Imprimir acórdão
Proc.Nº 640/97 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. – R... foi acusado e pronunciado pelo 2º Tribunal Militar Territorial do Porto como autor do crime de furto de material de guerra previsto e punido pelos artigos nºs 201º, nº1, alíneas a) e b), 'ex vi' artigo
205º, do Código de Justiça Militar (adiante CJM). Realizado o julgamento, veio a ser condenado pela prática do crime de furto qualificado previsto e punido pelo artigo 204º, alínea e), nº2, do Código Penal, em três anos e meio de prisão, substituída por igual tempo de presídio militar (Lei nº 58/77, de 5 de Agosto, com referência ao artigo 4º do Decreto-Lei nº 179/78, de 15 de Julho).
Não se conformando com o assim decidido, o arguido recorreu para o Supremo Tribunal Militar, discordando da medida da pena aplicada. Também recorreu da decisão o Promotor de Justiça, quer porque entende que os factos são subsumíveis ao artigo 201º, nº1, alíneas b) e c), 'ex-vi' do artigo 205º do CJM, quer porque defende que tais normativos não são inconstitucionais - ao contrário do decidido, que recusou a sua aplicação, sem interposição de recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional.
O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 25 de Outubro de 1997, decidiu negar provimento a ambos os recursos, julgando inconstitucional a norma da alínea b), do nº1, do artigo 201º, do CJM, na parte em que fixa a medida da pena abstracta do crime de furto de bens militares, e, quanto à acusação, julgou-a procedente, enquadrando os factos nos artigos 201º, nº1 e 205 do CJM, punindo-os pelo artigo 204º, nº2 do Código Penal, na pena de três anos e nove meses de prisão, substituída por igual tempo de presídio militar (artigo 4º do Decreto-Lei nº 179/78, de 15 de Julho).
Notificado desta decisão, dela recorreu o Promotor de Justiça junto do STM, por, no acórdão, se ter recusado a aplicação da norma do artigo 201º, nº1, alínea b) do CJM, no segmento acima referido, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
2. - Neste Tribunal, apresentou alegações o Ministério Público, tendo formulado as seguintes conclusões:
'1º - É inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 13º e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante da alínea b) do nº 1 do artigo 201º do Código de Justiça Militar, na parte em que fixa a medida abstracta da pena aplicável ao crime de furto de bens militares entre os limites mínimo e máximo de 8 e 12 anos de prisão.
2º - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
O recorrido, por sua vez, não apresentou alegações.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
3. - De acordo com a decisão recorrida, a norma da alínea b), do nº 1, do artigo 201º do CJM, na redacção do Decreto-Lei nº 81/82, de 15 de Março, no segmento em que fixa a medida da pena abstracta do crime de furto de bens militares é inconstitucional, por violação dos princípios conjugados da proporcionalidade e da igualdade
Sobre esta matéria, escreveu-se no acórdão recorrido o seguinte:
'Como é sabido, o actual C.J.M. vigora quase sem alterações, desde 1977 e em
1982 foi aprovado um novo Código Penal que introduziu importantes alterações nos diversos regimes penais, nomeadamente quanto às medidas das penas aplicáveis aos diversos delitos. No que toca aos crimes contra o património, foram substancialmente reduzidas as penas aplicáveis, tendo em conta a profunda alteração que a importância do direito de propriedade passou a ter na sociedade. O C.J.M. não acompanhou, como devia, estas alterações e as penas nele previstas passaram a ser, a partir da entrada em vigor do novo Código Penal e tendo em conta as concepções por este introduzidas, desproporcionadas relativamente aos delitos contra o património, desproporcionalidade que, segundo o entendimento do Tribunal Constitucional, ofende a Constituição, quando conjugada com a igualdade relativa que deve haver na punição de crimes semelhantes. Daí que, não obstante se ter de reconhecer que, como defende o Exmo. Promotor recorrente, serem diversos os crimes comum e militar de furto, em face dos valores e bens jurídicos protegidos por cada uma das incriminações, o certo é que a desproporcionalidade entre as penas previstas para o crime militar e o semelhante crime comum, bem patente no facto de a pena mínima daquele ser igual
à máxima deste, torna a primeira inconstitucional e, consequentemente, inaplicável pelo Tribunal. Simplesmente, o que é inconstitucional é apenas o segmento da norma que contém a pena prevista na citada alínea b) e não a norma incriminadora correspondente. Se esta também fosse inconstitucional, como decidiu o aresto recorrido, não haveria o crime essencialmente militar de furto e o foro castrense seria incompetente para julgar o problema ora sub juditio. Mas, como é evidente, a inconstitucionalidade da medida da pena não implica a da previsão do crime, que se mantém íntegra.'
A norma em causa tem a seguinte redacção:
'1. Aquele que integrado ou ao serviço das forças armadas, fraudulentamente subtrair dinheiro documentos ou quaisquer objectos pertencentes ou afectos ao serviço das mesmas, ou pertencentes a militares, será condenado: a)................................................; b) A prisão maior de oito a doze anos se o valor do furto, não excedendo
1.000.000$00, for superior a 120.000$00; c) [_];'
De acordo com a decisão recorrida, o crime cometido pelo arguido, ainda que previsto no Código de Justiça Militar (aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril, com redacção do Decreto-Lei nº 81/82, de
15 de Março), tem de ser punido - face ao julgamento de inconstitucionalidade do artigo 201º, nº1, alínea b) do CJM - pela utilização da pena prevista no nº2 do artigo 204º do Código Penal.
Esta norma, relativa ao «furto qualificado», estabelece o seguinte:
'2. Quem furtar coisa móvel alheia: a) De valor consideravelmente elevado; b) Que possua significado importante para o desenvolvimento tecnológico ou económico; c) Que por sua natureza seja altamente perigosa; d) Que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção ou exposição públicas ou acessíveis ao público; e) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas; f) Trazendo, no momento do crime, arma aparente ou oculta; ou g) Como membro de bando destinado à prática reiterada de crimes contra o património com a colaboração de pelo menos outro membro do bando;
é punido com pena de prisão de dois a oito anos.'
A questão que agora se coloca é a de saber se a norma do artigo 201º, nº1, alínea b) do CJM, na parte em prevê para o furto de objectos pertencentes ou afectos ao serviço das forças armadas, cujo valor se situe entre os 1.000 contos e os 120 contos, a pena de prisão de oito a doze anos, padece de inconstitucionalidade. Com efeito, a decisão recorrida deu resposta afirmativa a essa questão, tendo entendido que a pena prevista, sendo significativamente mais grave do que a cominada em correspondente norma do Código Penal, não tem a sustentar tal diferenciação qualquer justificação material razoável.
A norma viu a sua aplicação recusada nos autos com fundamento em inconstitucionalidade por violação dos princípios conjugados da igualdade e da proporcionalidade, uma vez que o crime de furto qualificado, pelo qual o recorrente veio a ser condenado, previsto no nº 2 do artigo 204º do Código Penal, é punido tão somente com uma pena de prisão de dois a oito anos
(artigos 13º e 18º, nº 2, da Constituição).
Vejamos.
4. - Nos autos não vem questionada a natureza essencialmente militar do crime em causa. O crime de furto não é exclusivamente militar, mas dependendo a gravidade da condenação das circunstâncias de facto que vierem a provar-se e que influenciem a medida da pena, é admissível que, no
âmbito militar, tal crime possa ter repercussões diferentes a nível da moldura penal, em atenção à defesa de valores diversos dos que a norma incriminadora visa proteger no domínio não militar.
Porém, o princípio da igualdade reclama, não que todos sejam tratados, em quaisquer circunstâncias, por forma idêntica, mas antes que os que estão em situação de igualdade recebam tratamento igual e os que estão em situação desigual sejam desigualmente tratados. A protecção material concedida pelo princípio da igualdade, assume, em especial, a natureza de uma proibição do arbítrio, isto é, a proibição de medidas manifestamente desproporcionadas ou inadequadas em relação à situação de facto a regular. O princípio impõe, assim, a proibição de discriminações arbitrárias, não devidamente justificadas nas especialidades fácticas de imediato significado valorativo compatível com o quadro de valores constitucionais (cfr. o Acórdão nº 958/96, in 'Diário da República', II Série, de 13 de Dezembro de 1996).
Porém, é claro que o apelo isolado ao princípio da igualdade não basta para resolver a questão suscitada. É que os bens jurídicos protegidos pelos tipos legais de crime previstos no Código de Justiça Militar e no Código Penal, se não estiverem no mesmo plano de igualdade, não merecerão o mesmo tratamento legal: sendo duas realidades distintas, o legislador não tem que respeitar um mesmo tratamento para elas, sendo aceitável que as penas em direito penal militar possam ser mais graves do que em direito penal comum.
A respeito de um caso similar, escreveu-se no Acórdão nº
370/94 (in 'Diário da República', IIª Série, de 7 de Setembro de 1994) o seguinte:
'É esta, no dizer de Rui Pereira («O princípio da igualdade em Direito Penal», in 'O Direito', 1988, I-II,pp.153/154), uma das inúmeras situações em que a existência ou agravamento de responsabilidade penal decorre do exercício de certos cargos ou funções (é o caso dos funcionários e agentes da Administração Pública, dos militares, dos advogados e solicitadores, dos médicos e profissionais da medicina em geral, dos profissionais do comércio e indústria e dos profissionais da construção civil). Em todos estes casos, a criação ou agravamento da responsabilidade criminal só podem encontrar a sua razão de ser na circunstância de o crime ser praticado no exercício (ou a coberto) daqueles cargos ou funções. De tal modo, a sua prática documentará um maior grau de ilicitude do facto ou de culpa do agente, sendo respeitada a proporcionalidade entre o crime e a pena e não se vislumbrando qualquer discriminação (que ofenda o princípio da igualdade).'
Assim, a fundamentação material bastante para uma diferente perspectiva na dosimetria abstracta da punição do furto no âmbito militar quando comparada com a fixada para o direito penal comum pode encontrar-se na diversa caracterização da comunidade civil quando comparada com a comunidade militar, fazendo esta apelo a deveres militares e a valores como a segurança e a disciplina das Forças Armadas e ainda a interesses militares de defesa nacional.
Porém, se em abstracto, tais referências podem dar consistência a uma justificação material para um tratamento diferente, todavia, esta diferenciação não pode deixar de respeitar o princípio da proporcionalidade implícito no artigo 18º, nº 2, segunda parte, da Constituição. Como se escreveu no Acórdão nº 958/96, atrás referido, 'A relevância do princípio da igualdade como critério de constitucionalidade das medidas legais das penas é, consequentemente, filtrada por uma complexa teia de condicionantes que impedem nivelações de sanções com base em abstractos juízos de valor orientados apenas pela importância objectiva dos bens jurídicos protegidos'.
Assim, e voltando ao caso concreto em apreço, temos que a pena prevista no Código de Justiça Militar para o crime de furto de objectos, se o respectivo valor for superior a 120 contos e não exceder 1.000 contos é a de prisão de oito a doze anos; no Código Penal, a pena para o furto qualificado, se o valor do objecto for consideravelmente elevado, é a de prisão de dois a oito anos.
Desta comparação ressalta claramente que o mínimo da pena do CJM corresponde ao máximo da pena comum (sendo certo que o 'fosso' ainda se alarga mais se se considerar quer o furto simples quer o furto qualificado de valor elevado - prisão até três anos ou com pena de multa e prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias).
Resulta, por consequência, claro, da comparação entre os dois regimes punitivos que, ao menos nos limites mínimos, o CJM dá um tratamento desproporcionadamente diferente a uma ilicitude material paralela, o que permite afirmar-se a existência de uma violação dos princípios conjugados da igualdade e da proporcionalidade.
Tanto basta para que o presente recurso tenha de improceder. III - DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 201º, nº1, alínea b), do Código de Justiça Militar, na parte em que estabelece a pena de oito a doze anos para o furto de objectos pertencentes ou afectos ao serviços das Forças Armadas, de valor superior a 120.000$00 e não excedendo 1.000.000$00, por violação dos princípios conjugados da igualdade e da proporcionalidade;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 6 de Maio de 1998 Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Artur Mauricio Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa