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Processo n.º 129/12
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e são recorridos o Ministério Público e B., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 7 de dezembro de 2011.
2. Pela Decisão Sumária n.º 141/2012, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«Decorre do requerimento de interposição de recurso que o recorrente pretende a apreciação de determinada interpretação dos artigos 5.º do Código de Processo Penal e 27.º do Regulamento das Custas Processuais.
De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC). Requisito que não se pode dar como verificado nos presentes autos.
Verifica-se que o recorrente não suscitou previamente, de modo processualmente adequado, a inconstitucionalidade de uma qualquer interpretação reportada aos preceitos legais indicados no requerimento de interposição de recurso. Com efeito, não identificou, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, a dimensão interpretativa que reputava inconstitucional. Este Tribunal tem entendido reiteradamente que, quando “se suscita a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa (ou de certas) normas jurídicas, necessário é que se identifique essa interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários delas e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa (ou essas) normas não podem ser aplicadas com um tal sentido” (Acórdão n.º 106/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
A não verificação daquele requisito do recurso de constitucionalidade obsta ao conhecimento do seu objeto, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, invocando os seguintes argumentos:
«6. Em primeiro lugar, estando individualizada a deficiência ou a “inadequação” do modo de agir processual não se percebe porque não foi dado cumprimento ao nº 5 do artº 75º-A da L.T.C. que permitiria, com relativa facilidade, preencher o alegado requisito faltoso.
7. É que as consequências de tão leve falta processual são desproporcionalmente grandes dado que podem implicar – e a manter-se a decisão impugnada tal ocorrerá – a não admissão de um recurso penal por falta de pagamento de taxa de justiça...
8. O que, salvo melhor opinião, é de per si uma afronta ao artº 32º, nº 1 da Constituição.
9. Mas, para além deste aspeto de índole processual que tem mesmo um enquadramento de nulidade – omissão de ato que a Lei prevê – o recorrente entende que, em rigor, não cometeu a falta que lhe é imputada, isto é:
O recorrente entende que suscitou a inconstitucionalidade de forma processualmente adequada.
10. A exaustão que se reconhece ao Tribunal Constitucional no objetivo de demonstrar a “falta” do recorrente no que toca à necessidade deste suscitar processualmente a questão da constitucionalidade perante o Tribunal não se compreende face ao facto de tal ter sido feito logo no primeiro momento em que tal foi factual e processualmente possível: um requerimento de retificação de um despacho do juízo de grande instância criminal do Tribunal da Grande Lisboa Noroeste – Sintra.
11. O recorrente não está a questionar a validade de uma norma “tout court” mas está a questionar a validade de uma dimensão normativa com que o Tribunal “a quo” enquadrou uma decisão.
Essa “dimensão normativa” era aqui vista na perspetiva da interpretação que o Tribunal fez da norma, essa sim violando-a.
12. Ora tais considerações surgem, pelo menos, nos pontos 22 a 30 das suas Alegações de recurso que a Excelentíssima Conselheira Relatora transcreveu nesta douta Decisão sumária onde resulta claro que o que se defende é e interpretação inconstitucional feita pelo Tribunal “a quo” dos artºs 2º do C.P.P., 27º do Reg. Custas Processuais que violariam os nºs 4 do artº 291º e o nº 1 do artº 32º da C.R.P..
13. Facto que enuncia logo na conclusão 22 e volta a concluir no ponto 26 dessas conclusões.
14. Acresce que a falta concretamente imputada ao modo como o recorrente instruiu processualmente este recurso, surge explicitada nas conclusões 27 e 28 em moldes que possibilitariam este Venerando Tribunal Constitucional a enunciar um sentido interpretativo das ditas normas inaceitável porque inconstitucional em caso de suprimento do recurso.
15. Mais do que discutir o formalismo processual ínsito à decisão de que se reclama importa precisar que o recorrente persiste e insiste no interesse em ver apreciado o recurso que interpôs porque entende, verdadeiramente, que a decisão da comarca e depois foi confirmada na Relação de Lisboa, enferma de vícios de Lei que, em última análise, a tornam inconstitucional pois os Meritíssimos Juízes recorridos (Comarca e Relação) assentaram as suas decisões em interpretações de Lei que são contrárias a princípios (vários) da Constituição e, nessa medida, possíveis de implicar um recurso até este Areópago conformador de constitucionalidade.
III. Sinopse cronológica:
16. Insiste-se que a questão da constitucionalidade da interpretação feita pelos Tribunais de Comarca e da Relação de Lisboa relativamente ao artº 27º do Reg. Custas processuais foi suscitada logo num primeiro requerimento que, ao abrigo do artº 669º do Cód. Proc. Civil, foi deduzido na comarca.
17. Para, depois de “esclarecido” o dito despacho de 1ª instância se recorrer para a Relação de Lisboa imediatamente e com efeito suspensivo da decisão recorrida.
18. A Veneranda Relação, por decisão sumária indeferiu o recurso, o que veio a ser confirmado pela douta conferência para onde se reclamou.
19. Nas várias peças processuais em que se alegou sobre a questão – e que foram um pedido de esclarecimento, uma motivação de recurso e uma reclamação para a conferência do Tribunal da Relação – sempre o recorrente suscitou a questão da constitucionalidade da interpretação que os Tribunais estavam a defender do artº 27º do Reg. Custas processuais.
20. Aliás, essa constatação é aferível do teor, douto, da fundamentação da decisão da Digna Conferência da Relação que, de forma exaustiva, pretende justificar a opção legislativa tomada.
21. Ora, o que se pretende é que seja esclarecida pela mais alta instância nessa sede se, como o recorrente defende, por força dos artigos 2º do Cód. Penal e 29º, nº 4 e 32º, nº 1 da C.R.P. se deve considerar o artº 27º (e 8º) do Reg. Custas processuais inconstitucional na interpretação propugnada pelos Tribunais recorridos ou, como defende o recorrente;
22. Devendo a interpretação da favorabilidade da Lei nova ser extensível ao direito adjetivo, considerar-se o recurso do arguido em Sentença penal condenatório isento de taxa de justiça pela sua interposição, como manda a Lei nova».
4. Notificados os recorridos, respondeu apenas o Ministério Público, o que fez nos seguintes termos:
«4º
Na sua reclamação para a conferência, considera o Réu, desde logo, que se deveria ter dado “cumprimento ao nº 5 do art. 75º - A da LTC que permitiria, com relativa facilidade, preencher o alegado requisito faltoso” (cfr. fls. 991).
Mas sem razão, porém.
Com efeito, é jurisprudência assente deste Tribunal Constitucional, que a falta de pressupostos processuais, relativamente ao requerimento de interposição de recurso, não justifica convite ao respetivo aperfeiçoamento (cfr., a este propósito, por exemplo, os Acórdãos 99/00, 397/00, 246/06, 33/09, 116/09, 117/12 e Decisões sumárias 471/10, 721/10).
(…)
6º
Aduz, por outro lado, o ora reclamante na sua reclamação (cfr. fls. 992-993 dos autos) (destaques do signatário):
“11. O recorrente não está a questionar a validade de uma norma «tout court» mas está a questionar a validade de uma dimensão normativa com que o Tribunal «a quo» enquadrou uma decisão.
Essa «dimensão normativa» era aqui vista na perspetiva da interpretação que o Tribunal fez da norma, essa sim violando-a.
(…)
7º
Ora, não se contesta que o interessado esteja profundamente convicto da bondade das razões, que o levaram a interpor o presente recurso de constitucionalidade.
Mas também é certo, como devidamente sublinhado pela Decisão Sumária reclamada, que o não terá feito da melhor forma.
Não basta, com efeito, falar na “dimensão normativa com que o Tribunal «a quo» enquadrou uma decisão”, ou da “interpretação inconstitucional feita pelo Tribunal «a quo»”, quando essa dimensão normativa, ou interpretação inconstitucional, não é, sequer, enunciada uma única vez.
E, muito menos, se poderá esperar que o Tribunal Constitucional supra, ele próprio, tal deficiência do requerente e enuncie, por sua iniciativa, a dimensão normativa, que o mesmo requerente não soube formular.
8º
É, com efeito, jurisprudência assente deste Tribunal Constitucional, que o recurso de constitucionalidade deve integrar uma dimensão normativa, não servindo, apenas, para colocar em causa a bondade da decisão impugnada.
(…)
9º
Por outro lado, este Tribunal Constitucional também tem reiteradamente afirmado, que o recorrente tem o ónus de enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional.
(…)
11º
Por todo o exposto, crê-se que a reclamação para a conferência, em apreciação, não merece provimento, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 141/12, que determinou a sua apresentação».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso por não se poder dar como verificado o requisito da suscitação, durante o processo e de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada aos preceitos legais indicados no requerimento de interposição de recurso.
O reclamante começa por argumentar que, «estando individualizada a deficiência ou a “inadequação” do modo de agir processual», deveria ter sido convidado para o efeito previsto no artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC. Sem razão, na medida em que o requisito que o Tribunal deu como não verificado é um requisito do recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente e não um requisito do requerimento de interposição de recurso. O convite previsto no n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC “só é possível se a omissão for sanável, ou seja, se consistir numa falta do próprio requerimento, não tendo cabimento para o suprimento de falta de pressupostos de admissibilidade do recurso que seja insanável” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
O reclamante argumenta ainda que suscitou a questão de inconstitucionalidade de forma processualmente adequada. Não demonstra, porém, que identificou, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, a dimensão interpretativa dos artigos 5.º do Código de Processo Penal e 27.º do Regulamento das Custas Processuais que então questionava do ponto de vista jurídico-constitucional. Não chega sequer a identificar tal dimensão interpretativa na reclamação agora deduzida, abandonando até a referência ao artigo 5.º do Código de Processo Penal.
Por outro lado, é irrelevante que tenha suscitado a questão de inconstitucionalidade perante o tribunal de 1.ª instância, uma vez que a via do recurso de constitucionalidade fica aberta somente se tal questão for colocada ao tribunal recorrido, de acordo com o disposto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC. De onde decorre também que, quando o recorrente questiona a constitucionalidade de determinada interpretação normativa, a ele cabe identificar essa interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários dela e os operadores do direito em geral fiquem a saber que as disposições legais em causa não podem ser aplicadas com um tal sentido (assim, entre muitos outros, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 106/99, citado na decisão reclamada).
Em face de tudo o que ficou dito, não se vislumbra razão bastante para inverter o juízo firmado na decisão sumária reclamada, que assim deve ser confirmada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 9 de maio de 2012.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Gil Galvão.