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Proc. nº 614/98
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. J... requereu, junto do Tribunal Central Administrativo, a suspensão de eficácia da deliberação da Comissão de Eleições de 19 de Janeiro de
1998, que considerou que podem ser eleitores todos os magistrados judiciais no activo independentemente do cargo que ocupam. Essa deliberação do Conselho Superior da Magistratura indeferiu uma reclamação do ora recorrente quanto à legitimidade da inscrição no caderno de recenseamento de vários magistrados judiciais em comissões de serviço de natureza não judicial. O então requerente invocou a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 145º e 168º, nºs
1 e 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, por violação do disposto nos artigos
211º, nº 1, 212º, nº 3, 110º, nº 2, 20º, nº 1, e 268º, nºs 4 e 5, da Constituição. Sustentou ainda estar isento de custas, sob pena de se conferir uma interpretação inconstitucional ao artigo 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº
21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio, por violação do disposto nos artigos 18º, nº 3, e 20º, nº 1, da Constituição.
O Tribunal Central Administrativo, por acórdão de 12 de Março de
1998, considerou-se materialmente incompetente para apreciar a suspensão de eficácia requerida, condenando o requerente no pagamento de custas.
2. J... interpôs recurso do acórdão de 12 de Março de 1998 para a Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo. Nas respectivas alegações, o recorrente sustentou a inconstitucionalidade dos artigos 145º e 168º, nºs 1 e 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, por violação do disposto nos artigos 13º, 211º, nº 1, 212º, nº 3, 110º, nº 2, 20º, nº 1, e 268º, nº 4, da Constituição. Também invocou a inconstitucionalidade do artigo 17º, nº
1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, tal como foi interpretado pela decisão recorrida, por violação do disposto nos artigos 18º, nº 3, e 20º, nº 1, da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 6 de Maio de 1998, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
3. J... interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 6 de Maio de 1998, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 168º, nºs 1 e 2,
145º e 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo: I Objecto do recurso de constitucionalidade O objecto do presente recurso de constitucionalidade é dado pela inconstitucionalidade das seguintes normas legais: o artº 168º, nºs l e 2, e o artº 145º, ambos da Lei nº 21/85. de 30 de Julho (as normas que conferem competência contenciosa à secção ad hoc do Supremo Tribunal de Justiça), que violam o disposto nos artºs 13º, 20º, nº 1, 211º, nº
1, 212º, nº 3, e 110º, nº 2, da Constituição; o artº 168º, nºs l e 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho (norma que pressupõe a caracterização da secção ad hoc do Supremo Tribunal de Justiça como
órgão jurisdicional), que viola o disposto no princípio ínsito no artº 203º da Constituição, e conjugado com o disposto no art. 20º, nº 1, e 268º, nºs 4 e 5, da mesma Lei Fundamental; o artº 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio (norma que concede a isenção de custas ao recorrente), na interpretação restritiva seguida, que viola o disposto nos artºs
18º, nº 3, e 20º, nº 1, da CRP.
II O litígio A preterição dos processos de contencioso eleitoral instaurados pelo recorrente em 1995, e ainda pendentes à data do acto impugnado, aguardando decisão jurisdicional (sendo certo que o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 279/98, de 10.3.98, Recurso nº 199/95, veio dar razão ao recorrente), levaram-no à interposição da presente suspensão de eficácia, visando a não consumação de situações de facto irreversíveis. As instâncias, no caso sub judice, consideraram-se incompetentes para o conhecimento do pedido, fazendo aplicação de normas legais invocadas de inconstitucionalidade.
