao do despacho proferido pelo Exmo. Senhor Árbitro Presidente do Tribunal Arbitral – ou seja, em sentido que obsta à admissão do presente recurso –, razão pela qual se procede à impugnação desse despacho, nos termos do n.º 3 do artigo 76.º da LTC.
5. Repare-se que a decisão arbitral recorrida foi notificada ao Representante do Ministério Público junto do TAC de Lisboa através do ofício n.º 1431/2011/CAC, expedido por via postal, mediante carta registada com aviso de receção, no dia 24 de outubro de 2011.
6. Ao contrário do que se diz no despacho provindo do Tribunal a quo, não é verdade que apenas no dia 23 de novembro de 2011 o ofício n.º 143l/2011/CAC tenha dado entrada nos serviços do Ministério Público; conforme resulta do aviso de receção correspondente à sua remessa postal, esse ofício foi rececionado pelos serviços do Ministério Público junto do TAC Lisboa no dia 25 de outubro de 2011.
7. Ainda que tivesse existido, conforme parece pressupor o Tribunal a quo, um hiato temporal entre a entrada do ofício n.º 143l/2011/CAC no TAC de Lisboa e a sua entrada nos serviços do Ministério Público junto desse tribunal a verdade é que defender a relevância apenas da segunda data consubstancia um entendimento que não só não se coaduna com as regras gerais da citação (cfr. artigos 233.º e seguintes do CPC, aplicáveis em face da ausência de específica regulação no artigo 258.º do CPC), como se revela absolutamente contrário ao princípio da segurança jurídica.
8. O prazo de interposição pelo Ministério Público do presente recurso começou, pois, a contar-se no dia 26 de outubro de 2011 e terminou no dia 4 dc novembro de 2011 sem prejuízo da possibilidade de aproveitamento pelo Ministério Público do prazo dilatório estabelecido no artigo 145.º, n.º 3, do CPC, mediante expressa e necessária declaração nesse sentido, o que permitiria diferir o termo do prazo de interposição de recurso para o dia 9 de novembro de 2011.
9. De onde decorre que, seja na data de entrada do requerimento de interposição do presente recurso neste Tribunal Constitucional (29 de novembro de 2011), seja na data de remessa desse mesmo requerimento para o Tribunal Arbitral (22 de dezembro de 2011), já há muito que o prazo estabelecido no artigo 75.º, n.º 1, da LTC se encontrava decorrido.
10. Mesmo que se admitisse hipoteticamente, sem conceder, que o Ministério Público apenas foi notificado do teor do acórdão recorrido no dia 23 de novembro de 2011, nem assim o presente recurso deixaria de ser intempestivo: é que, em face da inaplicabilidade do disposto nos artigos 14.º, n.º 3, do CPTA e 111, n.º 3, do CPC, e com base na leitura conjugada do artigo 289.º, n.º l e 2, do CPC e dos artigos 332.º, n.º l, e 327.º, n.º 3, do Código Civil não pode atribuir-se relevância à data de entrada do requerimento de interposição do presente recurso neste Venerando Tribunal Constitucional (29 de novembro de 2011), o que equivale a dizer que o presente recurso só pode considerar-se interposto na data em que aquele requerimento foi recebido na Secretaria do Tribunal a quo, ou seja, no dia 22 de dezembro do ano findo.
11. O prazo previsto no artigo 75.º, n.º 1, da LTC, contado a partir dessa data, terminaria no dia 5 de dezembro, muito antes, portanto, da receção pelo Tribunal Arbitral do requerimento tendente à sua interposição.
12. Nestes termos, resulta claro que o presente recurso deveria ter sido imediatamente rejeitado, nos termos do artigo 76.º, n.º 2, da LTC, requerendo-se a este Venerando Tribunal se digne proceder à correção, nessa conformidade, do despacho proferido pelo Tribunal a quo.
13. Cabendo, não obstante, equacionar – por mera cautela de patrocínio, sem conceder a hipótese de este Venerando Tribunal vir a ter um entendimento diverso do que acaba de ser exposto, importa deixar claro que a B. não partilha da posição expressa pelo Ministério Público nas suas alegações, estando antes firmemente convicta da inconstitucionalidade da Lei n.º 14/2010.
14. Concretamente, e conforme foi defendido pelo Tribunal a quo, as normas contidas nessa lei incorrem, desde logo, em violação do princípio constitucional da proteção da confiança legítima.
15. Com efeito, constitui «uma evidência» que a B. não detém uma simples expectativa na continuidade do regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 188/2008; pelo contrário, ela é titular de um «direito legal e contratualmente fundado, e consolidado», e como tal, devem considerar-se, desde logo, cumpridos os três primeiros testes ou critérios reclamados pelo princípio da proteção da confiança.
16. Posto isto, cumpre ainda evidenciar que a aprovação da Lei n.º 14/2010, acarretando a revogação retroativa do Decreto-Lei n.º 188/2008 – repare-se, dois anos depois da sua publicação e, sobretudo, quando já se mostravam consumados os seus principais efeitos jurídicos –, constituiu uma alteração radical que a B. não poderia ter previsto.
17. Nessa medida, é inegável reconhecer que a Lei n.º 14/2010 constitui o que a jurisprudência apelida de uma medida extraordinariamente onerosa.
18. É certo que a confirmação da inconstitucionalidade das respetivas normas depende ainda da aplicação de um quarto e último teste ou critério, consistente numa ponderação entre o fim prosseguido pelo legislador através da norma e o peso da expectativa (direito, neste caso) do particular que aquela vem frustrar.
19. É precisamente neste ponto, aliás, que o Ministério Público entende soçobrar o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal a quo: segundo as suas alegações, a Lei n.º 14/2010 teria visado «a salvaguarda de um interesse perfeitamente identificado e de importância fulcral», suscetível de legitimar a destruição daqueles direitos.
20. Acontece que a Lei n.º 14/2010 é totalmente omissa no que diz respeito ao interesse público que a motivou, não avançando um único fundamento para a respetiva aprovação e/ou normas aí contidas.
21. Mesmo que fosse admissível atentar nos documentos e acontecimentos tendentes à aprovação da Lei n.º 14/ 2010 (como sejam, o correspondente projeto de lei e os factos ocorridos no âmbito da respetiva discussão parlamentar), sempre se diria que não se descortina nas razões daí extraídas uma justificação séria e ponderosa para um sacrifício tão radical e drástico quanto aquele que viria a ser introduzido por aquela lei.
22. E ainda que se considerasse que a motivação aparentemente subjacente à Lei n.º 14/2010 é passível de prevalecer sobre os direitos da B. – o que se admite sem conceder, por mera cautela de patrocínio –, o respetivo sacrifício, nos termos em que viria a ser ditado por aquela lei, sempre haveria de considerar-se vedado pela Constituição.
23. Neste sentido, importa recordar que o juízo de ponderação de valores deve tomar em consideração a vertente de proibição do excesso do princípio da proporcionalidade, cujos limites se consideram infringidos sempre que são aprovadas leis retroativas que afetam situações já esgotadas ou estabilizadas no passado: ora, como bem refere o Tribunal arbitral, no caso em apreço «está-se perante o que se poderá qualificar como uma retroatividade (...) de grau máximo, pois que vai, ao cabo e ao resto, afetar ex tunc a validade dos atos (neste caso, um contrato) que se fundava no diploma revogado e os direitos subjetivos deles derivados.
24. A este aspeto, acresce um outro: trata-se do facto de a Lei n.º 14/2010 fugir ao quadro jurídico que regula os poderes do contraente público nos contratos administrativos, mais concretamente, o poder de resgate.
25. A propósito da (des)conformidade das normas contidas na Lei n.º 14/2010 com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, cumpre deixar uma última nota quanto à (in)transponibilidade da doutrina propugnada nos dois recentes acórdãos deste Venerando Tribunal invocados pelo Ministério Público nas suas alegações.
26. No que respeita ao Acórdão n.º 396/2011, importa salientar que, na génese da Lei n.º 14/2010, não esteve um idêntico contexto de crise de financiamento do Estado português, o qual, de resto, à data da publicação dessa Lei não passava de uma hipótese.
27. Acresce que, como o Tribunal Constitucional não se cansou de afirmar, as disposições em causa no Acórdão n.º 396/2011 são medidas de caráter orçamental, que gozam, por isso, do regime (e duração) correspondente.
28. Quanto ao Acórdão n.º 12/2012, são ainda mais flagrantes as diferenças apuradas: é que alteração legislativa analisada nesse acórdão «não afeta qualquer direito adquirido do recorrente, nem a expectativa juridicamente tutelada de poder progredir na carreira por mero efeito do decurso do tempo, com a inerente atualização dos montantes salariais».
29. Por tudo quanto ora foi exposto, sufraga-se inteiramente o juízo vertido pelo Tribunal a quo no acórdão recorrido, no sentido de que as disposições normativas contidas na Lei n.º 14/2012, violam «de modo inaceitável, não só o princípio da proteção da confiança legítima dos destinatários da ordem jurídica, mas inclusivamente, na sua vertente objetiva, o princípio da segurança jurídica, enquanto um dos essentialia da ideia ou conceção do Estado-de-Direito»”.
Notificada para contra-alegar, a recorrida A., S.A., optou por nada dizer.
7. Tendo a recorrida B., S. A., nas suas contra-alegações, impugnado, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, a decisão de admissão do recurso de constitucionalidade, a Relatora proferiu despacho em 19 de abril de 2012, convidando o Ministério Público e a recorrida A., S.A. a, querendo, pronunciar-se sobre a questão da admissibilidade do recurso.
Respondeu apenas o Ministério Público, dizendo o seguinte:
«1.º - Mantemos e damos aqui como integralmente reproduzidas as considerações prévias que tecemos nas alegações de recurso, e que constituem o ponto 2 das mesmas, de fls. 1255 a 1260.
No entanto, como reforço dos argumentos ali explanados, e face ao que, sobre essa questão, a recorrida B. invocou nas suas contra -alegações, importa explicitar melhor as razões pelas quais entendemos dever ser mantido o despacho que admitiu o presente recurso de constitucionalidade.
2.º - Desde logo, a singularidade do caso, pois, que se tenha conhecimento, é a primeira vez que um Tribunal Arbitral recusa a aplicação de uma norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
Assim, as especificidades dos problemas que se levantam em redor dos tribunais arbitrais, designadamente, no que ao caso agora releva, quanto ao modus faciendi da apresentação do recurso de decisões arbitrais, onde a doutrina se divide quanto ao tribunal onde deve ser apresentado o requerimento de interposição de recurso (no tribunal arbitral ou no tribunal de recurso), não foram, ainda, tratadas na jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente nos casos de recurso obrigatório para o Ministério Público, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
3.º - Acresce que, ao Ministério Público, órgão do poder judicial que, aliás, não se encontra, sequer, representado nos tribunais arbitrais, a Constituição atribui a obrigatoriedade de recorrer para o Tribunal Constitucional das decisões dos restantes tribunais que recusem a aplicação de normas, com fundamento na sua inconstitucionalidade (art.º 280.º, n.º 3 da CRP).
4.º - Mas, quando exerce esse poder - dever de interpor recurso por recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, o Ministério Público, não é parte processual, atuando em defesa da legalidade e da salvaguarda de princípios objetivos da ordem jurídica-constitucional (e não em defesa de interesses subjetivos dos intervenientes da lide).
Por isso, ao Ministério Público é dada a conhecer a decisão que recusou a aplicação da norma, para que dela possa recorrer.
Mas não são, naturalmente, pelas razões apontadas, aplicáveis ao caso, como pretende a recorrida B., as regras gerais da citação estabelecidas no Código de Processo Civil.
5.º - Não vem, por outro lado, demonstrado nos autos que o representante do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa) tenha tido conhecimento do conteúdo da comunicação enviada pelo Tribunal Arbitral, antes de 23 de novembro de 2011, data do carimbo de entrada do expediente nos serviços do Ministério Público junto daquele Tribunal.
E, o facto de, segundo o aviso de receção, o expediente ter entrado nesse mesmo Tribunal a 25 de outubro de 2011, não cria nenhuma presunção legal de que essa comunicação tenha sido levada ao conhecimento do representante do Ministério Público junto do TAC de Lisboa, antes da referida data (2011.11.23).
6.º - É, assim, tempestivo, o recurso interposto, no prazo estabelecido pelo n.º 1 do artigo 75.º da LTC, pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional, relevando para o efeito a data em que o mesmo deu entrada neste Tribunal (2011.11.29).
7.º - Com efeito, atenta a singularidade do caso, a divergência doutrinal quanto ao modus faciendi da apresentação dos recursos das decisões arbitrais e a inexistência de jurisprudência anterior sobre a matéria, a opção por apresentar tal requerimento ao Tribunal de recurso tem a virtualidade de confrontar, logo de início, o órgão jurisdicional competente para apreciar a constitucionalidade normativa em causa, com essa questão formal.
Até porque, em última instância, caberia sempre ao Tribunal Constitucional decidir sobre essa mesma questão formal, relativa à tramitação do recurso de constitucionalidade.
8.º - Não se trata, pois, de desconhecimento, mas de incerteza da lei; nem de tirar, ou não, proveitos com o desconhecimento da lei (como alega a B.), uma vez que a intervenção do Ministério Público, no caso de recurso obrigatório, como vimos já, não defende interesses subjetivos dos intervenientes na lide, antes defende o interesse público na reintegração do ordenamento jurídico.
O que se afigura, pois, essencial para a defesa e prossecução desse interesse público, é salvaguardar a intervenção do órgão especificamente criado para assegurar a garantia da Constituição, ou seja, o Tribunal Constitucional, devendo, nessa medida, o regime processual ser adaptado e interpretado de modo a não coartar essa intervenção.
9.º - O Tribunal Constitucional determinou a remessa dos autos, a título devolutivo, ao tribunal arbitral que proferiu a decisão recorrida, para ser proferido o despacho a que se refere o artigo 76.º, n.º 1, da LTC (despacho sobre a admissão do recurso).
Após prolação desse despacho de recebimento do recurso (fls. 1247 a 1250), e devolvidos os autos ao Tribunal Constitucional, foi ordenada a notificação para o recorrente alegar.
10.º - Esses despachos, quer do tribunal a quo, quer do tribunal ad quem, têm subjacente uma interpretação e aplicação da lei, designadamente, da Lei do Tribunal Constitucional e do Código de Processo Civil, que não pondo em causa qualquer princípio estruturante do quadro do direito processual português, não impede, antes impõe, a intervenção do órgão jurisdicional competente para apreciar a constitucionalidade, ou seja, o Tribunal Constitucional.
Como tal, é essa a interpretação que, no nosso entendimento, mais se adequa à defesa da legalidade e da salvaguarda de princípios objetivos da ordem jurídica - constitucional, que norteiam a atuação do Ministério Público quando interpõe um recurso obrigatório, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
11.º - Pelo que, a nosso ver, deve ser mantido o despacho de recebimento do presente recurso, seguindo-se os ulteriores termos dos autos».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Importa começar por apreciar a impugnação da decisão que admitiu o presente recurso, deduzida nas contra-alegações da recorrida B., S. A., ao abrigo do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC.
Segundo o artigo 280.º, n.º 1, da Constituição, cabe recurso para o tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou que apliquem norma cuja inconstitucionalidade tenha sido arguida durante o processo. É incontroverso que a referência aqui feita a “decisões dos tribunais” inclui as decisões proferidas por tribunais arbitrais, voluntários ou necessários, pelo que das suas decisões caberá recurso para o Tribunal Constitucional naquelas duas situações: caso profiram decisões de recusa de aplicação de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou caso profiram decisões de aplicação de normas cuja inconstitucionalidade tenha sido arguida durante o processo. Nos Acórdãos n.ºs 289/86, 32/87 e 181/2007 o Tribunal conheceu, por isso, de recursos interpostos de decisões, proferidas por instâncias arbitrais, que haviam aplicado normas cuja inconstitucionalidade fora arguida durante o processo (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). No presente caso, o tribunal arbitral recusou a aplicação das normas constantes da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, com fundamento em inconstitucionalidade, não havendo uma qualquer objeção de princípio quanto ao conhecimento do objeto do recurso interposto pelo Ministério Público.
Fora de dúvida estará também, naturalmente, a aplicabilidade a estas situações do que prescreve o n.º 3 do artigo 280.º da Constituição. Assim, também no caso das decisões arbitrais, “quando a norma cuja aplicação tiver sido recusada constar de convenção internacional, de ato legislativo ou de decreto regulamentar”, o recurso é obrigatório para o Ministério Público. Nunca será demais recordar os fundamentos desta regra, constante aliás do nosso sistema de justiça constitucional desde a primeira versão da Constituição. A manutenção do disposto no então artigo 282.º (sempre que os tribunais se recusem a aplicar uma norma constante de lei, decreto-lei, decreto regulamentar, decreto regional ou diploma equiparável (…) haverá recurso gratuito, obrigatório quanto ao Ministério Público, e restrito à questão da inconstitucionalidade, para julgamento definitivo do caso concreto pela Comissão Constitucional), enquanto regra estruturante do sistema de recursos para o Tribunal Constitucional, foi claramente justificada, no momento em que o Tribunal foi instituído, como instrumento do interesse público na defesa da legalidade (Diário da Assembleia da República, II Série, N.º 72, de 27 de março de 1982). E é ainda assim que a razão de ser do atual n.º 3 do artigo 280.º deve, evidentemente, continuar a ser entendida. A sua aplicação aos recursos das decisões arbitrais que recusem a aplicação de uma norma está portanto fora de dúvida: as razões de ordem pública que justificam a sujeição dos tribunais arbitrais à Constituição conjugam-se especialmente com as razões pelas quais a CRP previu o recurso obrigatório quanto ao Ministério Público.
Já o mesmo não se diga quanto ao modo de tramitação deste tipo de recursos. Desde logo, há dúvidas quanto ao modo de comunicação da decisão arbitral (que recusa a aplicação de normas) ao Ministério Público, para que este possa exercer a função que o n.º 3 do artigo 280.º da CRP lhe atribui. Como não há representação do Ministério Público junto dos tribunais arbitrais, a incerteza – que a lei não resolve – é inelutável. Do mesmo modo, há dúvidas quanto à questão de saber em que tribunal deve ser apresentado o requerimento de interposição do recurso: se no tribunal a quo, segundo a regra geral do processo civil, se no tribunal ad quem, atentas as especificidades de que se revestem os tribunais arbitrais. A propósito de certas matérias e de certos recursos, a lei resolve este último problema no segundo sentido – dizendo expressamente que o recurso da decisão arbitral deve, diferentemente do que resulta da regra geral de processo, ser apresentado no tribunal ad quem. É o que sucede, por exemplo, com o Código das Expropriações em relação a todos os recursos (artigo 58.º) ou com a lei sobre arbitragem em matéria tributária em relação aos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional (art.º 25.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro). Na ausência de uma regra geral, a dúvida persiste.
Todas estas dúvidas devem ser respondidas tendo em conta a natureza e razão de ser do recurso que o Ministério Público interpõe, obrigatoriamente, quando os tribunais recusam a aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade. É neste contexto valorativo que deverá ser resolvida a questão prévia relativa à admissibilidade do presente recurso.
2. A recorrida B., S. A. impugna o despacho de admissão do recurso proferido pelo presidente do tribunal arbitral, invocando duas razões essenciais. Por um lado, entende que, sendo o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade dirigido ao Tribunal Constitucional, não competiria ao presidente do tribunal arbitral decidir sobre a admissibilidade do mesmo; por outro, sustenta que sempre seria de concluir pela extemporaneidade do recurso interposto, atento o prazo previsto no n.º 1 do artigo 75.º da LTC.
2.1. A impugnante conclui que o presidente do tribunal arbitral deveria ter-se eximido de conhecer o requerimento de recurso apresentado pelo Ministério Público, visto que o mesmo não lhe era dirigido, não se vislumbrando, assim, qualquer base legal para o exercício da competência estabelecida no artigo 76.º, n.º 1, da LTC, segundo o qual «compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respetivo recurso».
O requerimento de interposição do recurso é no entanto inequívoco quanto à vontade, que nele se manifesta, de recorrer para o Tribunal Constitucional e quanto à natureza e objeto do recurso que se pretende interpor. É o que se diz no despacho impugnado, afirmação que aqui se reitera. Ora, perante as incertezas que envolvem a questão de saber onde é que deve ser apresentado o requerimento respeitante a este tipo de recursos – se junto do tribunal a quo, se junto ao tribunal ad quem – não é sustentável invocar o artigo 684.º-B, n.º 1, primeira parte, do Código de Processo Civil, na redação então vigente. O facto de o requerimento não ter sido dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida não é motivo suficiente para determinar o seu não recebimento. Justamente o que está em causa é a incerteza quanto à questão de saber se, atentas as especificidades dos tribunais arbitrais, também aqui vale a regra processual geral, segundo a qual os recursos se interpõem mediante requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida. Como vimos, em relação a recursos comuns proferidos de decisões arbitrais em matéria de expropriação, a lei contempla, precisamente, a solução oposta; o mesmo sucedendo, em relação a recursos de constitucionalidade interpostos obrigatoriamente pelo Ministério Público em matéria tributária. Abstrair destas especialidades de regime, invocando, como se de um dado firme se tratasse, a aplicação ao caso da regra geral de processo civil, significa resolver a incerteza gerada pelo regime legal – que, recorde-se, é silente quanto a uma solução genérica para todos os recursos de constitucionalidade interpostos obrigatoriamente pelo Ministério Público de decisões, em matérias constitucionais, proferidas por tribunais arbitrais – de modo totalmente alheio à natureza e razão de ser deste tipo de recursos, tal como eles são, desde logo, prefigurados pela Constituição. Como atrás se disse, o Ministério Público exerce aqui uma função, de interesse público na defesa da legalidade, que a própria CRP lhe atribui. Dúvidas que surjam quanto ao modo de tramitação dos processos em que se manifeste o exercício desta função devem ser resolvidas tendo em conta a natureza funcional da posição processual do recorrente, que não corresponde à posição processual típica da “parte” no processo comum.
2.2. Do mesmo modo, ou de acordo com o mesmo método interpretativo, se há de resolver a questão de saber a partir de que momento é que se deve começar a contar o prazo de interposição do recurso, que o n.º 1 do artigo 75.º da LTC fixa em 10 dias.
2.2.1. A impugnante entende que, no caso, o prazo de dez dias se conta a partir do momento em que foi recebida pelos serviços de secretaria do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa a comunicação que o tribunal arbitral fizera ao Ministério Público “atento o disposto no n.º 3 do artigo 280.º da Constituição da República” (em 25 de outubro de 2011), desconsiderando o facto de a mesma comunicação só ter dado entrada nos serviços do Ministério Público daquele tribunal quase um mês mais tarde (em 23 de novembro). A recorrida sustenta a aplicação ao caso das regras gerais de citação (artigo 233.º e ss. do Código de Processo Civil), de onde decorre que a notificação do acórdão recorrido se considera feita no dia em que o notificando, por recurso a um seu auxiliar – que não carece de ser um auxiliar específico ou exclusivo dos seus serviços – que assina o correspondente aviso de receção (artigos 236.º e 238.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Acrescenta ainda que, se assim não for, se incumprirão exigências mínimas de segurança jurídica: a qualquer momento as partes num processo jurisdicional poderão ser surpreendidas com a interposição de um recurso do Ministério Público, não tendo a hipótese de controlar a data em que o mesmo foi notificado da decisão de que recorre e, assim, a data em que essa decisão terá transitado em julgado.
Toda esta argumentação não tem presente que a resolução das incertezas quanto ao modo de tramitação dos recursos interpostos obrigatoriamente pelo Ministério Público de decisões arbitrais que recusem a aplicação de uma norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade, não pode fazer tábua rasa das razões pelas quais a Constituição consagrou o recurso obrigatório. Aliás, foi justamente tendo em conta essas razões que o tribunal recorrido mandou “notificar” as partes e “comunicar” a decisão ao Ministério Público “atento o disposto no n.º 3 do artigo 280.º da Constituição da República”. Nem de outro modo poderia ser. E a verdade é que o ato de comunicar só se encontra perfeito quando a mensagem, emitida pela fonte emissora, é recebida pelo destinatário recetor.
É certo que a lei não diz como é se “comunicam” ao Ministério Público – que, pela natureza das coisas, não tem representação junto dos tribunais arbitrais – as decisões que esses tribunais tomem e das quais, por imposição constitucional, o mesmo Ministério Público deva recorrer. E é também certo que a questão a resolver é também a de saber como é que se “notifica” o Ministério Público da decisão arbitral. Mas isto é uma coisa; outra, completamente diferente, é o defender-se que, em nome da segurança jurídica das partes, a “notificação” de que aqui se trata não pode ser outra que não aquela que os artigos 236.º e 238.º do Código de Processo Civil regulam. Uma tal interpretação levaria ao seguinte resultado: o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional começaria a correr mesmo antes de o Ministério Público ter tido efetivo conhecimento da existência de uma decisão arbitral que recusou a aplicação de uma norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade. Nada mais contrário às razões pelas quais a Constituição conferiu, no n.º 3 do artigo 280.º, a função de recurso ao Ministério Público. Há por isso que concluir que, em uma interpretação do sistema legal que tenha em linha de conta a natureza e objeto deste tipo de recursos, o dies a quo, a partir do qual se deve começar a contar o prazo fixado no n.º 1 do artigo 75.º da LTC, é, no caso presente, aquele em que, de acordo com os autos, a decisão de recusa de aplicação da norma por parte do Tribunal Arbitral deu entrada nos serviços do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa. Isto é: o presente recurso foi interposto tempestivamente.
2.2.2. Argumenta ainda a impugnante que mesmo que se admitisse que o Ministério Público apenas foi notificado do teor do acórdão recorrido no dia 23 de novembro de 2011, nem assim o presente recurso deixaria de ser intempestivo. Em face da inaplicabilidade do disposto nos artigos 14.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e 111.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, e com base na leitura conjugada do artigo 289.º, n.ºs l e 2, do mesmo Código e dos artigos 332.º, n.º l, e 327.º, n.º 3, do Código Civil não pode atribuir-se relevância à data de entrada do requerimento de interposição do presente recurso no Tribunal Constitucional (29 de novembro de 2011), o que equivale a dizer que o presente recurso só pode considerar-se interposto na data em que aquele requerimento foi recebido na Secretaria do Tribunal a quo, ou seja, no dia 22 de dezembro do mesmo ano.
Sucede, porém, que a irrelevância da data de entrada do requerimento de interposição do recurso neste Tribunal só é sustentável se se afirmar perentoriamente que o requerimento não devia ter sido entregue no tribunal ad quem. Ora, é esta uma afirmação que, como já vimos, não pode fazer-se: nem ela consta de qualquer regime sobre o modo de tramitação processual dos recursos de decisões arbitrais para o Tribunal Constitucional, nem ela decorre do n.º 1 do artigo 76.º da LTC. Assim sendo, e ao contrário do que pretende a recorrida, nada impede que se atribua relevância à data em que o requerimento de interposição do recurso deu entrada no Tribunal Constitucional. Numa leitura do sistema que tenha em linha de conta a natureza do recurso, esta consideração é a acertada, e, face a ela, há que concluir que o mesmo foi interposto dentro do prazo legalmente previsto.
3. Confirmando a decisão que admitiu o presente recurso, há agora que apreciar e decidir a questão de constitucionalidade posta pelo Ministério Público a este Tribunal, face à recusa de aplicação, pelo tribunal recorrido, das normas constantes da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, por violação do princípio da segurança jurídica e do princípio da proteção da confiança legítima, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático, a que se refere o artigo 2.º da Constituição da República.
3.1. A Lei cuja aplicação foi recusada compõe-se apenas de dois artigos com o seguinte teor:
«Artigo 1.º
(Norma revogatória)
É revogado o Decreto-Lei n.º 188/2008, de 23 de setembro.
Artigo 2.º
(Entrada em vigor e produção de efeitos)
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produz efeitos na data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 188/2008, de 23 de setembro».
O diploma revogado visou «introduzir nas bases do contrato de concessão do direito de exploração, em regime de serviço público, do terminal portuário de Alcântara as alterações necessárias à implementação de soluções destinadas ao desenvolvimento e renovação desse terminal, em virtude das novas circunstâncias verificadas no mercado dos servições portuários e, de igual modo, em conformidade com um novo plano de investimentos que importa concretizar». Lê-se, ainda, na respetiva Exposição de motivos o seguinte:
«Na sequência da celebração, em 18 de dezembro de 1984, do referido contrato de concessão, foi celebrado e aprovado o plano geral do terminal, nos termos da base III, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 287/84, de 23 de agosto, e da correspondente cláusula terceira do contrato de concessão, no qual se definiram os principais investimentos a realizar com vista ao desenvolvimento e cabal apetrechamento do terminal portuário de Alcântara.
Mais de duas décadas volvidas sobre a elaboração do mencionado plano, é absolutamente vital proceder à respetiva revisão, com os ajustamentos posteriormente introduzidos. Com efeito, o enorme impacto do crescimento e globalização da economia ao nível dos transportes marítimos e do mercado de serviços portuários determinou, nos últimos anos, um fortíssimo aumento da procura dos serviços prestados no terminal portuário de Alcântara. Atendendo à configuração do terminal, tal aumento obriga, porém, ao significativo incremento da respetiva capacidade, sob pena de se atingirem níveis de congestionamento impeditivos da adequada realização dos relevantes fins de interesse público subjacentes à sua exploração.
Simultaneamente, cabe destacar a necessidade de aperfeiçoamento e de renovação das condições existentes no terminal da Alcântara, em face dos avanços tecnológicos observados, em particular no que toca à dimensão e configuração dos navios porta-contentores. De facto, uma das principais exigências que se impõe à exploração do terminal portuário de Alcântara, no âmbito de um setor de atividade extremamente dinâmico e concorrencial, respeita precisamente ao aumento da produtividade dos sistemas e equipamentos de movimentação, transporte e ligação terrestre utilizados.
Deste modo, importa atuar no sentido de conferir, com urgência, ao terminal portuário de Alcântara a dimensão e as plataformas logísticas necessárias à eliminação dos constrangimentos ao seu eficaz e eficiente funcionamento. Caso contrário, ainda antes de 2010, o terminal, com os seus atuais limites físicos e equipamentos, não terá condições, no atual contexto altamente competitivo do setor portuário, para desempenhar adequadamente o decisivo papel que lhe está cometido no mercado nacional e internacional da receção e movimentação de carga contentorizada».
Para o enquadramento da Lei n.º 14/2010 e já com relevo para o que importa apreciar e decidir há que considerar os factos que o tribunal arbitral considerou relevantes, entre outros, para a decisão da causa:
“1º - Desde 18 de Dezembro de 1984, acham-se a A. – esta, sucedendo agora à «Administração do Porto de Lisboa» – Instituto Público, o qual, por sua vez, sucedera já à primitiva subscritora do contrato, a «Administração Geral do Porto de Lisboa», AGPL – e a B. ligadas por um Contrato de Concessão, mediante o qual foi e se encontra atribuído à segunda o direito de exploração, em regime de serviço público, de um terminal de contentores na zona portuária de Alcântara (doravante, TCA).
2º - Tal Contrato – celebrado após adjudicação precedida de concurso público internacional – foi inicialmente autorizado pelo Decreto-Lei nº 287/84, de 23 de Agosto, o qual, em Anexo, definiu também as Bases a que aquele devia obedecer.
3.º - Nos termos do nº 1 da Base XII e do nº 1 do artigo 12º do Contrato, o prazo da concessão era de 20 anos, a contar da data da entrada em exploração do terminal – facto este ocorrido em 5 de Maio de 1985.
4º - Porém, mediante um primeiro aditamento ao Contrato, de 19 de Dezembro de 1997, em que foi acordada a assunção e a realização, pela Concessionária, de novos investimentos, em ordem à ampliação do terminal – e tendo em conta o disposto no nº 2, tanto da Base como do artigo antes citados, nos quais se previa a possibilidade da prorrogação, em certos termos, da concessão – foi esta efetivamente prorrogada por dois novos períodos de 5 anos, ou seja, até 5 de Maio de 2015.
5º - Entretanto, foi o Contrato objeto de um novo acordo modificativo, de 3 de Novembro de 1998, visando eliminar uma restrição respeitante às condições de acesso de navios ao terminal.
6º - A partir dos finais da década de 90, do século passado, e dos inícios da primeira década do presente século, assistiu-se a um acentuado e mesmo a um exponencial aumento da procura dos serviços do TCA, a que houve a maior dificuldade em dar resposta. Tal facto, conjugado com insuficiências nas acessibilidades ao TCA, provocou o congestionamento deste e originou mesmo a quebra da sua procura.
Por outro lado, assistiu-se no mesmo período a uma enorme evolução e a um grande crescimento do sector do transporte marítimo de contentores (que cresceu quase o triplo da economia mundial), evolução e crescimento esses ligados, designadamente e em particular, ao grande desenvolvimento tecnológico verificado nos correspondentes navios transportadores, com cada vez maior comprimento, mais fundo calado e maior capacidade (em termos antes não imaginados) – sendo que as condições do TCA se revelavam claramente insuficientes e as suas infraestruturas se mostravam insuscetíveis de corresponder a uma tal evolução.
7º - Face aos constrangimentos à operacionalidade do TCA e à crescente desatualização das suas condições, decorrentes das circunstâncias acabadas de referir, surgiu, assim, a necessidade de encarar a superação de tal situação, em ordem a assegurar a competitividade do mesmo Terminal e do Porto de Lisboa, num mercado caracterizado por forte e intensiva concorrência internacional – garantindo-lhes os níveis mínimos de eficiência e fiabilidade exigidos por esse mercado e pela necessidade de responder às estratégias de desenvolvimento encetadas pelos restantes portos europeus.
8º - Foi neste quadro que, no decurso da década de 2000, a A. solicitou estudos de análise da situação, estudos esses que apontaram para a necessidade e conveniência de uma intervenção no Porto de Lisboa e de expansão do TCA – sendo certo que é este o único terminal que nesse porto tem capacidade para receber o chamado tráfego deep sea.
9º - A premência de expansão do TCA tornou-se entretanto mais visível, e absolutamente forçosa, a partir do ano de 2007, no qual se verificou um crescimento do valor de movimentação de mais de 11%, relativamente ao ano anterior, e prevendo-se para os anos seguintes uma tendência de crescimento de dois dígitos.
10º - A mesma situação e os mesmos problemas antes descritos foram identificados e o caminho para a sua solução apontado nas Orientações Estratégicas para o Setor Marítimo-Portuário, aprovadas pelo Governo em dezembro de 2006.
Nesse documento reconhecendo-se a já referida circunstância de o TCA, operado pela B., ser o único, em Lisboa, capaz de receber o tráfego deep sea, e que este é o que apresenta maior peso na movimentação operada pela empresa; considerando o esperado crescimento substancial do mesmo tráfego; e recordando, por outro lado, as dificuldades verificadas nas acessibilidades terrestres ao terminal - apontam-se logo as seguintes soluções:
a) promoção, durante o ano de 2008, de ações tendentes ao alargamento do TCA;
b) aposta nas ligações fluviais, de forma a minimizar os constrangimentos das acessibilidades terrestres.
11º - Estas soluções foram, seguidamente, desenvolvidas no Plano Estratégico do Porto de Lisboa, publicamente divulgado peia APL em 2007 – do qual consta, como um dos principais objetivos, o desenvolvimento do tráfego de contentores.
Nesse Plano – registando-se a urgência de uma resposta às solicitações crescentes de definição de uma estratégia portuária quanto à movimentação de carga contentorizada no Porto de Lisboa – sustenta-se justamente que essa resposta deveria traduzir-se na implementação de medidas de expansão do TCA, com a expansão física das instalações existentes e de acordo com as alternativas técnicas também nesse Plano selecionadas. Tais medidas deveriam ser implementadas entre 2007 e 2013 – ou seja, antes ainda do termo da vigência do Contrato de Concessão. (Tudo como mais detalhadamente se descreve nos nºs 41 a 45 do Acórdão de 28 de abril, para onde se remete).
12º - Neste contexto – e assim, pois, atendendo às orientações previamente definidas pelo Governo e pela A., nos documentos antes referidos, e em ordem a assegurar o seu cumprimento – veio a B., em novembro de 2007, a apresentar à A. uma proposta de expansão e modernização do TCA, contemplando a realização de um novo plano de investimentos no terminal (de harmonia com as soluções preconizadas nos mesmos documentos), visando, designadamente, os seguintes objetivos: – a atribuição da capacidade necessária para satisfazer a procura de serviços de movimentação de contentores e para receber os maiores navios porta-contentores; – a prevenção do congestionamento do terminal e consequente perda de competitividade dos seus serviços; – o melhoramento das infraestruturas ferroviárias relacionadas com o terminal; – e o reordenamento da zona ribeirinha de Alcântara.
13º - Nessa proposta defendia-se a admissibilidade da modificação do Contrato de Concessão com vista à realização das obras em causa e, a um tempo, a necessidade da prorrogação do prazo de concessão, para possibilitar a amortização dos investimentos a realizar.
14º - À apresentação da proposta intencionada seguiram-se negociações, entre a A. e a B., que decorreram entre o final de 2007 e o 1º quadrimestre de 2008, para análise do plano de investimentos apresentado e das suas implicações em termos de alteração do Contrato de Concessão – ou seja, sobre o modus faciendi, não só nas vertentes técnica e económico-financeira, como na vertente jurídica, da implementação do projeto de expansão e modernização do TCA desenhado nessa proposta.
15º - E assim é que – se a A. validou tecnicamente as soluções apresentadas pela B. – já no procedimento ou caminho a adotar, no plano das soluções jurídicas, para a implementação do projeto, não deixou ela de considerar (de acordo com estudos que nesse sentido promoveu) três hipóteses alternativas: (i) rescisão unilateral do Contrato de Concessão, seguida da abertura de um procedimento administrativo com vista à constituição de uma nova concessão; (ii) rescisão unilateral do Contrato de Concessão, seguida da administração direta do TCA pela APL; (iii) modificação do Contrato de Concessão de modo a integrar o projeto de expansão e modernização do Terminal, ficando a B. responsável pela sua execução.
16º - Ponderadas pela A., em conjunto com a respetiva tutela, essas alternativas, veio a A. a considerar, de todo o modo, que a última – a da modificação do Contrato era a que melhor servia o interesse público e a única que permitia acautelar a urgência inerente à sua realização (cfr. «Considerandos» N a Q do «Memorando de Entendimento» referido a seguir). E, isso, desde logo pelas delongas e consequente diferimento da execução das obras (incompatível com a necessidade de evitar o esgotamento do Terminal) a que qualquer das outras obrigaria, e, bem assim, pelos custos financeiros que implicariam.
17º - Fixada essa orientação, as negociações entre as Partes vieram a culminar na celebração, em 28 de abril de 2008, de um Memorando de Entendimento, outorgado conjuntamente, não só pela A. e pela B., mas também pelo Estado Português e ainda pela REFER, REDE FERROVIÁRIA NACIONAL, E.P.. e pela C.,S.A. – «Memorando» no qual, após se reconhecer como premente a necessidade de aprovação e execução de um novo plano de investimentos para o TCA (cfr. considerando K), se procedeu à definição dos principais aspetos a contemplar nas negociações que irão decorrer referentes à modificação pactuada do Contrato de Concessão, bem como o conjunto de compromissos acessórios a cargo de cada uma das partes que se consideram adequados em ordem à plena efetivação dos investimentos a realizar” (cfr. Considerando Q).
18º - No que toca aos aspetos ou pontos a serem considerados na modificação do Contrato, são eles os que detalhadamente se enunciam nas alíneas e subalíneas do 1 do «Memorando» – transcritas na íntegra no n.º 63 do Acórdão de 28 de abril, para onde se remete e se dá aqui por reproduzido.
19º - Entretanto, no n° 5 do «Memorando», ficou expressamente estipulado que a APL solicitaria à respetiva tutela que fossem aprovados os competentes instrumentos legislativos e regulamentares e desencadeadas as demais diligências que fossem consideradas adequadas e necessárias ao enquadramento normativo das modificações a introduzir nos contratos de concessão de exploração dos terminais de contentores de Alcântara e de Santa Apolónia e, bem assim, à obtenção dos compromissos de entidades terceiras.
20º - Prosseguindo então as negociações entre a A. e B., na linha balizada pelo «Memorando», culminariam elas na assinatura, em 28 de julho de 2008, de um Termo de Acordo, em quem as Partes definiram e aprovaram as alterações a introduzir no Contrato (em ordem ao pretendido objetivo de expansão e modernização do TCA), alterações essas a constar de um «Aditamento» ao mesmo Contrato, e cuja «Minuta» constitui o Anexo 1 do dito «Termo de Acordo».
21º - Por outro lado, no nº 2 desse mesmo «Termo de Acordo» ficou consignado que será de imediato enviada ao Governo a minuta de Aditamento referida no ponto anterior, bem corno uma proposta de Decreto-Lei contendo alterações às bases da concessão anexas ao Decreto-Lei n.º 287/84, de 23 de agosto, e a autorização à APL para, em conformidade outorgar o Aditamento ao Contrato de Concessão nos termos acordados, que se junta como Anexo 2 ao presente Termo de Acordo.
22º - As Partes condicionaram assim, nos termos acabados de referir, a formalização do «Aditamento», consubstanciando as alterações ao Contrato, à aprovação e entrada em vigor do competente diploma legislativo que procedesse à alteração das Bases da Concessão, aprovadas pelo Decreto-Lei n° 287/84.
23º - Tendo a APL enviado de imediato ao Governo a Minuta do «Aditamento» bem como a proposta de diploma Legislativo antes mencionada, foi esse diploma aprovado em Conselho de Ministros, em 7 de agosto de 2008, e veio o mesmo, após a subsequente promulgação, a converter-se no Decreto-Lei n.º 188/2008, de 23 de setembro.
24º - Através desse Decreto-Lei – em cujo Preâmbulo volta a acentuar-se a necessidade de aperfeiçoamento e de renovação das condições existentes no terminal de Alcântara e a necessidade de um significativo incremento da respetiva capacidade, sob pena de se atingirem níveis de congestionamento impeditivos da adequada realização dos relevantes fins de interesse público subjacentes à sua exploração – deu o Governo o seu assentimento ao acordado entre a A. e a B. quanto à alteração do Contrato que as ligava, autorizando as Partes (artigo 3°) a celebrarem um «aditamento» ao mesmo Contrato consubstanciando essa alteração, e introduzindo, ele próprio, nas primitivas Bases da Concessão, tal como constantes do Anexo ao Decreto-Lei n° 287/84, as correspondentes modificações (artigos 1º e 2º), habilitadoras desse «aditamento».
25º - Emitido o Decreto-Lei nº 188/2008, vieram então a A. e a B. a celebrar, em 21 de outubro de 2008, o Aditamento ao Contrato de Concessão de Exploração do TCA (doravante, «Aditamento») e diversos outros instrumentos contratuais a ele anexos, necessários à sua concretização.
26º - Com a celebração do «Aditamento» – em cujos «Considerandos» volta a encontrar expressão o contexto de premência ou urgência que a determinou – concretizou-se o objetivo e encerrou-se o procedimento tendente a viabilizar a necessária expansão e modernização do TCA – abrangendo a sua ampliação e reorganização, o seu reapetrechamento e a melhoria das suas acessibilidades marítimas e ferroviárias.
(…)
33º - Entretanto, emitido o Decreto-Lei n.º 188/2008, foi o mesmo objeto de um processo de apreciação parlamentar, nos termos do artigo 169º da Constituição, o qual, todavia, com a rejeição da proposta de resolução de cessação da vigência desse diploma, se saldou pela sua manutenção em vigor, sem alterações.
34º - Em 23 de julho de 2010, foi publicada no Diário da República a Lei n.º 14/2010, que revogou o Decreto-Lei nº 188/2008, nos seguintes termos – que são os seus únicos artigos, que passam a transcrever-se: (…)
35º - Logo após a celebração do «Aditamento», a B. procedeu à elaboração dos estudos e projetos necessários à realização do respetivo Plano de investimentos, submetendo-os à aprovação da APL e demais entidades competentes – obtidas as quais passou à execução das correspondentes obras, ao mesmo tempo que adquiria o equipamento previsto, consoante a calendarização fixada para o efeito. De tal sorte que, à data da Contestação já se encontravam concluídas as obras e instalados os equipamentos referidos no n.º 101 do Acórdão de 28 de abril [acórdão do tribunal arbitral a fixar os factos]”.
Para a compreensão rigorosa do contexto em que é aprovada, na Assembleia da República, a Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, é igualmente importante considerar o seguinte:
a) Em 10 e 22 de outubro de 2008 deram entrada na Assembleia da República dois requerimentos, em que se pedia, nos termos do artigo 169.º da Constituição, a apreciação parlamentar do Decreto-Lei n.º 188/2008, de 23 de setembro – Pedido de apreciação parlamentar n.º 94/X, do PSD, e Pedido de apreciação parlamentar n.º 97/X, do PCP, respetivamente. Em 29 de novembro de 2008, o PSD apresentou o Projeto de Resolução n.º 400/X de cessação de vigência do mesmo Decreto-Lei e o Projeto de lei n.º 605/X visando conferir eficácia retroativa à cessação de vigência do diploma. Foram ainda apresentados projetos de resolução idênticos pelo BE (n.º 407/X) e pelo PCP (n.º 408/X).
Em 3 de dezembro de 2008 teve lugar a discussão conjunta destas iniciativas (Diário da Assembleia da República I, N.º 21/X/4, de 4 de dezembro). No dia seguinte, o Projeto de Resolução n.º 400/X foi votado e rejeitado, ficando prejudicados os outros projetos de resolução, bem como a votação, na generalidade, do projeto de lei (Diário da Assembleia da República I, N.º 23/X/4, de 5 de dezembro). Entretanto, os pedidos de apreciação parlamentar baixaram à Comissão de Obras Públicas, Transportes e Comunicações, tendo caducado as iniciativas em 14 de dezembro de 2008;
b) Durante o período que mediou entre a publicação do Decreto-lei n.º 188/2008 e a aprovação da Lei n.º 24/2010, o Tribunal de Contas fez um relatório [Relatório n.º 26/2009 – «Concessão do Terminal dos Contentores de Alcântara (Adenda 2008) – Porto de Lisboa. Auditoria à “Gestão das Concessões/PPP Portuárias”»], com data de 14 de julho de 2009, disponível em http://www.tcontas.pt/pt/atos/rel_auditoria/2009/audit-dgtc-rel026-2009-2s.pdf], cuja Conclusão, constante da página 18 desse documento, se transcreve:
“Em conclusão, o Tribunal não pode deixar de relevar que este contrato de concessão, celebrado pela A., não consubstancia nem um bom negócio, nem um bom exemplo, para o Setor Público, em termos de boa gestão financeira e de adequada proteção dos interesses financeiros públicos, atentas as seguintes principais razões:
Por um lado, porque se trata de um contrato renegociado em regime de ajuste direto, sem o recurso a qualquer procedimento competitivo, o que fragilizou a posição negocial do concedente público;
Por outro lado, porque o contrato foi renegociado sem a fixação prévia, pelo concedente público, de critérios objetivos e rigorosos de value for money, o que originou que os resultados alcançados com as negociações acabassem por traduzir uma perda de valor não só em relação ao contrato anterior, como, igualmente, no que toca às condições iniciais estabelecidas no Memorando de Entendimento;
Também, porque, estando em causa uma PPP, o contrato que o concedente público assinou se mostra desequilibrado quer no tocante à partilha de risco, pela elevada exposição que confere ao concedente naquele domínio, quer, igualmente, pela expectativa de remuneração acionista de quase 14% que consentiu, objetivamente desproporcionada ao grau de risco incorrido pela concessionária, no projeto.
Com efeito, bastava que a TIR acionista inicial de 11%, proposta pela concessionária e subjacente ao modelo financeiro do Memorando de Entendimento, tivesse sido mantida pelo concedente, para que o referido prazo de 27 anos tivesse naturalmente sofrido uma redução da ordem dos 10 anos.
Ainda, porque o contrato subscrito pela A. não foi precedido nem de uma análise, nem de uma avaliação quantitativa dos riscos a incorrer pelo concedente público, em especial, os relativos às cláusulas de reequilíbrio financeiro introduzidas na sequência das negociações com os bancos financiadores.
Finalmente, porque a oportunidade da celebração deste contrato, face à conjuntura económica e financeira já visível quando ele foi finalizado e assinado, é objetivamente questionável, atenta a onerosidade das condições de financiamento contratualizadas, bem como a nova extensão do prazo da concessão, que acabou por comprometer o concedente público por mais 27 anos»;
c) Em março de 2010, o Ministério Público propôs ação administrativa comum sob a forma ordinária contra a A., S.A., e a B., S. A. no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, para «declaração de nulidade do contrato público de concessão celebrado entre o concedente público A. e a concessionária B. em julho de 2008».
É este o contexto que rodeia a emissão da Lei n.º 14/2010, através da qual a Assembleia da República viria a decidir a revogação, com efeitos retroativos, do Decreto-lei n.º 188/2008, que autorizara a A. a celebrar o Aditamento ao Contrato de Concessão e redefinira as bases a que este último deveria obedecer. Releva, ainda, para o que importa apreciar e decidir, o que consta da Exposição de motivos do projeto de lei, da autoria do PSD, que deu origem àquela lei – Projeto de Lei n.º 63/XI:
«O Dec.-Lei n.º 287/84, de 23 agosto veio autorizar a Administração do Porto de Lisboa “a contratar com empresa após concurso público, a concessão do direito de exploração em regime de serviço público de um terminal de contentores nas instalações portuárias de Alcântara Sul”, sendo a “concessão outorgada após homologação em Conselho de Ministros.”
Estipulava ainda aquele diploma que o prazo de concessão seja de 20 anos, podendo a Administração mediante novo contrato, estabelecer um novo regime de exploração, por um ou mais períodos de 5 anos.
O Dec.-Lei n.º 298/93, de 28 de agosto de 1993 veio estabelecer o regime jurídico das operações portuárias, prevendo a concessão de serviço público, que a realizar-se deverá passar pela adjudicação mediante concurso público, nas condições do programa e caderno de encargos elaborado pelas autoridades portuárias e pelos ministros da tutela sectorial de acordo com as bases gerais das concessões estabelecidas por decreto-lei.
Por seu lado, o Dec.-Lei n.º 324/94, de 30 de dezembro veio “estabelecer as bases gerais das concessões do serviço público de movimentação de cargas nos cais e terminais portuários, tal como previsto no Dec.-Lei n.º 298/93, de 28 de Agosto, determinando na sua Base XIII que “o contrato é outorgado por prazo determinado, não superior a 30 anos”.
Ora o Dec.-Lei n.º 188/2008, de 23 de setembro, alterando as bases do contrato de concessão do direito de exploração, em regime de serviço público, do terminal portuário de Alcântara, concretamente a base XII, determinou que a concessão vigorará até 31 de Dezembro de 2042.
O Tribunal de Contas refere no seu Relatório de 27 de setembro de 2007, com o n.º 23/2007-2ª Secção, Auditorias às Administrações Portuárias na sua página 8 que “a APL-Administração do Porto de Lisboa, líder no movimento de carga geral contentorizada, apresenta desafogadas capacidades instaladas e disponíveis, para fazer face a eventuais crescimentos do movimento de contentores.”
Alertava ainda o Tribunal de Contas no mesmo relatório para o “limite de 30 anos imposto por lei” e para a necessidade de o cumprir, salientando que o não cumprimento da lei é opositora “aos benefícios da livre concorrência por encerrarem o mercado por períodos de tempo excessivamente longos”.
E ainda que, para o facto de a capacidade nacional de movimentação de carga contentorizada adicional disponível ser de 10.395 mil Toneladas, o que, sabendo-se que a movimentação em 2006 foi de 5.198 mil Toneladas em Lisboa permite concluir que a capacidade disponível nacional excedentária é superior a 50%.
Acrescente-se que a APSS-Administração Portuária de Setúbal e Sesimbra, vizinha de Lisboa tem utilizada apenas 5% da sua capacidade relativa a carga contentorizada, e que o Porto de Sines recebeu elevados investimentos, supostamente relacionados com a intenção de captar carga contentorizada para aquele porto.
Entretanto veio o Governo garantir a “legalidade da concessão até 2042 do terminal de contentores de Alcântara à B.”, com a justificação de “não estar em causa a celebração de novo contrato” para concretizar uma prorrogação por 27 anos, de onde resulta que a duração da concessão será assim de 57 anos sem existência de um concurso público.
O projeto Nova Alcântara anunciado em Abril último pelo Governo prevê entre outras obras o enterramento da Linha de Cintura e a construção de uma única estação com acesso subterrâneo, a ligação daquela linha à linha de Cascais através de um túnel, a interligação ao Metro de Lisboa e obras para tornar o TCA um deep-sea port, e ainda a criação de zona de acostagem e operação de barcaças, garantindo o Governo na sua apresentação que tudo estará concluído até 2013.
Foi sublinhada na iniciativa parlamentar a estranheza desta urgência no prolongamento de uma concessão à revelia das mais elementares regras e conclusões do Tribunal de Contas, o prejuízo para a zona com a criação de uma muralha intransponível, quando o próprio presidente da A. num seminário em Bruxelas citado pela comunicação social em Outubro referia que “o maior problema do Porto de Lisboa não é de capacidade, e sim de acessibilidades”, informando que o Acordo da nova concessão com a B. seria assinado nesse mês.
A Apreciação Parlamentar do PSD bem como a do PCP, e o Projeto de Lei do PSD no sentido de fazer retroagir a cessação de efeitos na vigência do Decreto-Lei nº 188/2008, de 23 de setembro, viriam a ser rejeitados pela maioria socialista com exceção de um deputado.
Posteriormente, veio o Tribunal de Contas referir no seu Relatório de auditoria datado de 21 de julho de 2009 - e referindo-se ao contrato de concessão celebrado entretanto pela A. (A.) prorrogando a concessão à B. do Terminal de Contentores de Alcântara (TCA) - que “não consubstancia nem um bom negócio, nem um bom exemplo, para o Sector Público, em termos de boa gestão financeira e de adequada proteção dos interesses públicos”.
A própria Controladora Financeira do Ministério referiu que «o risco de fragilizar a imagem e a situação financeira do Concedente, por ter concedido condições demasiado generosas e onerosas para ele, aumenta na atual conjuntura de crise. Na indisponibilidade de financiamento privado para as PPP, seria preferível retomar o investimento público no regime PIDDAC, do que eternizar as atuais condições onerosas.», conforme citação do referido relatório do Tribunal de Contas.
As estatísticas oficiais de movimento de contentores não ajudam a justificar a precipitada decisão: “Em 2008 o movimento de contentores baixou para o nível de 2002.
Em 2009, no primeiro trimestre, o Terminal perdeu as duas principais linhas de navegação que serviam o porto - a CSAV Norasia e a CMA-CMG/Evergreen. Portugal e o mundo sofrem uma crise internacional que se arrasta desde 2007. As estatísticas oficiais referentes aos primeiros 7 meses do ano de 2009 evidenciam quebras face ao ano anterior.
É por isso incompreensível aos olhos de todos a justificação da prorrogação apressada da concessão pelo Governo, com base em estudos duvidosos que apostam no aumento de movimento esperado.”
Considerando que se mantém atuais todos os fundamentos de crítica anteriormente invocados e que em síntese o referido contrato não serve o interesse público, importa proceder à revogação, com eficácia retroativa, do Decreto-Lei n. 188/2008, de 23 de setembro».
3.2. O tribunal arbitral entendeu que as normas da Lei n.º 14/2010 violavam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, decorrentes do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa e, por isso, julgou inconstitucionais quer o artigo 1.º quer o artigo 2.º do diploma da Assembleia da República. Contudo, a conclusão a que chegou foi precedida da análise de um outro fundamento possível de inconstitucionalidade que acabou por ser afastado. Esse outro fundamento foi o da violação do princípio da separação dos poderes. No quadro geral deste princípio, o tribunal demorou-se particularmente na análise da questão de saber se a “decisão” tomada pela Assembleia da República sob a forma de lei se incluiria ainda no âmbito dos poderes que àquela Assembleia são pela Constituição atribuídos, ou se, pelo contrário, o legislador parlamentar não teria aqui “invadido” a esfera de atuação que, nos termos da Constituição, apenas compete ao Governo. Este último argumento de inconstitucionalidade foi afastado, pelo que o juízo feito fundou-se apenas em violação dos princípios da “segurança jurídica” e da “proteção da confiança”.
O enquadramento jurídico-constitucional de que partiu o tribunal recorrido é o de que, no tocante ao legislador, as exigências dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança hão de compaginar-se com o princípio da revisibilidade da lei, decorrente do princípio democrático. Sublinha-se no acórdão arbitral que “não pode toda e qualquer expectativa da comunidade jurídica em geral, ou dos membros dela que vão ser diretamente afetados, constituir obstáculo à alteração da ordem jurídica exigida pelo interesse público, ou pela nova avaliação que dele faz o legislador (o legislador democrático). Há aí, pois, uma «ponderação» a fazer, mas há, de todo o modo, limites – sob pena da subversão da «estadualidade de direito»”.
Após o enquadramento inicial do problema, a decisão recorrida examinou a jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao princípio da proteção da confiança, dando particular destaque ao acórdão n.º 128/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), em que o Tribunal sistematizou os critérios elaborados em jurisprudência anterior (Acórdão n.º 287/90), clarificando que eles se reconduzem a quatro diferentes requisitos ou «testes».
Para o acórdão arbitral afigurou-se de primeira evidência que a Lei n.º 14/2010 claudicava face aos três primeiros testes, concluindo que não pode “subsistir nenhuma dúvida, de que a revogação, e a revogação retroativa, do Decreto-Lei n.º 188/2008, passados quase dois anos de vigência do «Aditamento» ao Contrato de Concessão, a que deu lugar, representou para a Demandada – para voltar a dizer agora com o acima citado Acórdão n.º 287/90 – uma frustração inesperada e «extraordinariamente onerosa», não apenas de uma sua «expetativa» inteiramente legítima, mas de um seu «direito» consolidado”.
Procedendo depois à apreciação do quarto teste, averiguando se no caso ocorria alguma razão de interesse público, suficientemente séria e ponderosa (isto é, não arbitrária) para dever prevalecer sobre a confiança do particular e justificar a emissão da Lei n.º 14/2010, o acórdão recorrido conclui que a revogação do Decreto-Lei n.º 188/2008 ficou a dever-se essencialmente a uma divergência «política» (ou político-partidária) relativamente à opção do Governo que se traduziu e concretizou na sua emissão, ou seja, uma discordância quanto à escolha e à decisão iniciais ou originárias do Governo, que estiveram na base do Decreto-Lei n.º 188/2008. Afastando que a revogação retroativa do Decreto-Lei n.º 188/2008, operada pela Lei n.º 14/2010, tenha como fundamento a emergência de uma qualquer razão «excecional», ou «específica» ou tão-só «nova» de interesse público, antes tendo sido unicamente fundada num novo juízo sobre o interesse público, reportado à data e às circunstâncias do diploma revogado, o tribunal a quo conclui que, numa «ponderação» segundo «o princípio da proporcionalidade», tal alteração pretérita do juízo sobre o interesse público não pode justificar a Lei n.º 14/2010, estando-se aqui perante uma normação arbitrária. Estando a «arbitrariedade» justamente no alcance retroativo dessa mesma normação.
Ainda de acordo com o acórdão arbitral, uma outra consideração revela a «desproporção» ou o «excesso» e, logo, a «arbitrariedade» da solução legislativa: é ela a relativa aos princípios jurídicos que regem os contratos administrativos, segundos os quais está garantido, em geral, à parte pública a faculdade de promover a sua modificação e o direito de promover a sua revogação ou resolução, mas apenas para o futuro. O mesmo devendo valer para o legislador quando seja ele próprio a visar indireta mas intencionalmente a revogação retroativa do diploma legal específico em que se fundou o contrato. Daqui decorrendo que as normas da Lei n.º 14/2010 violam de modo inaceitável, não só o princípio da proteção da confiança legítima dos destinatários da ordem jurídica, mas inclusivamente, na sua vertente objetiva, o princípio da segurança jurídica, enquanto um dos essentialia da ideia ou conceção do Estado de direito.
4. Como já foi referido, para aferir da tutela jurídico-constitucional da «confiança», o tribunal arbitral aplicou os quatro requisitos ou “testes” identificados no Acórdão n.º 128/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se lê o seguinte:
«No Acórdão n.º 287/90, de 30 de outubro, o Tribunal estabeleceu já os limites do princípio da proteção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas dotadas de «retroatividade inautêntica, retrospetiva». Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava-se da aplicação de uma lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroatividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de «retroatividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui proteção».
São estes quatro requisitos que importa agora verificar se estão ou não reunidos.
4.1. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da confiança é necessário, em primeiro lugar, que o Estado tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos particulares expectativas de continuidade. Requisito que não pode deixar de se dar por verificado. Com efeito, o Estado encetou comportamentos capazes de gerar na B. expetativas de continuidade da relação contratual firmada no «Aditamento ao Contrato de Concessão de Exploração do Terminal de Contentores de Alcântara». Num primeiro momento, criou expetativas quanto à constituição de tal relação contratual; num segundo momento, gerou uma expetativa fundada quanto à continuidade de determinada política portuária pública.
Num primeiro momento e na sequência da aprovação governamental, em dezembro de 2006, das Orientações Estratégicas para o Setor Marítimo-Portuário e da divulgação pela A., S.A., em 2007, do Plano Estratégico do Porto de Lisboa, esta entidade pertencente à administração indireta do Estado (sujeita a tutela governamental) negociou com a B., entre o final de 2007 e o 1.º quadrimestre de 2008, a proposta que esta entretanto apresentara de expansão e de modernização do Terminal de Contentores de Alcântara, o que envolvia também a alteração do Contrato de Concessão então vigente. Validadas tecnicamente pela A. as soluções apresentadas pela B. e ponderadas pela primeira, juntamente com a tutela, outras alternativas, fixou-se como orientação modificar o Contrato de Concessão de modo a integrar o projeto de expansão e modernização do Terminal, ficando a B. responsável pela sua execução.
Foi então celebrado um Memorando de Entendimento, em 28 de abril de 2008, outorgado conjuntamente e de forma alargada, pela A., pela B., pelo Estado português e, ainda, pela Refer, Rede Ferroviária Nacional, E. P. e pela C., S.A., nos termos do qual foi estipulado, entre o mais, que a primeira solicitaria à respetiva tutela que fossem aprovados os competentes instrumentos legislativos e regulamentares para o enquadramento normativo das modificações a introduzir no contrato de concessão de exploração do terminal de contentores de Alcântara. As negociações seguintes entre a A. e a B. culminaram na assinatura, em 28 de julho de 2008, de um Termo de Acordo, em que as partes definiram e aprovaram as alterações a introduzir no Contrato (a constar de um «Aditamento» ao mesmo) e onde ficou consignado o envio ao governo da minuta deste Aditamento, bem como uma proposta de Decreto-Lei contendo alterações às bases da concessão anexas ao Decreto-Lei n.º 287/84, de 23 de agosto.
Num segundo momento, o governo aprovou em Conselho de Ministros a proposta de diploma que havia sido consensualizada entre a A. e a B. (em 7 de agosto de 2008), a qual veio a converter-se no Decreto-Lei n.º 188/2008, de 23 de setembro, mediante o qual o legislador visou «introduzir nas bases do contrato de concessão do direito de exploração, em regime de serviço público, do terminal portuário de Alcântara as alterações necessárias à implementação de soluções destinadas ao desenvolvimento e renovação desse terminal, em virtude das novas circunstâncias verificadas no mercado dos servições portuários e, de igual modo, em conformidade com um novo plano de investimentos que importa concretizar». E através deste diploma o governo legislador estabeleceu até na Base XIV o limite temporal a partir do qual a A. poderia resgatar a concessão por motivos de interesse público – 5 de maio de 2025.
Na sequência deste diploma, passa a poder dizer-se que não estamos perante uma mera expetativa da B., mas antes, em bom rigor, perante um direito, contratualmente fundado, por via da celebração, em 21 de outubro de 2008, com a A. (entidade pertencente à administração indireta do Estado, sujeita a tutela governamental, repita-se) do «Aditamento ao Contrato de Concessão de Exploração do Terminal de Contentores de Alcântara» (fundado num diploma legislativo governamental). E a confiança quanto à continuidade do comportamento estadual é, obviamente, reforçada quando, em 4 de dezembro de 2008, o legislador parlamentar rejeitou o Projeto de Resolução n.º 400/X de cessação de vigência do Decreto-Lei n.º 188/2008, apresentado já depois da celebração do «Aditamento ao Contrato», ficando prejudicados outros projetos de resolução com o mesmo objeto, bem como a votação na generalidade do Projeto de lei que visava conferir eficácia retroativa à cessação de vigência daquele diploma. Por seu turno, os dois pedidos de apreciação parlamentar do Decreto-Lei n.º 188/2008, entrados a 10 e 22 de outubro de 2008 na Assembleia da República, não tiveram seguimento, tendo caducado tais iniciativas em 14 de dezembro do mesmo ano.
4.2. O segundo requisito já tem a ver com a exigência de as expetativas da B. serem legítimas, justificadas e fundadas em boas razões e também quanto a ele há que concluir positivamente. As expetativas de continuidade aqui em causa (no plano legislativo e no plano contratual) alicerçam-se no Memorando de Entendimento (também outorgado pelo Estado português), no Termo de Acordo assinado entre a B. e a A. (entidade da administração indireta do Estado, sujeita a tutela governamental), num diploma legislativo governamental (o Decreto-Lei n.º 188/2008) e no «Aditamento ao Contrato» (em que uma das partes é uma entidade da administração indireta do Estado, sujeita a tutela governamental – a A.). Além de estes documentos públicos terem por detrás todo um processo conducente à redefinição da política pública portuária, no qual a própria B. foi interveniente.
A circunstância de o «Aditamento ao Contrato» ter sido celebrado entre a apresentação do Pedido de apreciação parlamentar n.º 94/X, da autoria do PSD, e o seu desfecho (caducidade da iniciativa parlamentar) não desqualifica as expetativas: tal pedido não produz por si só qualquer efeito suspensivo da vigência do decreto-lei (artigo 169.º da Constituição); o pedido foi apresentado por um partido sem maioria parlamentar e o governo de então era apoiado no Parlamento por uma maioria. Por seu turno, também o Relatório n.º 26/2009 do Tribunal de Contas não teve o condão de abalar expetativas legítimas, justificadas e fundadas em boas razões quanto à continuidade do comportamento estadual consubstanciado no Decreto-Lei n.º 188/2008 e no «Aditamento ao Contrato» (e só este comportamento importa atento o teor da Lei n.º 14/2010). As conclusões de tal Relatório, além de suportarem as recomendações constantes de página 19, só poderiam relevar num outro plano, considerando os princípios jurídicos que regem os contratos administrativos: no plano da modificação unilateral do conteúdo das prestações contratuais e da rescisão unilateral do contrato, por parte da A., nos termos do artigo 180.º do Código do Procedimento Administrativo; ou no plano da invalidade do contrato, por via de ação judicial (cf. infra ponto 4.4.).
4.3. Em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual, requisito que também importa dar como verificado. A decisão recorrida deu como provado que “logo após a celebração do «Aditamento», a B. procedeu à elaboração dos estudos e projetos necessários à realização do respetivo Plano de investimentos, submetendo-os à aprovação da A. e demais entidades competentes – obtidas as quais passou à execução das correspondentes obras, ao mesmo tempo que adquiria o equipamento previsto, consoante a calendarização fixada para o efeito”. Concluindo – o que se acompanha – que «é inquestionável, pois, que a Demandada fez, não apenas um grande, mas um total «investimento de confiança» na continuidade do diploma em que se fundara a celebração do «Aditamento» e, assim, também na continuidade deste – e do direito, e correlativas obrigações, que do mesmo lhe advinham».
Não basta, porém, concluir que estamos perante uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, a B. não podia contar: uma revogação retroativa do diploma legislativo governamental que suporta o «Aditamento ao Contrato», quase dois anos depois de ter sido celebrado e já em execução, após um significativo envolvimento desta parte contratual no período que antecedeu a emissão do Decreto-Lei n.º 188/2010 e ao arrepio dos princípios jurídicos que regem os contratos administrativos, já que se trata de revogação com repercussão direta e imediata no contrato celebrado (cf. infra, ponto 4.4.).
4.4. É ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa, o que implica a indagação das razões que terão motivado a Lei n.º 14/2010.
Indagando-as, é de concluir, por referência aos trabalhos parlamentares e à Exposição de Motivos do Projeto que lhe deu origem (Projeto de lei n.º 63/XI), que a Lei que revoga, com efeitos retroativos, o decreto-lei não se alicerça em razões de interesse público identificáveis já depois da celebração do «Aditamento ao Contrato» (cf. Diário da Assembleia da República, I Série, N.º 37/XI, de 26 de março de 2010). Apesar de referências pontuais às “estatísticas oficiais de movimento de contentores” e à crise económica, é de concluir antes por uma reavaliação do interesse público reportada ao tempo da emissão do diploma governamental de 2008. Como se diz na decisão recorrida «o que emerge (…) é, fora de dúvida, uma discordância quanto à escolha e à decisão iniciais ou originárias do Governo, que estiveram na base do Decreto-Lei n.º 188/2008: seja uma discordância quanto ao alargamento e prolongamento do TCA, à sua necessidade e aos seus impactos, seja uma discordância quanto ao caminho adotado para o efeito, de alteração e prorrogação, e por um prazo assaz longo, do Contrato de Concessão em vigor». E abonam neste mesmo sentido as iniciativas parlamentares que então se lhe seguiram, “renovadas” em 2010, com êxito, mercê da alteração da maioria parlamentar que apoiava o governo em 2008. Além de que a Lei de 2010 se limitou a revogar, com eficácia retroativa, um diploma que visou introduzir nas bases do contrato de concessão do direito de exploração, em regime de serviço público, do terminal portuário de Alcântara as alterações necessárias à implementação de soluções destinadas ao desenvolvimento e renovação desse terminal, sem qualquer outra normação que substituísse a anterior.
Procedendo a uma ponderação segundo o princípio da proporcionalidade, é de concluir que esta reavaliação do interesse público, com um menor peso valorativo se comparada com uma ponderação do interesse público motivada por razões supervenientes, não justifica, todavia, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expetativa da B.. A Lei n.º 14/2010 saldou-se numa afetação demasiado onerosa e arbitrária das expetativas criadas pelo comportamento estadual.
A afetação é demasiado onerosa face ao alcance retroativo da normação, por via da sua repercussão sobre o «Aditamento ao Contrato», celebrado quase dois anos antes. Foi precisamente por considerar que se mantinham atuais todos os fundamentos de crítica anteriormente invocados e que, em síntese, o referido contrato não servia o interesse público que o legislador parlamentar procedeu à revogação, com eficácia retroativa do Decreto-Lei n.º 188/2010 (Cf. Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 63/IX). Ponderando o interesse público, reportado ao tempo da emissão do Decreto-Lei n.º 188/2008, o legislador eliminou, para o passado, direitos que o particular havia adquirido contratualmente.
Por outro lado, a afetação das expetativas é arbitrária, na medida em que a revogação daquele Decreto-Lei, com produção de efeitos à data da sua entrada em vigor, se traduziu na resolução retroativa de um contrato, por iniciativa da “parte pública”. O que é contrário aos princípios jurídicos que regem os contratos administrativos; contrário a «um paradigma estruturado em torno de uma ideia axial: o equilíbrio ponderado entre, de um lado, o princípio da prossecução do interesse público, que justifica os preceitos determinantes da prevalência do contraente público (em regra associada à mutabilidade e adaptação do conteúdo contratual), e, do outro lado, a garantia dos interesses do co-contratante, para proteção da confiança e defesa dos seus interesses, designadamente em razão dessa mesma prevalência (em regra, associada à garantia da estabilidade e do equilíbrio das prestações contratuais)» [José Carlos Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, 3.ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 250].
O contraente público dispõe, entre outros, do poder de resolver unilateralmente o contrato por razões de interesse público (artigo 180.º do Código do Procedimento Administrativo; hoje, artigos 302.º e 334.º do Código dos Contratos Públicos). Mas sendo esta a causa da resolução e sendo esta unilateral apenas o poderá fazer para o futuro. Por outro lado, não dispõe a parte pública de poderes de autoridade em matéria de invalidade do contrato, sendo matéria da competência exclusiva dos tribunais quer a anulação quer a declaração de nulidade do contrato. Resulta, porém, dos trabalhos parlamentares e da Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 63/XI que muito do que foi invocado para revogar o Decreto-Lei n.º 188/2008, com eficácia retroativa, releva de causas de invalidade do contrato (por exemplo, o que se refere ao concurso público e ao prazo de prorrogação da concessão, aspetos que, entre outros, deram causa à ação administrativa interposta no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, ainda pendente).
Em suma, se estava vedado à parte pública (à Administração) resolver retroativamente o contrato por invocação do interesse público, «o mesmo há de entender-se quando seja o próprio legislador a visar, indireta mas intencionalmente, esse objetivo, revogando retroativamente o diploma legal específico em que o contrato se fundou. Não podia fazê-lo – consoante o fez, ou intentou fazê-lo, no caso – a Assembleia da República, como tão-pouco o poderia ter feito, também no caso, o Governo-legislador, através de um decreto-lei» (cf. ponto 38. do acórdão arbitral, supra ponto 2. do Relatório).
Impõe-se, pois, concluir pela inconstitucionalidade das normas constantes da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, por violação do princípio da proteção da confiança legítima.
5. A circunstância de as normas da Lei n.º 14/2010 contrariarem princípios jurídicos que regem os contratos administrativos não pode deixar de relevar também do ponto de vista do princípio da segurança jurídica, na sua vertente objetiva. Pese embora a revisibilidade da lei, a crédito do legislador, não é constitucionalmente tolerável que este a reveja pontualmente com efeitos que se esgotam num caso concreto (alterando o regime da resolução unilateral do contrato administrativo por razões de interesse público), com quebra da unidade e da identidade da ordem jurídica.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar improcedente a impugnação deduzida ao abrigo do artigo 76.º, n.º 3, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional;
b) Julgar inconstitucionais as normas constantes da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, por violação do princípio da segurança jurídica e do princípio da proteção da confiança legítima, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático, a que se refere o artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa; e, em consequência,
c) Negar provimento ao recurso interposto.
Sem custas.
Lisboa, 3 de março de 2014. – Maria João Antunes – José da Cunha Barbosa – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida nos termos da declaração de voto da Senhora Conselheira Maria Lúcia Amaral) – Maria Lúcia Amaral (vencida, conforme declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida, pelas seguintes razões:
1. As normas cuja aplicação o tribunal a quo recusou, e que agora se julgam inconstitucionais, integram uma decisão da Assembleia da República que, sob a forma de ato legislativo, revogou retroactivamente um outro ato legislativo que fora emitido pelo Governo dois anos antes.
Ao apreciar a questão de saber se a decisão tomada pela Assembleia da República sob a forma de lei se incluiria ainda no âmbito dos poderes que àquela Assembleia são pela Constituição atribuídos ou se, pelo contrário, o legislador parlamentar não teria “invadido” a esfera de atuação que, nos termos da CRP, apenas pertence ao Governo, a decisão recorrida concluiu no primeiro sentido.
Tal conclusão teve na sua base uma clara distinção entre o instrumento legislativo imediatamente habilitador do contrato de concessão e o contrato de concessão em si mesmo considerado, tendo-se entendido que a validade deste último estava dependente da existência e permanência na ordem jurídica do primeiro.
Quanto a esse ponto da fundamentação da decisão do tribunal a quo, o que mais interessa evidenciar é que nela se admite que podem ocorrer circunstâncias que justifiquem que o legislador “administrativo” confira a uma sua norma, mesmo a uma norma versando sobre as condições de validade de um ato ou contrato, eficácia ex tunc, ou retroativa, sem que isso signifique que tal ato perca a sua natureza de ato da função legislativa.
Com efeito – e acolhendo, quanto a este ponto, a fundamentação da decisão recorrida –, se o ato da Assembleia da República é o ato indispensável para que o aditamento ao contrato de concessão possa validamente subsistir e se não confunde portanto com ele, então, ter-se-á que concluir que tal ato integra uma lei habilitante do agir administrativo, pelo que não pode questionar-se a competência da Assembleia da República para sobre a matéria legislar (artigo 161.º, alínea c)). Ao emitir tal ato, o órgão parlamentar não está a administrar, está ainda a legislar. Mais do que isso, o órgão parlamentar está a levar a cabo a sua tarefa, decorrente do princípio da legalidade da Administração, na sua dimensão de preferência ou antecedência de lei, consistente em fixar orientações vinculantes para a Administração Pública, habilitando-a a agir.
Porque assim é, inexiste qualquer violação do princípio da separação dos poderes.
2. A competência para pré-ocupar normativamente determinada política pública a ser seguida pela Administração decorre, já o dissemos, do princípio da legalidade da Administração, na sua dimensão de preferência ou antecedência de lei, que, tal como o princípio da separação dos poderes, é um elemento material do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da CRP.
Ora, a subtração, efetuada por ato legislativo, de uma habilitação legal anteriormente concedida para a Administração levar a cabo determinada política pública nada tem de extraordinário, fazendo parte do normal funcionamento de uma ordem jurídica democraticamente organizada, caracterizada pela autorrevisibilidade da lei, podendo essa alteração ser ou não determinada pela alternância da maioria parlamentar.
É certo que o princípio do Estado de direito exige que a evolução da ordem jurídica se faça de modo contínuo, moderado e articulado, só assim logrando o Direito desempenhar a sua tarefa ordenadora da vida social e estadual. Em caso algum, porém, tal exigência de continuidade (Kontinuitätsgebot) configura uma ilimitada vinculação do legislador para o futuro. Ao legislador a ordem constitucional estabelece imperativos de regulação de uma sociedade livre e aberta ao conhecimento, o que requer uma permanente revisibilidade da produção normativa. A isso acresce que o próprio princípio democrático legitima a permanente alteração da normação produzida de modo a refletir, em cada ciclo político, as preferências dos indivíduos, expressas através dos seus representantes nos órgãos competentes para a emissão de legislação.
Além disso, o princípio da continuidade (sobre esse princípio constitucional v. Anna Leisner, Kontinuität als Verfassungsprinzip, Mohr Siebeck, Tübingen, 2002) encerra uma dimensão eminentemente objetiva. Fora das situações de afetação de posições jurídicas subjetivas que se insiram no domínio protegido de um direito fundamental (ou, como adiante se verá, de posições jurídicas de outro modo abrangidas pela tutela constitucional da confiança), os limites constitucionais à revisibilidade da lei, impostos pelo princípio da continuidade, reduzem-se a um mínimo que consiste em assegurar a unidade e a identidade da própria ordem jurídica. Do que se trata, portanto, é de uma exigência que tem por objetivo salvaguardar a permanência da ordem jurídica em si mesma considerada, i. é a sua fiabilidade enquanto sistema normativo ordenador da vida em sociedade de forma a assim preservar a sua força normativa, e não a permanência de uma determinada normação (v. Hartmut Maurer, Kontinuitätsgewähr und Vertrauensschutz, in: Isensee/Kirchhof (Hrsg.), HStR IV, 32006, § 79 Rn. 3). No que respeita ao conteúdo da produção normativa é ao poder legislativo a quem a Constituição comete a tarefa de conformá-lo – o que inclui a sua revisão para o futuro – estando vedado ao poder judicial substituir-se ao legislador no exercício daquilo que é específico da atividade legislativa do Estado.
No caso dos autos, apenas relativamente à norma do artigo 1.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho se poderia pôr, autonomamente, o problema da sua conformidade face ao princípio constitucional da continuidade. Na medida em que a referida norma vem revogar um ato legislativo anterior, com efeitos para o futuro, só ela é suscetível de pôr em causa a exigência de continuidade da atuação estadual. Já a apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 2.º, que vem destruir retroactivamente os efeitos produzidos pelo diploma revogado, convoca especificamente o princípio da proteção da confiança. Porque aí o eventual desvalor constitucional se situa estritamente em um plano jurídico-subjetivo, pressupondo a desconformidade constitucional da normação que a mesma afete posições jurídicas subjetivas, não é autonomamente convocável o princípio da continuidade, enquanto parâmetro jurídico-objetivo. É que de duas uma: ou a revogação retroativa do Decreto-Lei n.º 188/2008, operada pela norma do artigo 2.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, afeta ilegitimamente posições jurídicas subjetivas do particular, caso em que será inconstitucional com base em violação de um outro parâmetro (que não o do princípio da continuidade), ou a normação em questão não atinge essas posições jurídicas (ou as não atinge de modo ilegítimo), caso em que não existe qualquer desvalor constitucional no plano jurídico-subjetivo. À margem da afetação de posições jurídicas subjetivas, suscetível de violar o princípio da continuidade encontra-se apenas a norma do artigo 1.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, pois só relativamente a ela, na medida em que implica uma descontinuidade em relação ao passado, se poderá pôr o problema de uma vinculação do legislador para o futuro.
Ora, a norma do artigo 1.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho limita-se a revogar o Decreto-Lei n.º 188/2008, um instrumento normativo ordenador de uma concessão de um serviço público. Dada a tendencial evolução das condições em que um serviço público pode ser prestado – evolução essa de que o próprio teor do Decreto-Lei n.º 188/2008 é um exemplo –, os instrumentos normativos ao dispor do Estado não podem deixar de ser permanentemente revisíveis, reconhecendo-se ao legislador uma amplíssima margem de liberdade de conformação. E não se vê de todo em todo como é que a alteração da política portuária, consubstanciada na revogação do Decreto-Lei n.º 188/2008, operada pela norma do artigo 1.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, é suscetível de pôr em causa a garantia de permanência da ordem jurídica. Impedir que, neste domínio, a ordem jurídica reaja a novos desenvolvimentos levaria à perda de correspondência do Direito à realidade e, em consequência disso, à perda da sua força normativa.
É certo que, segundo a decisão recorrida, as razões que estiveram na base da aprovação da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho nada teriam que ver com a necessidade de adaptação da ordem jurídica face a novos desenvolvimentos ou a qualquer outra razão excecional, específica ou tão-só nova de interesse público, antes tendo a emissão desse diploma ficado a dever-se essencialmente a uma divergência política (ou político-partidária) relativamente à opção do Governo que se traduziu e concretizou na aprovação do Decreto-Lei n.º 188/2008. Simplesmente, quaisquer que possam ter sido essas razões, as mesmas são jurídico-constitucionalmente irrelevantes, não cabendo ao poder judicial, fora de situações de afetação de posições jurídicas subjetivas que se insiram no âmbito de proteção normativa de um direito fundamental ou de posições jurídicas de outro modo abrangidas pela tutela constitucional da confiança, inquiri-las.
Tal autolimitação do controlo está em harmonia com a conclusão a que se chegou relativamente à não verificação de uma violação do princípio da separação dos poderes. Com efeito, a partir do momento em que se entende que o ato legislativo em questão – a Lei n.º 14/2010, de 23 de julho – é, para todos os efeitos, uma lei, na aceção constitucional do termo, e que a função legislativa do Estado é caracterizada pela autorrevisibilidade, a qual, por sua vez, é fundada por um elemento que integra de modo estruturante o conceito constitucional de democracia – a regra da maioria –, é incongruente pôr em causa a representação do interesse público tal como revelada através do processo político-legislativo. A “garantia” de que o legislador parlamentar, quando delibera, o faz de acordo com uma certa representação do interesse público – no quadro da Constituição – dá-a a Lei Fundamental através da regra da deliberação maioritária. Fá-lo não por razões pragmáticas (porque não haja outro instrumento, numa sociedade plural, para que se obtenha o consenso quanto ao que é o “interesse público”) nem por razões de ciência (porque o acordo da maioria seja sinal de informação fiável quanto ao que é o interesse público) mas por razões de valor. O acordo do maior número quanto ao sentido de certa deliberação permite que, valorativamente, se identifique tal sentido com a prossecução do interesse público.
Quer isto dizer que não pode afirmar-se que uma “discordância político-partidária” sobre certo aspeto concreto, mas relevante, de prossecução de políticas públicas portuárias, se legitimamente expressa por deliberação do parlamento através de maioria, consubstancie, à evidência, uma forma “menor” ou “enfraquecida” de representação do interesse público por parte do legislador. Nada, na Constituição, permite o retirar de semelhante conclusão.
Porque assim é, inexiste qualquer violação do princípio da continuidade.
3. Resta saber se a revogação retroativa do Decreto-lei n.º 188/2008, operada pela norma do artigo 2.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, afeta ilegitimamente posições jurídicas subjetivas do particular, o que convoca a dogmática da proteção da confiança.
Por atribuir particular relevo à “retroatividade” da decisão revogatória contida na Lei n.º 14/2010 e por acolher com particular saliência as figuras dogmáticas da retroatividade autêntica e da retroatividade inautêntica, concluiu o tribunal a quo que, no caso, havia ocorrido uma retroatividade autêntica de «grau máximo» que pesou na sua ponderação quanto à inaceitabilidade da frustração das legítimas expectativas dos privados quanto à continuidade da ordem jurídica.
Num juízo destinado a averiguar do cumprimento ou incumprimento do princípio da proteção da confiança, a importância dada à retroação dos efeitos de certa medida legislativa – e ao seu grau de intensidade – faz todo o sentido. Como se sabe, e como tem salientado a jurisprudência do Tribunal (v., por exemplo, o acórdão n.º 129/2008), a construção dogmática do princípio, enquanto limite constitucional à livre sucessão de leis no tempo, fez-se em larga medida a partir de “casos” em que se julgavam leis autenticamente retroativas ou leis quasi-retroativas. A distinção entre um e outro tipo de “retroatividade”, e a questão de saber se, e em que medida, deveria haver limites constitucionais a uma e a outra, foi assim, desde o início, coeva da determinação do conteúdo do princípio da proteção da confiança, determinação essa que em larga medida se ficou a dever ao labor jurisprudencial do Tribunal Constitucional Federal alemão.
Numa questão como esta que agora nos ocupa, em que o juízo de inconstitucionalidade de uma lei se funda, precisamente, na verificação da violação do referido princípio, faz portanto todo o sentido, não apenas que se dê particular acolhimento às categorias dogmáticas da retroatividade autêntica e da retroatividade inautêntica, como também que se profira o juízo tendo em conta o “grau máximo” de retroatividade verificado no caso. Não será difícil concluir que, visando especificamente a proteção da confiança defender as pessoas de ilegítimas disrupções da ordem jurídica, será precisamente naqueles casos em que a lei pretenda valer para o passado que mais necessário se mostra conferir operatividade ao princípio [da proteção da confiança].
Importa, no entanto, analisar mais de perto esta estrita relação entre “retroatividade” (e os graus de que pode revestir-se) e o conteúdo do princípio da proteção da confiança, enquanto limite constitucional à livre sucessão de leis no tempo.
3.1. É indiscutível que na elaboração dogmática do princípio da proteção da confiança, tal como desenvolvida pela ciência do direito público europeia, assume relevância a distinção entre retroatividade autêntica e retroatividade inautêntica. Essa distinção, como atrás se disse, elaborou-a o Tribunal Constitucional Federal alemão logo numa decisão na década de sessenta do século XX (BVerfGE 11, 139) tendo-a mantido em jurisprudência reiterada.
De acordo com esta jurisprudência, a relevância da distinção residiria aqui: se, em princípio, a retroatividade autêntica é constitucionalmente proibida, já a retroatividade inautêntica seria pelo contrário, e também em princípio, constitucionalmente admissível (v. BVerfGE 51, 356 <362>). A diferença entre as duas categorias dogmáticas, tendo portanto um cunho gradativo e não conceptualmente disjuntivo (v. BVerfGE 72, 200 <242>), não isentaria o Tribunal de proceder a ponderações, em relação às situações em que cada uma delas ocorresse: tanto haveria que “pesar” ou de “contrabalançar” a solidez das expectativas dos privados na continuidade do direito (e a consistência do interesse público invocado pelo legislador para justificar a alteração da ordem jurídica) em situações de retroatividade inautêntica quanto nos casos de retroatividade em sentido próprio, sendo certo que, nestas últimas, seria à partida mais densa a tutela constitucional das posições jurídico-subjetivas dos privados. Em suma, a recondução da normação a uma dessas duas categorias não esgotaria por si só o exame jurídico-constitucional que sobre ela recaísse, sendo concebível – face aos resultados da ponderação efetuada – que uma situação de retroatividade inautêntica merecesse um juízo de censura constitucional e que, inversamente, uma situação de retroatividade em sentido próprio o não merecesse.
Na ordem jurídico-constitucional portuguesa a ponderação é por certo excluída se, com a retroatividade, a medida legislativa afetar negativamente uma certa posição jurídico-subjetiva que se inclua no âmbito de proteção de norma jusfundamental. É o que decorre do n.º 3 do artigo 18.º da CRP. Pode portanto afirmar-se que, diferentemente do que sucede com o Direito alemão, de onde proveio o tratamento dogmático das categorias da retroatividade para efeitos de “proteção de confiança”, a ordem constitucional portuguesa, ao estatuir que são expressamente proibidas “restrições” legislativas a direitos, liberdades e garantias que sejam dotadas de eficácia retroativa, terá partido seguramente do princípio segundo o qual, no que concerne a estes direitos, e sendo eles “restringidos” por lei, a ponderação entre o efeito retroativo da lei (a sua natureza e medida) e o interesse público que terá determinado a fixação desse efeito não é tarefa que caiba ao intérprete. O legislador constituinte desempenhou-a, uma vez que foi ele quem decidiu que, em casos de “restrições” de direitos, liberdades e garantias, não há ponderação a fazer. A retroatividade é sempre proibida, o que significa que a “proteção da confiança” do titular do direito prevalece sobre qualquer motivo de interesse público que tenha guiado ou induzido o legislador na decisão de conferir à lei força reguladora do passado.
Quer isto dizer que, sendo neste domínio maximamente comprimida (em direito português) a liberdade de conformação do legislador ordinário – que está pura e simplesmente proibido de editar leis restritivas de direitos, liberdades e garantias que sejam retroativas – a função da justiça constitucional, a verificar-se a proibição, será uma estrita função de reexame. Uma vez certificado que certa normação ordinária se encontra sob o âmbito de proteção de um direito constitucionalmente protegido (i); que esse direito tem a natureza de direito, liberdade e garantia (ii); que a norma ordinária que lhe diz respeito detém, quanto a ele, natureza restritiva (iii) e que à mesma norma é conferida eficácia retroativa (iv), segue-se, nos termos do n.º 3 do artigo 18.º da CRP, o juízo de inconstitucionalidade.
Assim sendo, e voltando ao caso, o primeiro exame que há a fazer em matéria de proteção da confiança, tendo agora em linha de conta a eficácia retroativa que a Lei n.º 14/2010 atribui, no seu artigo 2.º, à decisão de revogar o Decreto-lei n.º 188/2008, consiste em averiguar se a posição jurídico-subjetiva do particular que foi afetada pela decisão revogatória (os tais “direitos legalmente e contratualmente fundados”) se inscreve ou não no âmbito de proteção de uma norma constitucional que consagre um direito fundamental do “tipo” dos direitos, liberdades e garantias.
3.2. Poderia argumentar-se que, no caso, o Aditamento ao contrato de concessão teria investido o particular numa posição jurídica com conteúdo patrimonial à qual seria conferida a tutela constitucional própria dos direitos, liberdades e garantias, por se incluir tal posição jurídica no âmbito de proteção da norma constante do artigo 62.º, n.º 1 da CRP.
Se assim fosse – e se se concluísse em seguida que a Lei n.º 14/2010 tinha vindo efetivamente a restringir a posição jusfundamental do privado – não haveria dúvidas de que a restrição, ao pretender produzir efeitos retroativos, infringiria o disposto no n.º 3 do artigo 18.º da CRP. Aliás, se tal ocorresse, a inconstitucionalidade da medida não derivaria apenas da eficácia retroativa que o legislador lhe pretendesse atribuir, mas ainda do facto de, tratando-se aqui (como o diz a decisão recorrida) de uma “lei administrativa”, estar do seu conteúdo ausente a “generalidade” e a “abstração” que devem caracterizar, ainda nos termos do n.º 3 do artigo 18.º da CRP, as restrições impostas por lei a este tipo de direitos.
A verdade é, porém, que semelhante conclusão se apresenta inalcançável, desde logo por se não poder dar por verificada a premissa maior em que assenta: a de que a posição jurídica do privado, por se incluir ainda no âmbito de proteção da norma constante do n.º 1 do artigo 62.º da CRP, goza da especial tutela constitucional que é conferida aos direitos, liberdades e garantias.
É certo que o Tribunal tem dito, em jurisprudência constante, que a garantia constitucional da propriedade, ao ser um pressuposto ineliminável da autonomia das pessoas, não só detém na sua estrutura complexa uma certa dimensão de direito, liberdade e garantia, como se reporta a um conceito que é mais amplo do que o conceito civilístico de proprietas rerum. Como se disse, entre muitos outros, nos Acórdãos n.os 491/02, 273/04 e 620/04, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt: o direito de propriedade a que se refere o artigo 62.º da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade». Significa isto que, devendo incluir-se no âmbito de proteção da norma contida no n.º 1 do artigo 62.º da CRP situações patrimoniais outras que não apenas as respeitantes à propriedade das coisas e aos direitos reais menores, alguma tutela constitucional merecerão outros direitos, como aqueles que emergem de contratos.
Simplesmente, e quando se trata de conferir a essa tutela o alcance devido, tem sido também clara a jurisprudência do Tribunal.
O conteúdo concreto que, em certo momento histórico, adquirem estes direitos (sejam eles de que natureza forem), é um conteúdo conformado pela lei ordinária e não pela Constituição. É ao legislador ordinário, e não à lei fundamental, que cabe determinar como se constituem, como se modificam e como se extinguem estas posições jurídico-subjetivas; qual a sua estrutura, qual o seu conteúdo e limites. A conformação destes direitos pela lei ordinária deve ser feita nos termos da Constituição (artigo 62.º, n.º 1, in fine), o que implica para o legislador não apenas o cumprimento de princípios constitucionais materiais que sejam aplicáveis como o cumprimento suficiente de princípios constitucionais formais ou adjetivos, como sejam os relativos ao acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva (ver, por exemplo, os Acórdãos n.os 340/91, 494/94, 516/94, para além dos já citados Acórdãos n.os 273/04 e 620/04). Cumpridos que sejam estes limites, cabe porém à lei, e não à Constituição, a definição do conteúdo desses direitos.
Dificilmente por isso se poderá qualificar a Lei n.º 14/2010 – regressando ao caso dos autos – como uma lei restritiva de um direito, liberdade e garantia, de forma a que se lhe apliquem as proibições constantes do n.º 3 do artigo 18.º da CRP. Ao serem fundamentais, os direitos, liberdades e garantias são posições jurídicas com conteúdo definido a nível constitucional, e não legal. Não é, no caso dos autos, o que ocorre com as posições jurídicas concretamente afetadas pelo legislador de 2010, que agiu portanto fora do domínio aplicativo da proibição expressa de retroatividade, fixada no referido n.º 3 do artigo 18.º.
3.3. O princípio da proteção da confiança não deixa de valer enquanto limite à atuação estadual mesmo fora das situações de afetação de posições jurídicas subjetivas que se insiram no domínio protegido de um direito fundamental. A afetação legislativa de posições jurídicas subjetivas convoca sempre os testes estabelecidos para a tutela jurídico-constitucional da confiança, tal como elaborados pela jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Foi esse, aliás, o enquadramento jurídico-constitucional de que partiu o tribunal a quo, em que, examinando as normas sub judicio à luz de tais testes, os deu por verificados.
A primeira observação que há a fazer é a de que os “quatro testes”, cuja verificação o tribunal a quo dá por adquirida, e na qual funda o seu juízo sobre a existência de violação, in casu, da “segurança jurídica” e da “proteção da confiança”, são apenas isso e tão-somente isso – testes, ou seja, estalões genéricos, aplicáveis à complexidade e variedade das questões colocadas ao Tribunal em sede de limites constitucionais relativos à sucessão de leis no tempo, e destinados a auxiliá-lo na tarefa de determinação e interpretação dos princípios constitucionais pertinentes. Como muito bem disse a decisão recorrida – usando aliás o argumento como ponto de partida de toda a sua restante construção – o que caracteriza a função legislativa, diversamente do que sucede com a função administrativa ou a jurisdicional, é o princípio da autorrevisibilidade dos seus atos. Isso mesmo decorre da natureza da função e do fundamento constitucional último que legitima o seu exercício, o qual, como diz o artigo 2.º da CRP, se “baseia na soberania popular e no pluralismo de expressão e organização política democráticas”. Assim, basta que haja dúvidas quanto à evidência do preenchimento, em certo caso, de um dos quatro estalões genéricos que integram os chamados “testes” do princípio da proteção da confiança para que se não dê por autorizada a conclusão segundo a qual, nesse caso, o legislador democrático estaria proibido de fazer justamente aquilo que, por decorrência de princípios carregados de intensidade valorativa, pode em geral fazer: rever os seus atos e as suas opções, perante as diferentes circunstâncias (de informação ou de sustentação maioritária) que se vão sucedendo no tempo.
Ora, a verdade é que, no presente caso, a evidência do preenchimento de cada um desses estalões (ou da “verificação” dos testes) não pode deixar de suscitar dúvidas.
Desde logo, quanto aos três primeiros “testes”.
Entendeu, na verdade, o tribunal a quo que todos eles se encontravam verificados, ou seja, que, no caso, ocorrera: (i) um comportamento dos poderes públicos, mormente do legislador, que suscitara nos privados expectativas de continuidade; (ii) que essas expectativas eram fundadas em boas e legítimas razões e que, (iii) o privado fizera planos de vida tendo em conta as boas razões, que tinha, para esperar a continuidade do comportamento estadual. Um tal entendimento fundou-o geralmente a decisão recorrida no facto de não estar em causa sequer, na questão sob juízo, uma simples «expectativa» mas verdadeiramente um «direito», legal e contratualmente fundado e consolidado, da titularidade de certo particular. Como entendeu que o Estado – através do Governo e de organismos que integram a sua administração direta – praticara atos que haviam gerado no titular do direito uma fundada expectativa na «constituição» da situação jurídica, o que viria a dar-se com o aditamento ao contrato de concessão. Em suma: pelo menos a partir da aprovação do Decreto-lei n.º 188/2008 existia da parte do privado uma fundada expectativa na «continuidade» da titularidade dos direitos em que o “aditamento ao contrato” o investira.
Ao assim argumentar, note-se, a decisão recorrida não está a radicar no Decreto-lei n.º 188/2008, em si mesmo considerado, a constituição do “direito legal e contratualmente fundado”, pois reconhece que só com o «aditamento» ao contrato de concessão, habilitado pelo decreto-lei governamental, tal direito se formara na esfera jurídica do particular. O que sustenta é que a «expectativa» na constituição do direito – recte, a expectativa quanto à continuidade do comportamento estadual no que se refere à política pública regulada por aquele diploma legislativo – fora dada pelo “facto” da sua emissão. E que, como em sequência do mesmo se constituíra, na esfera jurídica do particular, um direito, as «expectativas» na continuidade do comportamento do Estado eram por definição legítimas, tendo o particular em função disso, e por causa disso, traçado específicos “projetos” ou “planos de vida”.
Deve no entanto dizer-se que, no contexto de uma argumentação assim alicerçada na intensidade e natureza da posição jurídica do particular (um direito, legal e contratualmente fundado), não pode diminuir-se, como se de um facto menor se tratasse, a circunstância de tal direito ter emergido da modificação de um contrato, celebrado entre a administração e o particular, e não ter sido concedido diretamente pela lei. É certo que a decisão legislativa governamental, mantendo uma determinada orientação quanto à política pública portuária que se vinha já seguindo desde 1984 (altura da celebração do primeiro contrato de concessão entre Administração e o mesmo particular), autorizou a modificação do contrato e redefiniu as bases a que ele devia obedecer, em alteração [mas também em continuação] da política iniciada décadas antes. Contudo, é também certo que o nó górdio do problema que tem agora que resolver-se não reside tanto no facto de ter sido revogada a lei que mantinha essa política, mas muito particularmente no facto de essa revogação ter ocorrido depois de celebrado, entre as partes, o contrato cuja realização a lei autorizava. Fora outro o momento da revogação, por ato da Assembleia, do decreto-lei que autorizara a modificação do contrato que outros seriam também os específicos contornos do problema jurídico-constitucional que há que resolver. Dizendo de outro modo: caso o artigo 1.º da Lei n.º 14/2010 (“[é] revogado o Decreto-lei n.º 188/2008, de 23 de setembro”) constasse de lei anterior à data da celebração do “Aditamento” ao Contrato de Concessão, a avaliação do peso específico das expectativas da entidade privada contratante far-se-ia, naturalmente, com outros critérios. O que conta, aqui, é pois o facto de o ato revogatório ter sido emitido depois de celebrada entre a administração e o particular a modificação do contrato de concessão, justamente por ter sido o “direito” de que é titular o privado constituído por este último e não pela lei objeto da revogação.
Contudo, se assim é, um ponto parece insofismável. Porque o que se pede ao Tribunal (o que se lhe pode pedir) não é a resolução da questão relativa à validade ou subsistência do contrato que investiu o privado numa situação jurídica subjetiva “consolidada”, mas antes tão somente a resposta à questão de saber se é válida a lei que autorizara a modificação da condição contratual, para a resolução desta última questão o argumento da natureza e intensidade da posição jurídica subjetiva do privado não pode ser o único argumento a ter em conta em sede de “proteção da confiança”. Vale isto por dizer que a resposta ao segundo e ao terceiro “testes” – ser a expectativa do particular na continuidade do comportamento estadual fundada em boas e legítimas razões; ter o particular traçado planos de vida tendo em conta essas legítimas expectativas – não pode ser dada uma resposta afirmativa apenas porque estavam em causa, na questão que julgamos, não “simples expectativas”, mas “direitos”. O argumento pode pesar na “ponderação” do caso, quando se tiver em linha de conta o peso específico das expectativas do particular na continuidade da ordem jurídica que fundara as posições jurídico-subjetivas em que fora investido e o peso específico das razões de interesse público que motivaram a emissão da lei de 2010; mas não resolve, por si só, a questão que há que resolver.
Ora, assim sendo, há ainda espaço para que se proceda à avaliação e à valoração das expectativas que, no caso, o particular detinha relativamente à continuidade da política pública que o Decreto-lei n.º 188/2008 redefinira. E, nesse espaço de valoração que ainda permanece aberto – não obstante a lei em juízo ter sido emitida depois de celebrado o contrato de concessão que investira o privado em certas situações jurídicas «consolidadas» – não podem deixar de ser recordadas outras dimensões do comportamento estadual (outras, em relação à celebração, por parte da administração, do aditamento ao contrato de concessão), que igualmente se verificaram durante o período que mediou entre a entrada em vigor do Decreto-lei n.º 188/2008 e a emissão da Lei n.º 14/2010.
Referimo-nos desde logo aos requerimentos apresentados por grupos de deputados na Assembleia da República em outubro de 2008, pedindo, nos termos do artigo 169.º da CRP, a apreciação, para efeitos de cessação de vigência, do Decreto-lei n.º 188/2008; e referimo-nos ainda ao facto de a modificação do contrato de concessão (essa mesmo que investiu o particular na posição jurídica subjetiva cuja especial solidez se invoca) ter sido celebrada durante a pendência do debate parlamentar iniciado pela apresentação dos referidos requerimentos. É certo que, nos termos do regime previsto perlo artigo 169.º da Constituição, o início do procedimento tendente à “apreciação parlamentar” de um decreto-lei não produz por si só qualquer efeito suspensivo da vigência do mesmo. Mas também é certo que não pode ser relegado para o domínio dos dados constitucionalmente irrelevantes o facto de o particular ter aceite celebrar a modificação do contrato – que o investiu na posição jurídico-subjetiva cuja especial densidade e natureza agora se invoca – num momento em que ainda desconhecia se o diploma legislativo que servira de base legal para a outorga desse mesmo contrato iria perdurar na ordem jurídica. Acionado que fora o mecanismo específico de fiscalização, por parte da Assembleia, de atos legislativos do Governo, que a Constituição prevê, haveria pelo menos que esperar pelo seu desfecho. Tal espera, porém, não aconteceu. O dado é suficientemente relevante para que se ponha logo em dúvida a evidência do preenchimento do “segundo teste” da proteção da confiança: o facto de a lei revogatória ter sido emitida depois de celebrado o aditamento ao contrato de concessão, que investira o particular em certa posição jurídica, não é só por si comprovativo de que o mesmo particular detinha boas e fundadas razões para esperar a continuidade do comportamento do legislador. Até porque admitir que a Administração Pública pudesse, à revelia de um processo de averiguação parlamentar, consumar, através da outorga do «Aditamento», a prática de atos dependentes da vigência do decreto-lei objeto dessa mesma apreciação, e, dessa forma, responsabilizar o próprio Estado, equivaleria a esvaziar de conteúdo essa competência de fiscalização da Assembleia da República estabelecida na Constituição, que mais não é do que um mecanismo de autocontrolo do Estado. A este argumento acresce um outro, que abona no mesmo sentido. Após o desfecho do debate parlamentar iniciado com a apresentação dos requerimentos a que se refere o artigo 169.º, e antes da emissão da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, o Tribunal de Contas emitiu o relatório cujas conclusões se encontram transcritas no presente acórdão. Este é, portanto, um outro “tópico” a ter em conta, no espaço, ainda aberto, de valoração das razões que detinha o particular para esperar a imodificabilidade do comportamento estadual.
Também no que respeita ao terceiro “teste”, relativo à realização de “planos de vida”, não pode deixar de atender-se ao conteúdo da concreta posição jurídica em que, em virtude da celebração do «aditamento» ao contrato de concessão, ficou investido o particular. Ora, de acordo com o Relatório do Tribunal de Contas referido no presente acórdão, o contrato de concessão de serviço público seria congenitamente desequilibrado, pelo facto de o risco do negócio ser transferido em termos não-irrelevantes para o concedente público. A conclusão não pode ser irrelevante quando se considera o preenchimento (ou não preenchimento) do terceiro “teste” em sede de proteção da confiança. Sendo consideravelmente menor o risco do investimento privado – o qual, logo à partida, é contratualmente diluído pelos restantes membros da comunidade – menor terá que ser também o grau de proteção jurídico-constitucional a tal “plano de vida” reservado.
Por último, também não parece que, à evidência, se deva dar como preenchido o quarto e último “teste” relativo ao princípio da proteção da confiança, segundo o qual – recorde-se –, e para que essa confiança mereça tutela constitucional, deve inexistir qualquer razão de interesse público que, em ponderação, justifique a prevalência desse mesmo interesse sobre as «legítimas» e «fundadas» expectativas das pessoas na continuidade do comportamento estadual.
É que, tudo considerado, não pode deixar de considerar-se legítima uma afetação legislativa que destrói retroactivamente os efeitos produzidos por um contrato de concessão de serviço público, celebrado no contexto em que foi e cujo conteúdo é aquele que é. Com efeito, não pode o particular querer fazer prevalecer-se da ordem constitucional contra um ato do legislador que venha afetar uma posição jurídica assim constituída. Uma ordem constitucional de liberdade que responsabiliza as pessoas pelas decisões que tomem não as protege naquelas situações em que o risco seja inexistente ou se encontre diluído, em termos não-irrelevantes, pelos demais membros da comunidade.
Porque assim é, inexiste qualquer violação do princípio da proteção da confiança.
4. Uma última nota. Não creio que tenha no caso relevância argumentativa o facto de, nos termos do disposto no Código do Procedimento Administrativo e no Código dos Contratos Públicos, o contraente público apenas dispor do poder de resolver unilateralmente o contrato por razões de interesse público para o futuro. A afirmação segundo a qual “[…] se estava vedado à parte pública (a Administração) resolver retroactivamente o contrato por invocação do interesse público, «o mesmo há de entender-se quando seja o próprio legislador a visar, indireta mas intencionalmente, esse objetivo, revogando retroactivamente o diploma específico em que o contrato se fundou. Não podia fazê-lo – consoante o fez, ou intentou fazê-lo, no caso – a Assembleia da República, como tão pouco o poderia ter feito, também no caso, o Governo-legislador, através de um decreto-lei»” (ponto 4.4. do acórdão), só teria cabimento – como o fez o tribunal a quo – se sustentada em uma argumentação situada no plano do direito constitucional. E, neste plano, não tem sentido, segundo creio, o argumento de “identidade de razões” entre Estado-Administração e Estado-legislador. Em caso algum poderão o Código do Procedimento Administrativo ou o Código dos Contratos Públicos servir de parâmetro para sindicar a validade de normas constantes de um ato que integra a função legislativa do Estado. Os limites ao conteúdo de uma lei constam apenas da Constituição.
Maria Lúcia Amaral.