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Processo n.º 776/97 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M... e ML... interpõem recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
30 de Outubro de 1997, que confirmou um acórdão da Relação confirmativo da sentença da 1ª instância, que tinha julgado a CÂMARA MUNICIPAL DE OEIRAS habilitada a prosseguir, como Autora, na acção de reivindicação que a INDEP-INDÚSTRIAS E PARTICIPAÇÕES DE DEFESA, SA, tinha proposto contra eles, pedindo que fossem condenados a reconhecer o direito de propriedade dela, Autora, sobre a casa de habitação (casa n.º 8), sita na Rua dos Sargentos, em Barcarena, que estivera afecta à antiga Fábrica da Pólvora de Barcarena
(edifício n.º 87), inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 2 031 e descrita na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1 347; e condenados, bem assim, a entregar-lha.
Pretendem os recorrentes que este Tribunal julgue inconstitucionais os Decretos-Lei nºs 515/80, de 31 de Outubro, e 485/85, de 22 de Novembro.
Os recorrentes apresentaram alegações que concluíram do modo que segue:
(a). A norma do artigo 376º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil é inconstitucional, na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, pois, se dispensar a apreciação pelo juiz do título invocado pela habilitanda sobre a perspectiva de ter emergido duma conjuntura normativa que viole o princípio da separação dos poderes, admite, num segmento processual, uma ofensa directa a princípios estruturantes da Constituição [ ...] .
(b). Tanto se conclui para prevenir a hipótese de poder defender-se que foi a aplicação da citada norma, no fim de contas, o motivo decisivo da solução final dada ao caso.
(c). Porém, se tivermos em conta que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça parece antes fundar-se na recusa da invocada inconstitucionalidade dos Decretos-Leis n.º 515/80, de 31 de outubro, e n.º 448/85, de 22 de Novembro, então mantém-se que as normas destes diplomas legais através das quais as instalações da Fábrica de Pólvora foram desafectadas do domínio público, contrariam a reserva de lei consignada actualmente no artigo 165º, n.º 1, alínea v), da Constituição da República Portuguesa.
(d). Na verdade, as instalações fabris militares mantêm-se no domínio público pelas disposições dos artigos 6º e 7º da Lei n.º 2 078, de 11 de Julho de 1955, nada opondo a Constituição à recepção deste direito anterior, em face do que dispõe o artigo 84º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
(e). Donde, a desafectação só poderia ter ocorrido havendo lei da Assembleia da República a autorizar o Governo, segundo a norma do invocado artigo 165º, n.º 1, alínea v), da Constituição da República Portuguesa.
(f). E como não houve, terá de concluir-se [ ...] para serem declaradas inconstitucionais as ditas normas dos diplomas em causa.
(g). Assim, aceitando como título bastante para a habilitação uma escritura de compra e venda civil de um prédio urbano integrado nas instalações da Fábrica de Pólvora da Barcarena, como se do domínio privado do Estado se tratasse, caucionada a decisão na constitucionalidade dos decretos-lei acima referidos, fez o tribunal aplicação de normas inconstitucionais, como lhe está vedado pelo artigo 204º da Constituição da República Portuguesa.
(h). Não procedendo por fim o argumento da desafectação tácita ou de facto, para além do mais por não ter consistência histórica, dado que a utilidade a que estão indexadas as instalações fabris militares não é o prosseguimento de qualquer guerra, mas habilitar a eficiência das Forças Armadas, que bem vistas as coisas se destina antes a manter a paz pela dissuasão, mas que importaria sempre uma violação, no caso em apreço, do princípio da autorização por parte da Assembleia da República.
A CÂMARA MUNICIPAL DE OEIRAS, na alegação que apresentou, formulou as seguintes conclusões:
(a). A alegação de inconstitucionalidade dos Decretos-Leis 515/80, de 31 de Outubro, e 485/85, de 22 de Novembro, não oferece qualquer consistência.
(b). A aplicação ao caso dos autos dos dois referidos diplomas é de todo irrelevante para a decisão de habilitação da ora recorrente na acção principal de reivindicação de propriedade, que veio a ser sucessivamente confirmada respectivamente pelos Tribunais de Oeiras, Relação de Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça.
(c). Acresce que a eventual inconstitucionalidade dos dois diplomas consequências algumas trará, para o bem fundado da decisão de habilitação, sendo aliás evidente que a douta decisão do Supremo tribunal de Justiça se limita a analisar - e bem - a referida compatibilidade constitucional num contexto manifestamente alheio à decisão que produziu e que confirmou anterior da Relação de Lisboa.