III Precedentes do Tribunal Constitucional? O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a norma que confere competência contenciosa à secção ad hoc do Supremo Tribunal de Justiça (artº 168º, nºs l e
2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho), no Acórdão nº 347/97, in Diário da República, II, nº 170, de 25.7.97. no sentido de que tais as normas não são inconstitucionais, bem como sobre a norma do artº 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, em sentido idêntico ao da instância recorrida. No caso sub judice, não parece que as anteriores pronúncias do Tribunal Constitucional possam valer, já que não foram tomadas sobre casos idênticos - nos casos já julgados que se conhecem trata-se de situações administrativo-disciplinares, ao passo que no caso dos autos estamos perante, por um lado, a impugnação de eleições para alguris titulares de órgão do Estado gestor da magistratura judicial, eleições que decorrem da democraticidade inerente ao Estado de direito e que o caracterizam, por outro lado, estamos perante a manifestação do princípio da participação de cidadão em processo eleitoral.
IV Os artº 168º, nºs l e 2, e artº 145º, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho Não sofre contestação que o Conselho Superior da Magistratura se configura como
órgão de características nitidamente administrativas. O recurso contencioso de actos eleitorais (artº 145º da Lei nº 21/85, de 30 de Julho) do Conselho Superior da Magistratura é interposto e decidido por uma secção ad hoc do Supremo Tribunal de Justiça - uma sessão que apenas existe em função da entidade recorrida, sendo certo que o contencioso da magistratura não está todo entregue à dita secção ad hoc - a esta apenas estão atribuídos os litígios relativos às deliberações do Conselho Superior da Magistratura e às eleições.
Reserva material absoluta dos Tribunais Administrativos Após a revisão constitucional de 1989, para além da matéria cível e criminal, a competência dos Tribunais judiciais é residual e supletiva, apenas abrangendo as matérias não atribuídas a outras ordens de jurisdição. A Constituição atribui a resolução de litígios emergentes das relações jurídicas adininistrativas aos Tribunais administrativos, pelo que tais litígios são insusceptíveis de constituir matéria não atribuída a outras ordens de jurisdição para efeitos de fazer funcionar a jurisdição residual e supletiva dos Tribunais judiciais, aqui considerando o Supremo Tribunal de Justiça. A Constituição não só, não qualifica os tribunais administrativos como os tribunais comuns em matéria administrativa. como também não prevê na jurisdição administrativa a existência de tribunais especializados em determinadas matérias administrativas.
Falta de preparação especializada da secção ad hoc do S.T.J. Os juízes dos tribunais judiciais, aqui incluídos os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, carece a 'preparação especializado do juiz apto a dirimir os litígios jurídico-administrativos'. O legislador constituinte em 1989, ao consagrar a autonomização organizacional do exercício da jurisdição administrativa, teve a preocupação de garantir aos administrados e à administração (em sentido lato) o acesso a um juiz com preparação especializada, apto a dirimir os litígios jurídico-administrativos. A manutenção da competência contenciosa da secção ad hoc do Supremo Tribunal de Justiça para dirimir os litígios jurídico-administrativos em que seja requerido o Conselho Superior da Magistratura, sem que os respectivos juízes possuam preparação especializada para tal, viola o direito de acesso a Tribunal especializado no julgamento dos litígios que se suscitam nas relações jurídicas administrativas, consagrado pelos artºs 20º, nº 1, 212º, nº 3, e 268º, nº 4, da Constituição (versão de 1997).
Violação do princípio da igualdade O legislador constitucional entendeu criar uma jurisdição de juízes portadores de preparação especializada que os torne aptos para dirimir litígios jurídico-administrativos, garantindo um pleno acesso dos cidadãos administrados a uma justiça administrativa específica - artºs 20º, nº 1, 212º, nº 3, e 268º, nº 4, da Constituição (versão de 1997). A Constituição não restringe o acesso a esta jurisdição especializada em matéria administrativa a grupos específicos de cidadãos. Não se compreende a razão porque, estando em causa litígios suscitados por um grupo de cidadãos, os juízes, contra actos do Conselho Superior da Magistratura, o legislador já prescinde da jurisdição de juízes portadores de preparação especializada aptos para dirimir o mesmo tipo de litígios. Por outro lado, se se tratar de litígios relativo a outros aspectos do Estatuto dos Juízes que envolva outra entidade que não o Conselho Superior da Magistratura, então o cidadão-juiz já não sofre qualquer diferença de tratamento
- por exemplo, recursos relativos ao vencimento, aposentação.
É evidente a discriminação entre o cidadão/juiz e o cidadão/não juiz, mostrando-se violado o princípio da igualdade garantido pelo artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucionalº 13º da Constituição - porque razão o cidadão/não juiz tem direito de acesso a um juiz especializado, e o cidadão/juiz não tem esse direito?
Tradição A 'tradição', se se pretende referir a situação existente antes da Revisão Constitucional de 1989, não se compagina com a obrigatoriedade actual da existência de Tribunais administrativos - a discricionaridade do legislador ordinário, perante a mera possibilidade de existência de tribunais administrativos, podia muito bem atribuir competências contenciosas fora dos tribunais administrativos.
Indisponibilidade e tipicidade das competências Na medida em que os tribunais administrativos são órgãos de soberania (artº
110º, nº 1, da Constituição), a sua competência é a definida pela Constituição
(nº 2). Para além da competência definida directamente na Constituição, os tribunais só podem ter a competência que a Constituição autorize que a lei lhes atribua. A medida da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é exclusivamente a de julgar 'as acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais', e a dos tribunais judiciais é a de julgar as matérias cíveis e criminais e as que não sejam atribuídas, pela Constituição, a outras ordens jurisdicionais. O estabelecimento da reserva material absoluta não decorre do artº 214º, nº 3, da Constituição (versão de 1989), mas da circunstância do texto constitucional não autorizar que o legislador ordinário atribua a outros tribunais o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Após a II Revisão Constitucional, o carácter residual e supletivo da competência dos tribunais judiciais é dado pela competência dos tribunais administrativos e fiscais no sentido de se excluir do âmbito de conhecimento dos tribunais judiciais 'as acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais', sendo certo que a Constituição não autoriza que a lei confira a outros tribunais (que não os tribunais administrativos e fiscais o conhecimento da relação jurídica administrativa ou fiscal. Pelo menos a partir da Revisão Constitucional de 1989, as normas que conferem competência contenciosa à secção ad hoc do Supremo Tribunal de Justiça, os arts.
145º e 168º, nºs 1 e 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, são supervenientemente inconstitucionais, o que gera a sua caducidade. mostrando-se violado o disposto nos artºs 13º, 20º, nº 1, 211º, nº 1, 212º, nº 3, e 110º, nº 2, da Constituição.
A secção ad hoc do S.T.J. como órgão administrativo Por força da sujeição às competências de gestão de pessoal (nomeação e disciplinar) do Conselho Superior da Magistratura dos membros do órgão 'secção prevista no artº 168º, nº 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho', não tem este
órgão características que o permitam configurar como 'órgão jurisdicional'. Carência de independência estutural dos membros da secção ad hoc em relação ao Conselho Superior da Magistratura Os membros da secção ad hoc do Supremo Tribunal de Justiça não estão numa posição estrutural de independência em relação ao Conselho Superior da Magistratura que os nomeia juízes do Supremo Tribunal de Justiça e sobre eles detém o poder disciplinar. O artº 168º, nºs 1 e 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, é inconstitucional por violação do princípio ínsito no artº 203º da Constituição, e do disposto no artº
20º, nº 1, da mesma Lei Fundamental.
Jurisprudência do Tribunal Constitucional Os casos (coimas, patentes, conservadores, CGD) invocados para justificar a inconstitucionalidade suscitada não têm o efeito confirmativo pretendido, já que em nenhum desses casos a entidade recorrida nomeia e designa os juízes que os julgam. Sendo certo que o Conselho Superior da Magistratura. a quem estão sujeitos os juízes, é o órgão recorrido que esses juízes devem julgar - é esta a situação inédita, o órgão requerido jurisdicionalmente é quem nomeia e designa os juízes que o vão julgar.
V Isenção de custas A defesa do Estatuto dos juízes cabe à iniciativa destes, pois de outra forma os juízes hipotecam a sua independência a quem se arrogue a defesa dos juízes.
É nesta sede que surge o direito especial do artº 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na sua referência a 'qualquer acção em que o juiz seja parte principal ou acessória, por via do exercício das suas funções'. A isenção de custas concedida na lei insere-se no direito de tutela jurisdicional efectiva. O sujeito do direito à isenção que vai implicado na norma é a pessoa do titular do órgão de soberania Tribunais. A 'acção' pressuposta é todo o expediente judicial destinado a exigir dos Tribunais uma determinada composição de um litígio. A lei concede a isenção a juízes, nas acções em que sejam recorrentes ou requeridos, e não apenas requeridos. A isenção é concedida (aos juízes) nos expedientes judiciais em que é pedida por ou contra um juiz, uma determinada composição de um litígio suscitado por causa do exercício das suas funções. Para efeito da isenção de custas em causa, um juiz está no exercício de funções quando se encontra em posição de poder actuar os poderes funcionais implicados na competência do tribunal a que está adstrito. Por isso, o exercício de funções deve constituir a causa de pedir da acção, de tal forma que aqui são contidos os litígios de natureza estatutário em que o juiz é parte. A isenção de custas pretendida pelo recorrente é de tipo subjectivo (Acórdão nº
466/97), surge em acção em que aquele é parte principal, por via do exercício de funções, já que visa a garantia jurisdicional do 'acto de eleger [...] indissoluvelmente ligado ao próprio exercício da função judicial' (Acórdão nº
279/98). Na medida em que a interpretação recorrida parte da definição jurisprudencial do direito invocado, definição restritiva face aos dizeres da lei, temos que se interpreta restritivamente uma lei atributiva de direito fundamental, simultaneamente direito instrumental de acesso à Justiça, diminuindo a sua extensão e o seu conteúdo essencial, interpretação que contraria o disposto no conjunto normativo dado pelos artº 18º, nº 3, e artº 20º, nº 1, da Constituição.
Por seu turno, o Conselho Superior da Magistratura contra-alegou, concluindo o seguinte: CONCLUSÕES I - O artigo 145º e o artigo 168, nºs 1 e 2, ambos da Lei nº 21/85, de 30 de Julho (EMJ), normas que atribuem competência contenciosa ao Supremo Tribunal de Justiça para conhecer dos recursos interpostos das deliberações do Conselho Superior da Magistratura, não são inconstitucionais, não violando, designadamente, o disposto nos artigos 13º, 20º, nº 1, 211, nº 1, 212º, nº 3 e
110º, nº 2 da Constituição. a) A Revisão Constitucional de 1989 não consagrou uma reserva material absoluta de jurisdição a favor dos tribunais administrativos e fiscais no âmbito das relações jurídico-administrativas; b) A secção contenciosa do Supremo Tribunal de Justiça, com a composição enunciada no nº 2 do art. 168º do EMJ, é um órgão de soberania diferenciado do Conselho Superior da Magistratura, do qual é completamente independente, estando garantida a isenção das suas decisões; c) O facto de os juízes dos Tribunais judiciais serem administrativamente geridos pelo CSM não significa qualquer dependência funcional do STJ, nem que os juízes dele recebam quaisquer ordens ou ínstruções; d) A secção contenciosa do Supremo Tribunal de Justiça é um órgão jurisdicional especializado, por razões históricas e de tradição, em dirimir os conflitos suscitados entre os juízes e o Conselho Superior da Magistratura, sendo integrada por Juízes Conselheiros com elevada preparação técnica, para os quais as questões jurídico-administrativas que lhes são postas nada têm de transcendente e muito menos de isotérico; e) Não corresponde à realidade a afirmação de que aos cidadãos/juízes é sonegado o acesso a uma jurisdição jurídico-administrativa especializada, sendo certo que a Constituição não proíbe a atribuição pontual a outros tribunais - que não à jurisdição administrativa - o julgamento de questões substancialmente administrativas; II - O Supremo Tribunal de Justiça, com a competência e composição definidas nos arts. 145º e 168º, nºs 1 e 2 do EMJ, é um órgão jurisdicional independente, imparcial e isento, que garante a tutela efectiva dos direitos daqueles que para ele recorrem das deliberações do Conselho Superior da Magistratura, pelo que não ocorre a violação das normas dos artigos 20º, nº 1, 203º e 268º, nºs 4 e 5 da Constituição da República. a) Na base da atribuição da competência ao Supremo Tribunal de Justiça para conhecer dos recursos interpostos das deliberações do CSM, está uma ideia importante para compreensão do princípio da 'separação de poderes' e da independência dos Tribunais: a de que cada categoria de Tribunais deve ter competência para fiscalizar, em matéria de legalidade, a gestão e disciplina do seu próprio quadro de juízes e as questões relativas ao respectivo contencioso eleitoral, como acontece também com o STA em relação às deliberações do CSTAF; b) Nesta matéria o princípio da especialização perde o seu sentido face à prevalência do princípio da autonomia, que reforça o estatuto de independência dos juízes de cada uma das categorias de Tribunais; III - Em matéria de custas, as disposições do artigo 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção dada pela Lei nº 10/94, de 5 de Maio e do artigo 179º, nº 2 daquele mesmo diploma têm de harmonizar--se. No presente caso é aplicável esta última norma, pelo que não há lugar à isenção de custas, invocada pelo Recorrente com base naquele artigo 17º, nº 1, g). Tal entendimento não viola o disposto nos artigos 18º, nº 3 e 20º, nº 1 da Constituição que, aliás, tutelam direitos não contemplados no espírito da previsão da alínea g) do nº 1 do artigo 17º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação A O objecto do recurso
5. O recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 145º, 168º, nºs 1 e
2, e 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho (na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio).
A redacção desses preceitos é a seguinte: Artigo 145º
(Contencioso eleitoral) O recurso contencioso dos actos eleitorais é interposto, no prazo de quarenta e oito horas, para o Supremo Tribunal de Justiça e decidido, pela secção prevista no artigo 168º, nas quarenta e oito horas seguintes à sua admissão. Artigo 168º
(Recursos)
1 - Das deliberações do Conselho Superior da Magistratura recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça.
2 - Para efeitos de apreciação do recurso referido no número anterior, o Supremo Tribunal de Justiça funciona através de uma secção constituída pelo seu vice-presidente e por quatro juízes, um de cada uma das secções, anual e sucessivamente designados, tendo em conta a respectiva antiguidade, cabendo ao vice-presidente voto de qualidade.
(...) Artigo 17º
( )
1 - São direitos especiais dos juízes:
(...)
A isenção de preparos e custas em qualquer acção em que o juiz seja parte
principal ou acessória, por via do exercício das suas funções.
(...)
O recorrente sustenta que as normas que conferem competência ao Supremo Tribunal de Justiça para decidir o recurso interposto nos presentes autos são inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 13º, 211º, nº
1, 212º, nº 3, 110º, nº 2, 20º, nº 1 e 268º, nº 4, da Constituição. Por outro lado, entende que o artigo 17º, nº 1, alínea g), tal como foi interpretado pelo acórdão recorrido, é inconstitucional, por violação dos artigos 18º, nº 3, e
20º, nº 1, da Constituição.
B A questão da constitucionalidade dos artigos 145 e 168º, nºs 1 e 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho
6. O recorrente impugna as normas do artigo 168º, nºs 1 e 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, dado que as mesmas pressupõem 'a caracterização da secção ad hoc do Supremo Tribunal de Justiça como órgão jurisdicional'. Na opinião do recorrente, essa secção só pode ser um órgão administrativo, uma vez que o presidente do Conselho Superior da Magistratura designa os juízes que constituem o próprio órgão jurisdicional, ou seja, ao abrigo do artigo 22º, nº
1, da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro. Em consequência, sustenta o recorrente a falta de independência estrutural dos membros da secção ad hoc do Supremo Tribunal de Justiça em relação ao Conselho Superior da Magistratura.
É de observar, no entanto, que a secção prevista no artigo 168º, nº
2, da Lei nº 21/85 apresenta uma composição que obedece a critérios estritamente objectivos: é presidida pelo vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça e integra o juiz mais antigo de cada secção, que cumpre um mandato anual. Trata-se, pois, de uma secção com uma competência especializada, mas cuja composição não é ditada arbitrariamente pelo presidente do órgão recorrido (isto
é, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, simultaneamente Presidente do Conselho Superior da Magistratura). E, por isso, carece de fundamento a alegação de falta de independência estrutural de tal secção do Supremo Tribunal de Justiça em relação ao Conselho Superior da Magistratura.
Aliás, sendo um órgão jurisdicional, claro está que a referida secção do Supremo Tribunal de Justiça beneficia da independência que o artigo
203º da Constituição confere a todos os tribunais sem excepção. Independência que, numa dimensão interna, implica que nenhum tribunal está subordinado a instruções hierárquicas de outro, sem prejuízo do instituto dos recursos e da existência de uma ordem judicial. Esta independência não é afectada, evidentemente, pela inevitável sujeição dos juízes a um poder disciplinar e pela consagração de um mecanismo de nomeação de juízes. Se assim fosse, então nenhum tribunal seria, afinal, independente.
7. Conjugadamente, os artigos 145º e 168º, nºs 1 e 2, da Lei nº
21/85, de 30 de Julho, consagram a competência do Supremo Tribunal de Justiça para apreciar e decidir a suspensão de eficácia interposta pelo ora recorrente junto do Tribunal Central Administrativo. Ora, o recorrente sustenta também que tais normas são inconstitucionais por violação do disposto nos artigos 13º, 20º, nº 1, 110º, nº 2, 211º, nº 1, 212º, nº 3, e 268º, nº 4, da Constituição.
Para o efeito, o recorrente procura, nas suas alegações, rebater o entendimento acolhido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 347/97, de 29 de Abril de 1997, em que se procedeu à apreciação da conformidade à Constituição do artigo 168º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, concluindo-se pela sua não inconstitucionalidade. Nesse aresto, o Tribunal Constitucional considerou que o artigo 214º, nº 3, da Constituição (actual artigo 212º, nº 3) não impõe que todas as questões emergentes de relações jurídicas administrativas tenham de ser dirimidas pelos tribunais administrativos. E concluiu que é constitucionalmente admissível a atribuição pontual e fundamentada de competência aos tribunais judiciais para a apreciação de questões de natureza administrativa. O recorrente sustenta, no entanto, que os tribunais judiciais têm competência residual e supletiva, que abrange apenas as matérias não atribuídas a outras ordens de jurisdição. Deste modo, o Supremo Tribunal de Justiça não poderia, em caso algum, possuir competência para julgar questões de natureza administrativa, justamente porque essas questões são cometidas a uma diferente ordem de jurisdição - os tribunais administrativos.
Todavia, tal como se evidenciou no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 347/97, o artigo 214º, nº 3, da Constituição, ao contemplar uma jurisdição administrativa ordinária, não impõe que todos os litígios emergentes de qualquer relação jurídica administrativa seja dirimidos pelos tribunais administrativos.
Com efeito, o que o legislador constitucional pretendeu, tal como é patenteado pelos trabalhos preparatórios da Revisão Constitucional de 1989
(relativos ao artigo 214º, nº 3, correspondente, como se referiu, ao actual artigo 212º, nº 3), foi estabelecer uma competência comum, genérica, dos tribunais administrativos para apreciar os litígios administrativos e não uma reserva absoluta de competência (cfr. Trabalhos Preparatórios da Revisão Constitucional, vol. IV, 1989, p. 4.134).
Daqui resulta que a finalidade essencial que presidiu à inserção da norma constante do nº 3 do artigo 214º (actual nº 3 do artigo 212º) na Revisão Constitucional de 1989 foi, como também se esclareceu, no citado Acórdão nº
347/97, abolir o caracter facultativo da jurisdição administrativa. Mas isto significa apenas que a existência de tribunais administrativos é obrigatória e que eles estão dotados, em geral, de competência para dirimir litígios administrativos - não que em casos pontuais e fundamentados, repete-se, os tribunais judiciais não possam ser competentes para apreciar determinadas questões de natureza administrativa. É o que sucede, por exemplo, no julgamento dos recursos de aplicação de coimas (artigo 59º e ss. do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro), dos recursos das decisões administrativas em matéria de patentes (artigo 2º do Código de Propriedade Industrial) e, em certos casos, no contencioso dos actos dos conservadores no domínio do direito registral e do notariado (artigos 145º e ss. do Código de Registo Predial, 104º e ss. do Código do Registo Comercial e 192º e ss. do Código do Notariado). A situação a que se reportam os presentes autos é um outro caso em que não só é tradicional como é aceitável a atribuição de competência a um tribunal judicial para dirimir um litígio administrativo, tal como a situação considerada no
âmbito do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 347/97.
8. O recorrente afirma, por outro lado, que os juízes do Supremo Tribunal de Justiça não têm a preparação especializada necessária para apreciar e decidir os recursos em matéria administrativa, o que torna as normas impugnadas inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 20º, nº 1,
212º, nº 3, e 268, nº 4, da Constituição.
Ora, sendo certo que a autonomia da jurisdição administrativa se liga à necessidade de preparação especializada do juiz apto a dirimir os litígios jurídico-administrativos (esse aspecto também foi ponderado no Acórdão nº 347/97), não se pode, no entanto, afirmar que seja inconstitucional a atribuição pontual de competência em matéria administrativa aos tribunais judiciais, maxime ao Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito, da Constituição não resulta uma suspeição sobre a preparação técnica em matéria administrativa dos juízes dos tribunais judiciais. Por outro lado, o próprio reconhecimento de casos pontuais e fundamentados em que é atribuída competência a tribunais não administrativos para dirimir litígios administrativos fundamenta-se, racionalmente, numa peculiar natureza desses conflitos que torna compreensível a intervenção de uma determinada categoria de tribunais. Isto é, no caso sub judicio a natureza do litígio é compatível com uma intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, atendendo à formação dos respectivos juízes.
9. O recorrente sustenta, também, que as normas em apreciação violam o princípio da igualdade, uma vez que um cidadão não juiz, sujeito ao poder disciplinar de uma autoridade pública, recorre para uma jurisdição especializada na resolução de litígios relativos ao poder disciplinar, o que é vedado pelas normas impugnadas a um juiz.
Ora, o exemplo que o recorrente utiliza não é pertinente nos presentes autos, desde logo porque (como se afirma no ponto III, 25, das alegações de recurso) 'no caso dos autos estamos perante, por um lado, a impugnação de eleições para alguns titulares de órgão do Estado gestores da magistratura judicial, eleições que decorrem da democraticidade inerente ao Estado de direito e que o caracteriza; por outro lado, estamos perante uma manifestação do princípio da participação de cidadão em processo eleitoral'. Não se trata sequer de matéria disciplinar. Se alguma analogia se poderia reconhecer, à sombra do princípio da igualdade, ela reportar-se-ia a outras eleições - nomeadamente para titulares de órgãos do Estado. E quanto ao contencioso de outras eleições, os tribunais judiciais possuem vastas competências (cf. artigo 23º da Lei nº 14/79, de 16 de Maio e artigo 17º do Decreto-Lei nº 701-B/76, de 29 de Setembro).
10. O recorrente sustenta, por último, que as normas impugnadas são inconstitucionais, em virtude de o 'texto constitucional não autorizar que o legislador ordinário atribua a outros tribunais o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais'. Invoca, no desenvolvimento de tal entendimento, o disposto no artigo 215º, nºs 2 e 3, da Constituição (na versão anterior à Revisão Constitucional de 1997).
As referidas normas constitucionais contemplavam a possibilidade de os tribunais militares possuirem competências para o julgamento de crimes dolosos e para aplicação de medidas disciplinares. Porém, esta previsão resultava do carácter excepcional dos próprios tribunais militares aos quais era atribuída uma competência restrita confinada, em princípio, ao julgamento de crimes essencialmente militares. De resto, a orientação da Revisão Constitucional de 1997 mais acentuou ainda este carácter de excepcionalidade ao admitir apenas que os tribunais militares se constituam durante a vigência do estado de guerra e ao cometer-lhes competência para o julgamento de crimes de natureza estritamente militar.
Em suma, estas disposições constitucionais revogadas não constituem um argumento válido para concluir que em caso algum os tribunais judiciais podem dirimir conflitos administrativos. Os tribunais judiciais são classificados como tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as
áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (artigo 211º, nº 1, da Constituição). Possuem, pois, vastas competências, que os distinguem radicalmente dos tribunais militares.
C O artigo 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio
11. O recorrente sustenta que a interpretação restritiva do artigo
17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº
10/94, de 5 de Maio, no sentido de o não considerar isento de custas nos presentes autos, é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 18º, nº 3, e 20º, nº 1, da Constituição. A norma impugnada estabelece a isenção de preparos e custas nas acções em que o juiz seja parte principal ou acessória, por via do exercício das suas funções.
A interpretação restritiva que o recorrente refere pressupõe que os efeitos do exercício da função de juiz, dada a sua natureza, pode acarretar uma litigiosidade acrescida. Segundo esse entendimento, contestado pelo recorrente, o legislador apenas pretendeu não sujeitar os juízes às regras gerais sobre custas nas acções em que intervenham, fundamentalmente em virtude da sua actividade profissional. É apenas essa a ratio essendi da norma na interpretação impugnada.
Segundo tal interpretação, não se trata, pois, de um privilégio pessoal. Assim, a isenção em causa não seria concedida em qualquer acção em que o juiz interviesse, apenas o seria nas acções em que o juiz interviesse 'por via do exercício das suas funções'.
Para além do mais, nos presentes autos, o recorrente decidiu tão-só impugnar as eleições para o Conselho Superior da Magistratura. Assim, se é verdade que tal pretensão é legítima por o recorrente ser magistrado, não se trata, contudo, de uma acção em que o juiz tenha intervindo por via do exercício das suas funções, segundo a interpretação referida. Com efeito, para tal interpretação não existe conexão directa entre a acção interposta e o exercício da profissão de magistrado, uma vez que aquela não surge como decorrência de uma actuação profissional do juiz. Trata-se, da mera efectivação judicial de um direito de participação na vida do Conselho Superior da Magistratura Judicial em função de uma decisão de consciência, enquanto profissional interessado no funcionamento daquela instituição.
Ora, não decorre da Constituição a exigência de qualquer privilégio nas condições de acesso à justiça em função do mero estatuto de Magistrado Judicial e da respectiva participação em actos eleitorais para o Conselho Superior da Magistratura. Consequentemente, não se verifica qualquer violação do disposto nos artigos 18º, nº 3, e 20º, nº 1, da Constituição. Na verdade, a interpretação acolhida pela decisão recorrida não limita o acesso aos tribunais nem qualquer direito, liberdade ou garantia (confronte., convergentemente, Acórdão do Tribunal Constitucional 697/96, de 22 de Maio).
III Decisão
12. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
Não julgar inconstitucionais as normas contidas nos artigos 145º e 168º, nºs
1 e 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, enquanto normas que conferem
competência contenciosa em matéria administrativa a uma secção do Supremo
Tribunal de Justiça;
Não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 17º, nº 1, alínea g),
da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº10/94, de 5 de Maio;
Negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, a decisão
recorrida, de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 UCs. Lisboa, 12 de Maio de 1999- Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa