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Procº nº 29/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Nos autos emergentes de acidente profissional pendentes pelo Tribunal do Trabalho de Évora e após, em 20 de Dezembro de 1977, ter sido proferida sentença por intermédio da qual foi fixada a pensão anual e vitalícia de Esc. 3.006$00 ao sinistrado A..., correspondente a uma desvalorização de 20% por incapacidade permanente, veio este a solicitar a respectiva remição.
Por decisão de 20 de Novembro de 1998, proferida pelo Juiz daquele Tribunal, foi autorizada a solicitada remição.
Para tanto, recusou-se a aplicação, por inconstitucionalidade - já que se entendeu serem violados os artigos 13º, nº 1, e 59º, nº 1, alíneas a) e f) da Lei Fundamental - do disposto artº 64º, nº 2, do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto, em conjugação com o artº 2º do Decreto-Lei 668/75, de 24 de Novembro, ao não permitir, 'em circunstância alguma, nem a remição nem a actualização das pensões decorrentes de incapacidades iguais ou superiores a 20% e inferiores a
30%'.
É do assim decidido que, pelo Ministério Público, vem interposto o presente recurso, fundado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou o recorrente a por si efectuada com as seguintes «conclusões»:-
'1º
A solução legal que se traduz em restringir o poder de disposição do sinistrado sobre a pensão a que tem direito, obstando à respectiva remição sempre que ela compense redução significativa da capacidade de ganho e represente valor - calculado em função do salário mínimo nacional - susceptível de lhe assegurar uma espécie de ‘renda vitalícia’ que lhe garanta uma subsistência mínima, não viola nenhum princípio da Lei Fundamental.
2º
Porém, a circunstância de o nº 2 do artigo 64º do Decreto-Lei nº
360/71, de 21 de Agosto, não permitir a remição quando a desvalorização do sinistrado exceda 20%, qualquer que seja o montante da pensão por ele auferida
(e ainda que se trate de pensão manifestamente degradada, cujo montante anual careça de qualquer valor económico relevante) traduz violação do princípio constitucional da igualdade.
3º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'.
Cumpre decidir.
II
1. O artº 64º do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto, incluído no Capítulo VII desse diploma sob o epíteto Remição de Pensões, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 459/79, de 23 de Novembro, dispõe como segue:- Artigo 64.º
1. Serão obrigatoriamente remidas as pensões devidas a sinistrados e ascendentes que, cumulativamente, correspondam a desvalorizações não superiores a 10% e não excedam o valor da pensão calculada com base numa desvalorização de
10% do salário mínimo anual.
2. Poderão ser, a requerimento do pensionistas ou das entidades responsáveis e com autorização do tribunal competente, remidas as pensões devidas a sinistrados e ascendentes que, cumulativamente, correspondam a desvalorizações superiores a 10% e inferiores a 20% e não excedam o valor da pensão calculada com base numa desvalorização de 20% sobre o salário mínimo nacional e desde que haja uma comprovada aplicação útil do capital de remição.
3. Não são remíveis as pensões devidas a incapazes ou a afectados de doenças profissionais, bem como as fixadas ao abrigo do art.º 48.º, enquanto não for dada alta definitiva.
4. As remições previstas no n.º 2 podem incidir apenas sobre parte da pensão, se assim for requerido pelos interessados ou entre eles acordado.
5. Pode ser autorizado o pagamento em prestações de parte do capital a receber pelo pensionista, havendo acordo das parte e a garantia do respectivo pagamento integral, pela forma que o juiz determinar.
Por outra banda, o artº 2º do Decreto-Lei nº 668/75, de 24 de Novembro, veio a prescrever, após no seu artº 1º se estatuir que [a]s pensões devidas por acidentes de trabalho e doenças profissionais, independentemente da entidade responsável, são sempre calculadas com base na Lei n.º 21[2]7, de 3 de Agosto de 1965, e Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, e no salário anual de 48
000$, caso a retribuição anual seja inferior a este valor, que não estavam abrangidas pelo disposto nesse artº 1º as pensões resultantes de incapacidades inferiores a 30%.
Posteriormente, o Decreto-Lei nº 38/81, de 7 de Março, com vista a garantir 'uma constante e pronta actualização dos montantes das pensões'
(palavras do seu exórdio) que não estivessem a cargo da Caixa Nacional de Seguros de Doenças Profissionais (actualização essa já então consagrada pelo Decreto-Lei nº 97/80, de 5 de Maio), veio, por intermédio do seu artº 1º, estabelecer que o artº 1º do já aludido Decreto-Lei nº 668/75 passasse a ter a seguinte redacção:-
As pensões devidas por acidentes de trabalho ou por doenças profissionais que não sejam da responsabilidade da Caixa Nacional de Seguros de Doenças Profissionais, são sempre calculados com base na Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, no Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 459/79, de 23 de Novembro, e nos salários anuais correspondentes a doze vezes a remuneração mínima mensal legalmente fixada para o sector em que o trabalhador exerce a sua actividade e para o território - continente ou Regiões Autónomas dos Açores ou da Madeira - onde a exerce, desde que a respectiva remuneração anual seja inferior a esses valores.
2. Extrai-se, assim, do transcrito artº 64º do Decreto nº 360/71 que, de um lado, são legalmente permitidas duas formas de remição, de harmonia com a verificação cumulativa dos requisitos consistentes na percentagem de desvalorização e no valor da própria pensão calculado de determinada forma e, de outro, que das pensões correspondentes a percentagem de desvalorização igual ou superior a 20%, ou seja, as referentes a um maior grau de desvalorização da capacidade de trabalho, não é possível obter a respectiva remição.
O que aqui está em causa é, porém e tão somente, a questão de saber se afronta a Lei Fundamental a norma, ínsita no nº 2 daquele artº 64º, enquanto reportada à impossibilidade de remição de uma pensão que, muito embora o respectivo montante seja inferior aos limites que hoje defluem desse preceito, se refere a uma desvalorização igual ou superior a 20% (e devendo ter-se em atenção que, por força do que se consagra no artº 2º do Decreto-Lei nº 668/75, pensões correspondentes a desvalorizações inferiores a 30% não estão sujeitas a actualização).
A tal questão dá o Tribunal, adianta-se desde já, resposta afirmativa.
3. Na verdade, o estabelecimento de pensões por incapacidade tem em vista a compensação pela perda da capacidade de trabalho dos trabalhadores devida a infortúnios de que foram alvo no ou por causa do desempenho do respectivo labor.
E, por isso, compreende-se que, se uma tal perda não foi por demais acentuada, o que o mesmo é dizer que o acidente de trabalho ou a doença profissional não implicou a futura continuação do desempenho de labor por parte do trabalhador (ainda que tenha reflexo, mesmo em medida não muito relevante, na retribuição por aquele desempenho, justamente pela circunstância de não apresentar uma total capacidade de trabalho), se permita que a compensação correspondente à pensão que lhe foi fixada - e sabido que é que, de uma banda, o montante das pensões é de pouco relevo e, de outra, que o quantitativo fixado se degrada com o passar do tempo - possa ser «transformada» em capital, a fim de ser aplicada em finalidades económicas porventura mais úteis e rentáveis do que a mera percepção de uma «renda» anual cujo quantitativo não pode permitir qualquer subsistência digna a quem quer que seja.
Transformação essa que ocorrerá a requerimento do trabalhador ou da entidade responsável pelo pagamento da pensão, ou, até, obrigatoriamente, por força da própria lei, neste último caso quando a incapacidade for diminuta (até
10%) e o montante da pensão for reduzido.
Outrotanto se não passará quando em causa se postarem acidentes de trabalho ou doenças profissionais cuja gravidade seja de tal sorte que vá acentuadamente diminuir a capacidade laboral do trabalhador e, reflexamente, a possibilidade de auferir salário condigno com, ao menos, a sua digna subsistência. Nestas situações, e porque a pensão é, necessariamente, de mais elevado montante, servirá ela de complemento à parca (e por vezes nula) remuneração que aufere em consequência da reduzida capacidade de trabalho.
Se o montante dessas pensões se perspectivar como algo que actua (ou actuaria desejavelmente) como um mínimo de asseguramento de subsistência, então compreende-se que o legislador pretenda, como assinala o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto na sua alegação, 'colocar o trabalhador a coberto dos riscos de aplicação do capital de remição'.
Efectivamente, a aplicação de um capital - ainda que no momento em que essa intenção é formulada se apresente como um investimento adequado, porquanto porpocionador de um rendimento mais satisfatório do que o correspondente à percepção da pensão anual - é sempre alguma coisa que, em virtude de ser aleatória, comporta riscos.
E daí se aceitar que, nos casos em que a incapacidade de trabalho se situa em maior percentagem (com o consequente maior montante da pensão), o legislador, para ressalva do próprio trabalhador que dessa incapacidade padece, não autorize a remição das respectivas pensões, desta sorte estabelecendo uma limitação ao poder do trabalhador de pedir ou não a remição.
3.1. Aceites estes raciocínios, e volvendo a atenção para os casos em que é possível a remição das pensões (não se colocam agora em causa as situações de obrigatoriedade de remição), não se lobriga qualquer justificação razoável ou bastante que aponte para que, se o montante da pensão se situar dentro de um dos pressupostos em que a remição até é obrigatória, como no caso sub specie acontece, unicamente tendo em conta a incapacidade de trabalho, essa pensão não possa ser remitida.
É que, e como já acima se assinalou, não pode ser passado em claro que as pensões já fixadas e correspondentes a desvalorizações inferiores a 30% não são actualizáveis. E também não se pode esquecer que, não obstante o legislador isso ter comandado, o montante da pensão inicialmente fixada, mormente com o passar do tempo, não pode, de todo em todo, ser visualizado, pelo menos hodiernamente, como algo que possa, ainda que remotamente, actuar como um meio, mesmo que complementar, de asseguramento de uma subsistência digna,
Isso significa que, pela proibição de actualização, o quantitativo da pensão não só, com o passar do tempo, se mostra desadequado à perda da capacidade de ganho do trabalhador [o que, o mesmo é dizer, como uma justa reparação quando o trabalhador é vítima de acidente de trabalho ou de doença profissional - cfr. alínea f) do nº 1 do artigo 59º da Constituição], como ainda não actua como um meio (ainda que complementar, como se disse), daquela subsistência, visto o seu montante não ter praticamente qualquer relevância económica.
Ora, resultando do conjunto normativo em análise estas circunstâncias, e aliadas elas à de o nº 2 do artº 64º do Decreto nº 360/71, numa situação como a vertente, estabelecer uma limitação ao poder de o trabalhador ponderar se, atento o diminuto quantitativo da pensão, se não revelaria mais compensador a efectivação da remissão, isso redunda, verdadeiramente, na consagração de uma discriminação materialmente infundada, actuando como um obstáculo a que o sistema de segurança social proteja adequadamente os trabalhadores em situações de diminuição de capacidade para o trabalho (artigo 63º, nº 3, da Constituição) e do direito dos trabalhadores à justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional [artigo 59º, nº 1, alínea f), do Diploma Básico].
III
Em face do exposto, decide-se:-
a) Julgar inconstitucional por violação das disposições conjugadas dos artigos 13º, nº 1, 59º, nº 1, alínea f), e 63º, nº 3, todos da Constituição, a norma constante do artº 64º, nº 2, do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 459/79, de 23 de Novembro em conjugação com o artº 2º do Decreto-Lei 668/75, de 24 de Novembro, na parte em que veda, a requerimento dos pensionistas ou das entidades responsáveis, a remição de pensões correspondentes a desvalorizações iguais ou superiores a 20% e inferiores a 30%, desde que o seu valor não exceda o valor da pensão calculada com base numa desvalorização de 20% sobre o salário mínimo nacional;
b) Em consequência negar provimento ao recurso. Lisboa, 18 de Maio de 1999 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida