Imprimir acórdão
Processo n.º 393/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. No âmbito de recurso de impugnação judicial (englobando vários autos de contraordenação) foi proferida sentença no 1.º Juízo do Tribunal de Trabalho de Leiria, com o seguinte conteúdo decisório:
«Quanto ao recurso interposto pela A., Lda, e no seguimento das decisões já proferidas nos autos declaro nulas as decisões administrativas objecto de recurso determinando o reenvio dos autos à ACT a fim de colmatarem os referidos vícios.
Sem custas.
Quanto a B., na sequência da decisão de não aplicação do artigo 551.º n.º 3 CT 2009 por o considerarmos contrário ao disposto no artigo 30.º n.º 3 da CRP e como tal materialmente inconstitucional, absolvemos o recorrente como responsável solidário pelo pagamento da multa.
Sem custas».
Mais foi ordenada a remessa dos autos ao Ministério Público «para os fins tidos por convenientes face à não aplicação do alegado preceito pelo vício da sua inconstitucionalidade material».
2. Na sequência daquela notificação, veio o Ministério Público, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro [LTC]) interpor recurso daquela decisão, «na medida em que se recusou a aplicação dos ditames do artigo 551.º n.º 3 do Código do Trabalho de 2009».
3. Pela Decisão sumária n.º 736/2013 decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão, para o que agora relava, tem a seguinte fundamentação:
«5. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos da qual, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que recuse a aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
6. Pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, é, desde logo, a efetiva aplicação ou desaplicação pela decisão recorrida da norma objeto do recurso.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) deste recurso, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional constitucional. Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade deverá, efetivamente, refletir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas sucede quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
7. No caso em apreciação verifica-se que a decisão de que o Ministério Público recorre, nos termos do disposto pela alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, aparece formalmente enunciada por este como sendo uma decisão de recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, da qual cabe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional de acordo com o prescrito pela Constituição e pela lei.
8. Acontece, porém, que esta questão não constituiu a ratio decidendi da decisão recorrida. De facto, apesar de ter conhecido da questão de inconstitucionalidade agora invocada no presente recurso, concluindo pela «não aplicação do art 551.º n.º 3 do CT 2009» por o considerar «contrário ao disposto no art 30.º n.º 3 da CRP e como tal materialmente inconstitucional», o Tribunal do Trabalho de Leiria fundou a decisão de procedência do recurso de impugnação judicial na declaração de nulidade das decisões administrativas que estiveram na base da decisão impugnada, determinando a remessa dos autos à autoridade administrativa para suprimento dos vícios identificados.
Independentemente, pois, das considerações de seguida oficiosamente desenvolvidas na sentença recorrida relativamente à questão da responsabilidade solidária do gerente pelo pagamento da(s) coima(s) aplicada(s) à sociedade ali recorrente, e no termo das quais conclui pela inconstitucionalidade da norma que prevê a referida responsabilidade solidária, certo é que o conhecimento da referida questão se mostrava prejudicado pela solução dada anteriormente aos vícios imputados às decisões administrativas em que se fundavam as condenações nas coimas imputadas à sociedade. Não se confirmando a condenação da pessoa coletiva pelas contra-ordenações indicadas, não pode, naturalmente, subsistir a condenação solidária do seu gerente no pagamento das respetivas coimas. Significa isto que, independentemente do juízo que viesse a ser feito sobre a (não) conformidade constitucional da “norma” objeto do recurso, sempre subsistiria razão determinante para a procedência da impugnação judicial.
Nesta conformidade, um eventual juízo de inconstitucionalidade da “norma” cuja apreciação foi requerida nenhuma virtualidade teria de alterar o sentido da decisão recorrida.
9. E, sendo assim, impõe-se o não conhecimento do presente recurso.
Com efeito, a fiscalização concreta da constitucionalidade de normas (artigos 280.º da Constituição da República Portuguesa e 69.º e ss. da LTC) – diferentemente do que sucede na fiscalização abstrata (artigos 281.º da Constituição e 62.º da LTC) – reconduz-se a um “recurso” inserido num processo de que nunca chega a autonomizar-se (neste sentido, v. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, Almedina, 2007, p. 66). Ora, perante o caráter instrumental da fiscalização concreta da constitucionalidade das normas, a utilidade do recurso interposto surge como condição do seu conhecimento, pressupondo a suscetibilidade de repercussão na decisão recorrida do julgamento da questão de constitucionalidade, como tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional (v., entre outros, Acórdãos n.os 634/2003 e 687/2004 - in www.tribunalconstitucional.pt.).»
4. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, nos seguintes termos:
«1.º
Pela douta Decisão Sumária nº 736/2013, não se conheceu do objecto do recurso obrigatoriamente interposto pelo Ministério Publico da decisão proferida no 1º Juízo do Tribunal de Trabalho de Leiria que recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do artigo 551º, nº 3, do Código do Trabalho de 2009.
2.º
Entendeu-se na Decisão Sumária que, na decisão recorrida, aquela questão de inconstitucionalidade não constituía a sua ratio decidendi, uma vez que o Tribunal de Leiria fundara “a sua decisão de procedência do recurso de impugnação judicial na declaração de nulidade das decisões administrativas que estiveram na base da decisão impugnada”.
3.º
Efectivamente, a Senhora Juíza, apreciando a impugnação, acabou por declarar nulas as decisões administrativas objecto do recurso, “determinando o reenvio dos autos à Autoridade para as Condições do Trabalho a fim de colmatar os referidos vícios”.
4.º
Porém, na mesma decisão, entendeu-se que se deveria apreciar um “questão nova” e que era de conhecimento oficioso.
5.º
Essa questão era a respeitante à responsabilidade solidária dos administradores e gerentes pelas coimas aplicada à pessoa colectiva, prevista no artigo 551º, nº 3, do Código do Trabalho.
6.º
Apreciando, a Senhora Juíza considerou aquela norma materialmente inconstitucional, recusou a sua aplicação com esse fundamento e, consequentemente, absolveu o recorrente B. como responsável solidário pelo pagamento da coima.
7.º
Ora, se o Tribunal Constitucional não conhecer do objecto do recurso, a decisão, nesta parte e quanto a esta especifica questão, que é autonomizável, transita.
8.º
A responsabilidade solidária do administrador fica excluída por inconstitucionalidade da norma que a prevê, sem que o Tribunal Constitucional se pronuncie e tenha a “última palavra”.
9.º
Na verdade, se a autoridade administrativa vier a proferir nova decisão na sequência do reenvio dos autos determinado na decisão recorrida, parece-nos que, mesmo que o Tribunal de Trabalho venha a ser chamado a apreciar a “nova decisão”, ela já não poderá abranger a questão da responsabilidade solidária do administrador.
10.º
Assim, na nossa opinião, o presente recurso é o momento próprio e único para apreciar essa mesma questão.
11.º
Atendendo, pois, às concretas circunstâncias que se verificam, deverá a reclamação ser deferida e, consequentemente, ser ordenada a apresentação das alegações.»
5. Notificado da reclamação, o recorrido não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Nos presentes autos foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento em que a decisão recorrida fundou o juízo de procedência do recurso de impugnação judicial na declaração de nulidade das decisões administrativas que estiveram na base da decisão impugnada e não na questão de inconstitucionalidade suscitada.
7. Para contrariar o decidido, o reclamante alega que, apesar de a decisão que apreciou a impugnação judicial da decisão administrativa (de condenação numa coima única pela prática de várias contraordenações) ter acabado por declarar nulas as decisões administrativas que estiveram na base da condenação objeto do recurso, determinando o reenvio dos autos à Autoridade para as Condições do Trabalho a fim de colmatar os vícios indicados, na mesma decisão entendeu-se ainda apreciar a questão nova, de conhecimento oficioso, respeitante à responsabilidade solidária dos administradores e gerentes pelas coimas aplicadas à pessoa coletiva, prevista no n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho, concluindo-se pela inconstitucionalidade material desta norma pelo que, recusando-se a sua aplicação, foi o arguido (gerente) absolvido. Entende o Ministério Público que “se o Tribunal Constitucional não conhecer do objeto do recurso, a decisão, nesta parte, e quanto a esta específica questão, que é autonomizável, transita”, ficando excluída, por inconstitucionalidade da norma que a prevê, a responsabilidade solidária do administrador, sem que o Tribunal Constitucional tenha a última palavra sobre a questão de constitucionalidade colocada.
8. Cremos que não assiste razão ao reclamante. Na verdade, prevendo a norma que o tribunal a quo afirma ter desaplicado (n.º 3 do artigo 551.º do Código do Trabalho), a responsabilidade solidária do gerente pelo pagamento da coima aplicada à pessoa coletiva que representa, a sua eventual aplicação (e portanto também a sua desaplicação) não pode deixar de pressupor a condenação da pessoa coletiva pela prática da contraordenação que lhe é imputada. Ora, tendo o tribunal a quo determinado a devolução dos autos à autoridade administrativa para colmatar as deficiências assinaladas e que conduziram à declaração de nulidade das decisões condenatórias da pessoa coletiva proferidas pela ACT, não se vê como possa considerar-se desaplicada a norma que prevê a responsabilidade solidária do gerente pela coima aplicada à sociedade. Como poderia condenar-se (ou absolver-se) o gerente sem antes se condenar a sociedade? A verdade é que nos autos não há ainda condenação da pessoa coletiva. Sem condenação desta numa coima, não é possível condenar (tão-pouco absolver) o respetivo gerente pelo seu pagamento. Assim, sendo embora autonomizáveis – como afirma o reclamante – a decisão de condenação da sociedade numa coima pela prática de uma contraordenação e a condenação solidária do seu gerente no pagamento da coima aplicada àquela, elas não são, todavia, independentes, já que a segunda pressupõe a primeira, o que evidencia bem o obter dictum em que se traduziu o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida.
9. Tão-pouco deverá impressionar o argumento do trânsito em julgado da absolvição, uma vez que, nos termos do artigo 75.º, n.º 1 da LTC, o prazo para a interposição de outros recursos que da decisão caibam é interrompido pela interposição do recurso de constitucionalidade.
10. Inevitável é, assim, concluir que a decisão recorrida não desaplicou a norma do artigo 551.º, n.º 3 do Código do Trabalho, desde logo porque não podia aplicá-la, limitando-se o juiz a adiantar o seu entendimento sobre uma questão que não lhe cabia (ainda) apreciar. Ora, «constitui ponto assente na jurisprudência constitucional que só são suscetíveis do recurso previsto na alínea a) as decisões em que o tribunal a quo haja recusado efetivamente a aplicação de uma norma com fundamento na respetiva inconstitucionalidade – não sendo passíveis de recurso para o Tribunal Constitucional as “falsas recusas” de aplicação de normas, em que o juízo de inconstitucionalidade emitido pela decisão impugnada se configurou como um simples “obter dictum” ou um mero argumento “ad ostentationem” em matéria de inconstitucionalidade, na medida em que (…) a norma, alegadamente, inconstitucional, acaba por não relevar, de forma decisiva, como efetivo fundamento de direito ou “ratio decidendi” da decisão concretamente proferida pelo tribunal “a quo”» (Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, pp. 66-67).
E, sendo assim, impõe-se o não conhecimento do presente recurso e a confirmação da decisão reclamada.
III – Decisão
Termos em que se decide não conhecer do objeto do recurso, confirmando-se a decisão reclamada.
Sem custas.
Lisboa, 28 de março de 2014. – Maria de Fátima Mata-Mouros – João Caupers – Maria Lúcia Amaral.