(d). Mesmo analisado, nas suas eventuais e remotas implicações, é claro que [ o] imóvel transmitido à ora recorrida [ por lapso, escreveu-se recorrente] , uma casa de habitação, não é um bem do domínio público, mas sim do domínio privado do Estado, quaisquer que sejam os critérios utilizados para aferir dessa qualidade.
(e). Não há inconstitucionalidade por violação da reserva da lei, dado que os diplomas em causa não se referem a bens do domínio público nem operam qualquer alteração dos sectores ou bens de propriedade dos meios de produção.
(f). Em qualquer caso o âmbito de protecção da reserva de lei tal como se prevê no artigo 165º, n.º 1, alínea v), da Constituição da República Portuguesa actual, refere-se tão-só a definição dos bens que integram o domínio público e o seu regime específico, em termos gerais, o que não põe em causa a possibilidade de por decreto-lei o Governo proceder à transferência de bens - do domínio privado do Estado, aliás - de empresas de direito público para uma empresa pública. Termos em que [ ...] deve o presente recurso de inconstitucionalidade ser julgado improcedente.
2. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. O objecto do recurso:
3.1. A recorrente, nas conclusões da alegação, diz que 'a norma do artigo 376º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil é inconstitucional, na interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido'. E acrescenta que 'tanto se conclui para prevenir a hipótese de poder defender-se que foi a aplicação da citada norma, no fim de contas, o motivo decisivo da solução final dada ao caso'. O Tribunal não apreciará, porém, esta questão de constitucionalidade.
É que, o objecto do recurso define-se no requerimento de interposição. Nas conclusões da alegação, pode o mesmo ser restringido, mas não ampliado (cf. artigo 684º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do disposto no artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional). Por isso, aquela questão não se inclui no objecto deste recurso.
3. 2. A recorrente, no requerimento de interposição do recurso, indicou como seu objecto as normas dos Decretos-Leis nºs 515/80, de 31 de Outubro, e 485/85, de
22 de Novembro, cuja apreciação de constitucionalidade pretende.
No entanto, como vai ver-se, tais diplomas não estão aqui sub iudicio, na sua totalidade.
É que, a recorrente o que, verdadeiramente, questiona é - nos seus próprios dizeres - a constitucionalidade das 'normas destes diplomas legais através das quais as instalações da Fábrica de Pólvora foram desafectadas do domínio público', pois - disse - o acórdão recorrido aceitou 'como título bastante para a habilitação uma escritura de compra e venda civil de um prédio urbano integrado nas instalações da Fábrica de Pólvora da Barcarena, como se do domínio privado do Estado se tratasse, caucionada a decisão na constitucionalidade dos decretos-lei acima referidos'.
Decorre daqui que, verdadeiramente, apenas estão em causa nos autos os segmentos dos artigos 2º, n.º 2 (1º trecho), e 3º do Decreto-Lei n.º 515/80, de 31 de Outubro, na sua redacção inicial; o segmento do artigo 3º do mesmo Decreto-Lei n.º 515/80, de 31 de Outubro (agora na redacção introduzida pelo artigo único do Decreto-Lei n.º 485/85, de 22 de Novembro), e, bem assim, o segmento da relação anexa a este decreto-lei - segmentos atinentes ao imóvel questionado nos autos, que é a casa de habitação (casa n.º 8), sita na Rua dos Sargentos, em Barcarena, que estivera afecta à antiga Fábrica da Pólvora da Barcarena (edifício n.º 87), inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 2 031 e descrita na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1 347.
O artigo 2º, n.º 2(1º trecho) do Decreto-Lei n.º 515/80 reza assim: Artigo 2º. 2. É transferida para a INDEP, na data de entrada em vigor deste diploma, a universalidade de bens, direitos e obrigações da Fábrica Militar de Braço de Prata e da Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras.
Por sua vez, o artigo 3º do mesmo diploma legal preceitua: Artigo 3º. A transferência para a INDEP de todos os bens do património da Fábrica Militar de Braço de Prata e da Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras far-se-á por força do presente diploma, o qual constituirá título suficiente para todos os efeitos legais, incluindo os de registo.
O artigo 3º e a relação anexa (na redacção do Decreto-Lei n.º 485/85, de 22 de Novembro), na parte que aqui importa, dispõem: Artigo 3º. 1. A transferência para a INDEP de todos os bens e património da Fábrica Militar de Braço de Prata e da Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras far-se-á por força do presente diploma, o qual constituirá título suficiente para todos os efeitos legais, incluindo os de registo.
2. É autorizado o Ministro das Finanças e do Plano, através da Direcção-Geral do Património do Estado, a ceder à INDEP, a título definitivo e gratuito, os imóveis do domínio privado do Estado, afectos ao Exército, a título precário, para utilização pela Fábrica Militar de Braço de Prata e pela Fábrica de Munições de Armas Ligeiras, bem como o imóvel, também afecto ao Exército, que esteve arrendado à Companhia de Pólvoras e Munições de Barcarena, SARL, por escritura pública de 19 de Setembro de 1951, autorizada pelo Decreto-Lei n.º 38
350, de 1 de Julho de 1951, já utilizado pela Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras, e que constam da relação anexa a este diploma.
3. Os imóveis cedidos ou aqueles que venham a resultar da sua conversão, quer através de reconstrução, quer através de permuta, ficarão afectos à instalação de serviços que directa ou indirectamente se relacionem com a actividade exercida pela INDEP.
4. A cessão efectuar-se-á por meio de auto lavrado e assinado na Direcção-Geral do Património do Estado, o qual constitui título bastante para a realização dos necessários registos.
Quanto à relação anexa, o que aqui está em causa é o seguinte: Relação dos imóveis a ceder à INDEP:
2. Imóveis afectos à Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras: f). Fábrica de Pólvoras M1 Barcarena, referenciado pelo Exército como PM 87- Oeiras.
3.3. Antes de se entrar na apreciação da questão de constitucionalidade, convém referir ainda que, contrariamente ao que sustenta a recorrida, um eventual julgamento de inconstitucionalidade das normas que constituem objecto do recurso
é susceptível de se repercutir utilmente na decisão da habilitação. Na verdade, o acórdão recorrido, para decidir como decidiu, não fez apelo apenas
à escritura de venda do imóvel atrás referido, de 30 de Junho de 1995; arrimou-se também a tais normativos.
Há, assim, que passar à apreciação da questão de constitucionalidade.
4. A questão de constitucionalidade:
4.1. Entende a recorrente que as normas aqui sub iudicio versam matéria incluída na reserva parlamentar, uma vez que elas procederam à desafectação das
'instalações da Fábrica de Pólvora', que se mantinham no 'domínio público pelas disposições dos artigos 6º e 7º da Lei n.º 2 078, de 11 de Julho de 1955', quando o certo é que tal desafectação 'só poderia ter ocorrido havendo lei da Assembleia da República a autorizar o Governo, segundo a norma do [ ...] artigo
165º, n.º 1, alínea v), da Constituição da República Portuguesa'.
4.2. Para saber se, como pretende a recorrente, as normas aqui sub iudicio versam matéria pertencente à reserva parlamentar, o parâmetro de referência é o texto constitucional em vigor na data da emissão de cada uma delas, pois que, estando em causa a competência do Governo para editar certa legislação, há que fazer apelo ao princípio tempus regit actus.
Ora, as normas dos artigos 2º, n.º 2 (1º trecho), e 3º do Decreto-Lei n.º
515/80, de 31 de Outubro (redacção inicial), foram editadas no domínio da versão originária da Constituição; e as do artigo 3º do mesmo Decreto-Lei n.º 515/80, de 31 de Outubro, na redacção introduzida pelo artigo único do Decreto-Lei n.º
485/85, de 22 de Novembro, e da relação anexa foram emitidas, achando-se em vigor a versão da Lei Fundamental saída da revisão constitucional de 1982.
É, pois, com estes textos constitucionais que há que confrontar as referidas normas legais. Pois bem: o artigo 167º da versão originária da Constituição, onde se enunciavam as matérias da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República, não fazia qualquer referência expressa ao domínio público. Já, porém, a alínea x) do n.º 1 do artigo 168º da versão de 1982 dispunha que 'é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: x). definição e regime do domínio público' [ Cf. a disposição similar que constava do artigo 168º, n.º 1, alínea z), da versão de
1989, a que corresponde o artigo 165º, n.º 1, alínea v), da revisão de 1997] .
Por conseguinte, ao menos a partir de 1982, só a Assembleia da República (ou o Governo por ela autorizado) passou a poder definir os tipos de bens que integram o domínio público e, bem assim, o seu regime específico, o qual compreende as regras que regulam a aquisição do carácter dominial, a utilização das coisas dominiais e a cessação da dominialidade. No entanto, enquanto a Assembleia da República não legislasse sobre tal matéria, o domínio público continuava constituído pelos bens que, até aí, o compunham e sujeito ao regime por que até então se vinha regendo.
Pois bem: no domínio da Constituição de 1933, os bens do domínio público do Estado eram os enumerados no artigo 49º da Constituição (versão de 1971) e no Decreto-Lei n.º 23 565, de 15 de Fevereiro de 1934. O citado artigo 49º indicava como bens do domínio público, entre outros:
(a). as zonas territoriais reservadas para a defesa militar (n.º 7); e
(b). quaisquer outros bens sujeitos por lei ao regime do domínio público (n.º
8º). O Decreto-Lei nº 23 565, no elenco dos bens que faziam parte do domínio público, incluía 'as obras de defesa militar e os navios de guerra, enquanto não forem declarados na situação de completo desarmamento' [ alínea f)] . Importa referir também a Lei n.º 2 078, de 11 de Julho de 1955, que contém o regime das servidões militares - que são as que incidem sobre 'zonas confinantes com organizações ou instalações militares, de carácter permanente ou temporário'
(artigo 1º) - e, bem assim, o de outras restrições ao direito de propriedade, incidentes sobre 'zonas não confinantes com organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional, mas integradas nos planos de operações militares' (artigo 1º). Esta lei, no seu artigo 6º, classificou as organizações ou instalações militares em:
(a). organizações ou instalações afectas à realização de operações militares, como locais fortificados, baterias de artilharia fixa, estradas militares, aeródromos militares ou civis, instalações de defesa aérea de qualquer natureza, e quaisquer outras integradas nos planos de defesa; e
(b). organizações ou instalações afectas à preparação ou manutenção das forças armadas, como aquartelamentos, campos de instrução, carreiras e polígonos de tiro, estabelecimentos fabris militares, depósitos de material de guerra, de munições e explosivos, de mobilização ou de combustíveis, e quaisquer outras que tenham em vista o equipamento e a eficiência das mesmas forças.
As organizações ou instalações militares - prescreve o artigo 7º da lei - pertencem ao domínio público do Estado e só podem ser distraídas dele, mediante desafectação. A desafectação (expressa, entenda-se) far-se-á por decreto (§ 1º do artigo 7º).
Importa ter em conta ainda o Decreto-Lei n.º 477/80, de 15 de Outubro, que comete ao Ministério das Finanças e do Plano, através da Direcção-Geral do Património do Estado, o encargo de organizar 'o inventário geral dos elementos constitutivos do património do Estado'; e, bem assim, o de proceder à sua
'periódica actualização' (artigo 1º). Neste diploma legal, dispõe-se que, para efeitos de inventário, se entende por património do Estado 'o conjunto de bens do seu domínio público e privado, e dos direitos e obrigações com conteúdo económico de que o Estado é titular, como pessoa colectiva de direito público' (artigo 2º), sendo que o inventário geral
'compreende o domínio público, o domínio privado e o património financeiro do Estado (artigo 3º). No artigo 4º deste decreto-lei, enumeram-se os bens que, para efeitos de inventário geral, constituem o domínio público do Estado. Aí se incluem, entre outros:
(a). as obras e instalações militares, bem como as zonas territoriais reservadas para a defesa militar [ alínea i)] ;
(b). os navios da armada, as aeronaves militares e os carros de combate, bem como outro equipamento militar de natureza e durabilidade equivalentes [ alínea j)] ;
(c). quaisquer outros bens do Estado sujeitos por lei ao regime do domínio público [ alínea p)] . Ainda de acordo com o artigo 12º do mesmo diploma legal, 'os bens móveis e imóveis do Estado afectos às forças armadas serão objecto de inventários por elas organizados' (n.º 1), sendo 'estabelecidas por diploma próprio' 'a forma e tramitação [ desses] inventários' (n.º 2).
4.3. Abre-se aqui um parêntesis para referir que, no tocante aos bens que compõem o domínio público, após a revisão de 1989, passou a Constituição, ela própria, a enumerá-los. Dispôs-se, de facto, no artigo 84º, n.º 1 - que a revisão de 1997 manteve intocado - que pertencem ao domínio público: a). as águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos; b). as camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário; c). os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com excepção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na construção; d). as estradas; e). as linhas férreas nacionais; f). outros bens como tal classificados por lei.
Para a lei - acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo 84º - ficou a discriminação dos bens que integram 'o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais', bem como a definição do
'seu regime, condições de utilização e limites'.
Os bens enunciados nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 84º da Constituição, como a sua existência e o seu estado resultam de fenómenos naturais, constituem aquilo a que a doutrina chama domínio público natural. Os bens referidos nas alíneas d) e e) constituem o chamado domínio público artificial, pois que resultam da acção do homem. Uma outra classificação distingue entre domínio público necessário e domínio público acidental, pertencendo àquele os bens que não podem deixar de pertencer ao Estado, nem ter outro estatuto jurídico que não seja o da sua sujeição ao regime de domínio público: é o caso do domínio marítimo, do domínio hídrico, do domínio aéreo e do domínio militar.
4.4. A característica essencial do regime dos bens do domínio público é o facto de, enquanto se mantiverem aí integrados, estarem submetidos a um regime de direito público, que o mesmo é dizer terem um estatuto jurídico de dominialidade. Encontram-se, por isso, fora do comércio jurídico privado - o que significa que não podem ser objecto de propriedade privada ou de posse civil, nem de contratos de direito civil, designadamente de venda ou permuta. Mais: tais coisas são imprescritíveis e inalienáveis. Dispõe, na verdade, o artigo 202º, n.º 2, do Código Civil que se consideram fora do comércio jurídico (recte, do comércio jurídico privado) 'as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram do domínio público e as que, por sua natureza, são insusceptíveis de apropriação individual'.
Os bens do domínio público podem, no entanto, ser objecto de uso privativo pelos particulares e, mesmo, de exploração económica, em regime de licença ou de concessão.
O fundamento da submissão dos bens ao regime do domínio público é a utilidade pública: 'umas vezes natural, como no caso dos espaços, outras inerente, como sucede com as coisas cuja razão de ser é a utilização pela colectividade, através do uso individual ou pela Administração Pública; outras funcional, quando essa submissão é conveniente para que as coisas, acidentalmente destinadas por decisão de órgão competente à utilidade pública, cumpram a sua função' [ cf. MARCELO CAETANO (Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 1977, página 413)] . Por isso, quando deixam de ter a utilidade pública a que se achavam destinados, tais bens perdem o carácter dominial. Dá-se, então, a sua desafectação do domínio público. Uma vez desafectados do domínio público, ingressam tais bens no comércio jurídico privado.
A desafectação do domínio público pode ser expressa ou tácita. Esta última verifica-se, sempre uma coisa deixa de servir ao seu fim de utilidade pública e passa a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração. Escreve MARCELO CAETANO: A desafectação tácita das coisas públicas tem de ser aceite em todos os casos em que exista uma mudança de situações ou de circunstâncias que haja modificado o condicionalismo de facto necessariamente pressuposto pela qualificação jurídica.
[ ...] . A desafectação tácita significa que a coisa perdeu o carácter público e ficou pertencendo ao domínio privado da pessoa jurídica de direito público sua proprietária O simples desinteresse ou abandono administrativo de uma coisa dominial que haja conservado a utilidade pública não vale por desafectação tácita. A desafectação há-de ser consequência da cessação da função que estava na base do carácter dominial. Daí resulta que, a partir do momento em que se haja verificado a tácita desafectação, entra no comércio jurídico-privado e se torna alienável e prescritível.
[ Cf. ob. cit., página 446. Cf. também, do mesmo autor, Manual de Direito Administrativo, 9ª edição, volume II, Coimbra, 1980, página 958, que refere um
único caso em que a lei não admite a desafectação tácita de bens: é o caso dos bens afectos às administrações portuárias (Decreto-Lei n.º 39 083, de 17 de Janeiro de 1953, artigo 2º, § 1º)] .
4.5. Diferente é o regime a que estão sujeitos os bens do domínio privado do Estado. Estes bens, ao menos em princípio, estão inseridos no comércio jurídico privado e sujeitos a um regime de direito privado. São bens 'em regime de propriedade privada' - para dizer com ROGÉRIO EHRHARDT SOARES (Sobre os baldios, in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XIV, página 259). E, por isso, podem eles ser objecto de arrendamento, de troca, de servidão, de direito de superfície, etc. - tudo nos termos do Código Civil. O regime de direito privado só lhes não é aplicável, quando haja legislação especial a dispor de modo diferente (é o caso, por exemplo, do arrendamento de prédios do Estado) ou quando a sua aplicação contrarie a natureza própria de um tal tipo de domínio.
É que, apesar de privado, trata-se de um domínio que, por ser pertença de uma pessoa colectiva de direito público, pode ser influenciado pelos fins de interesse público que a essa pessoa colectiva cabe prosseguir, e, nessa medida, escapar à aplicação pura e simples do direito privado. Dispõe, na verdade, o artigo 1304º do Código Civil que 'o domínio das coisas pertencentes ao Estado ou a quaisquer outras pessoas colectivas públicas está igualmente sujeito às disposições deste código em tudo o que não for especialmente regulado e não contrarie a natureza própria daquele domínio'. [ Sobre as questões de interpretação levantadas por este artigo, cf. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (Código Civil Anotado, Coimbra, 1972, páginas 79 a 81); MARCELO CAETANO (Manual cit., II, páginas 892 e 962) e ROGÉRIO EHRHARDT SOARES (Sobre os baldios cit., páginas 259 e seguintes)] .
4.6. No caso que nos ocupa, aceitando que a casa de habitação questionada nos autos alguma vez integrou o domínio público do Estado - e não o seu domínio privado -, o que, então, importa saber é se foram as normas sub iudicio que importaram a desafectação de tal imóvel daquele domínio, pois só nesse caso o Governo terá invadido a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, sem para tanto dispor de credencial parlamentar.
Ora, deflui de tudo quanto consta dos autos que, no momento em que as normas, cuja constitucionalidade vem questionada, foram editadas, já a referida casa de habitação tinha perdido o carácter dominial - se é que alguma vez o teve. De facto, é logo o acórdão recorrido que dá como assente que 'a maioria dos terrenos e edifícios utilizados [ pela INDEP] sempre pertenceram ao domínio privado do Estado'(cf. n.º 9); e que, no que concerne à Fábrica da Pólvora, em cujo complexo se integrava a casa de habitação aqui em causa (cf. supra 3.2), no mínimo, a sua passagem para o domínio privado do Estado se tinha verificado por desafectação tácita. Acresce que, conforme consta desse aresto, são os próprios recorrentes a afirmar, na acção principal, que detêm 'a casa em questão', 'por via de contrato de arrendamento'. Ora, como decorre do que se disse atrás, tal casa só podia ter sido objecto de um contrato de arrendamento, no caso de a mesma se integrar ao domínio privado do Estado, e nunca se fizesse parte do seu domínio público.
A pertença da casa em questão ao domínio privado do Estado, em data anterior à da edição das normas aqui sub iudicio, é, de resto, suficientemente atestada pela referência que, no artigo 3º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 515/80, de 31 de Outubro, na redacção do artigo único do Decreto-Lei n.º 485/85, de 22 de Novembro, é feita ao imóvel em que ela se integrava. Na verdade, diz-se nesse preceito que o Ministro das Finanças fica autorizado a ceder à INDEP, a título definitivo e gratuito, 'o imóvel [ ...] que esteve arrendado à Companhia de Pólvoras e Munições de Barcarena, SARL, por escritura pública de 19 de Setembro de 1951, autorizada pelo Decreto-Lei n.º 38 350, de 31 de Julho de 1951, já utilizado pela Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras', que consta da relação anexa. Ora, este Decreto-Lei n.º 38 350, no seu artigo 1º, autorizou o Governo a dar de arrendamento e aluguer o conjunto de bens móveis e imóveis que constituem o estabelecimento fabril denominado Fábrica Militar de Pólvoras e Explosivos [ ...] situada na povoação de Barcarena, do concelho de Oeiras'. Por conseguinte, o complexo de que fazia parte a casa de habitação questionada nos autos, incluindo tal imóvel, já em 31 de Julho de 1951 - data da edição do Decreto-Lei n.º 38 350 - se integrava no domínio privado do Estado. E, por isso, pôde ser dada de arrendamento pela escritura pública de 19 de Setembro de 1951.
Suposto, pois, que a dita casa de habitação alguma vez integrou o domínio público do Estado - questão que aqui não há necessidade de decidir -, a sua desafectação não se operou pelas normas que constituem objecto do recurso.
5. Conclusão: As normas em causa não são inconstitucionais, pois que não versam matéria integrada na reserva parlamentar.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(a). negar provimento ao recurso;
(b). confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade; Lisboa, 10 de Fevereiro de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida